Cel. Salustiano Padilha em foto de 1897
O público nas ruas de Fortaleza o conhecia pouco. O
jornal Unitário perguntava em editorial: "Quem é esse homem, a quem está
confiada a tão momentosa tarefa de desafrontar a honra estadual ?"
José Torcápio Salustiano de Albuquerque Padilha
nascera na vila de Camocim a sete de setembro de 1861. Considerava o fato de
ter nascido na data da independência nacional um presságio. Seus pais morreram
quando ele era muito jovem, fazendo com que ele fosse criado por um de seus
tios maternos, o farmacêutico João Francisco de Almeida Albuquerque.
Esse tio exerceu grande influência na sua vida,
pois fora voluntário da pátria na guerra do Paraguai como alferes, tendo sido
inclusive ferido e condecorado. O historiador Soriano Cavalcanti afirma que
todas os finais de tarde o jovem Salustiano ouvia seu tio relatar feitos
heróicos pela defesa da pátria em meio aos macegais do Paraguai, e que foi isso
que acendeu nele a chama do patriotismo.
Em 1878 ou 1879, os registros não são claros, o
jovem Salustiano se matricula na Escola Militar de Rio Pardo, formando-se
aspirante em 1883. Desde o começo de sua carreira militar Salustiano
se destacava pelo seu acendrado patriotismo. Ele reprovava seus colegas quando
estes se mostravam mais interessados em bebedeiras, teatros e flertes que em
pensar na pátria. Sua companhia era evitada pelos outros oficiais, pois era bem
conhecido que ele só tinha um assunto, único e exclusivo: a honra nacional.
O amor de Salustiano pela pátria se torna patente
na carta que mandou a noiva, uma de cujas páginas que não se perderam se pode
ver à direita, quando do início das querelas com a Bolívia devido à situação no
Acre, e que quase levaram os dois países à guerra. Na carta Salustiano confessa
seu ódio aos malévolos bolivianos, e mais do que isso, confessa à noiva que seu
amor a ela é muito grande, mas que seu amor pela pátria é maior. Escreve também
que o desejo mais ardente do seu coração, que o empolgou "desde o primeiro
vagido no seio da mãe", é oferecer sua vida em holocausto pela pátria,
para salvá-la de algum inimigo pérfido que a ameaçasse. Acrescenta no final da
carta que o Brasil é a terra mais privilegiada do Planeta, e por isso é vítima
de inveja das outras nações, que pretendem destruir sua glória. Diz que
apreciaria morrer no campo de honra, afrontando o inimigo, batendo-se como um
leão, enrolado no pavilhão nacional, e liderando a vitória das armas nacionais.
Barão do Rio Branco e Grupo Boliviano por ocasião do Tratado de Petrópolis
O Tratado de Petrópolis em 1903 que resolveu as
questões com a Bolívia involuntariamente causou o maior choque da vida de
Salustiano, que decepcionado voltou para a sua terra natal, o Ceará, em
licença, depois de tanto sonhar com as glórias nas batalhas com o país vizinho. Mas este na verdade seria o prenúncio de seu
momento de glória, pois no decorrer de sua licença o rio Mossoró foi cruzado
pelas tropas norte-rio-grandense, que conquistaram a cidade de Grossos, no
Ceará.
A questão de Grossos, hoje um tanto esquecida, foi
um dos casos mais rumorosos que abalou o Norte do Brasil no começo deste
século. As tropas do Rio Grande do Norte cruzaram a fronteira histórica entre
os dois estados, que era determinada pela larga barra do rio Mossoró, em fins
de janeiro de 1904. O governo do Ceará diante dessa afronta não agiu prontamente, gerando uma
grande campanha por parte dos jornais oposicionistas, principalmente do
Unitário. Multidões se reuniam na praça Central de Fortaleza exigindo a guerra
ao Rio Grande do Norte. E de nada adiantavam as explicações de juristas dizendo
que um estado não podia declarar guerra a outro! Finalmente, premido por todos
os lados, o líder político do estado, Nogueira Aciolly (ao lado), toma uma
providência: nomeia o Tenente-coronel do exército Salustiano Padilha para
comandar as tropas estaduais na expulsão das tropas potiguares.
A reação da imprensa e da população foi
entusiástica. Por todos os lados o Coronel Salustiano era aclamado como o
salvador da honra estadual, era chamado de Leão do Norte, Alexandre o Grande do
Ceará, Novo Napoleão. Mas foi de novo o jornal Unitário que lhe deu o epíteto
mais marcante: a Altaneira Águia do Apodi.
Alheio a tais glórias o Coronel trabalha com afinco
e entusiasmo, finalmente ele iria fazer o que sempre quis: bater-se contra o
inimigo! E em pouco tempo a tropa de duzentos e cinqüenta homens estava
organizada, e a cinco de março de 1904 instala sua base na cidade cearense de
Aracati, a apenas oitenta quilômetros da zona conflagrada!
E na verdade aí começaram os grandes problemas de
Salustiano. Primeiro, o problema logístico. Pelo mapa abaixo, pode-se ver que
as bases potiguares estavam muito próximas do teatro de operações. A base
inimiga mais próxima, a cidade fortificada de Mossoró, estava a pouco menos de
trinta quilômetros de distância. Enquanto isso Salustiano e suas tropas tiveram
de enfrentar cansativas marchas por praias de areias moles e sol causticante, e
sem fontes d'água por perto.
Nem mesmo para seus sobrinhos Salustiao quis
contar dos sofrimentos daquela marcha, pois para ele, homem de brio, tais
sofrimentos pela pátria eram minúcias, indignos mesmo de menção. Mas pode-se
imaginar o que ele e seus homens passaram. Diz a história popular que o Coronel
Salustiano fez o percurso lendo uma velha edição de Clausewitz ("Da
Guerra"), e que teria dado toda a água de seu cantil aos seus soldados,
tendo ficado sem nada. Claro que talvez isso seja imaginação popular. O próprio
Soriano Cavalcanti duvida que isso tenha acontecido, embora o hoje esquecido
poeta José Albano tenha escrito uma ode "Ao Themístocles Cearense!"
em homenagem a tal feito. De qualquer forma não deixa de ser bonito pensarmos
em um comandante em pleno sol das praias nordestinas sacrificando-se por seus
comandados e pensando apenas nas altas questões de estratégia, com o livro de
um autor prussiano nas mãos.
Depois da longa e cansativa marcha, os homens chegaram
ao teatro de operações, tendo os primeiros pelotões atingido a região na tarde
de 11 de março de 1904, para fazer espantosa descoberta: o inimigo tinha
fugido!
Perguntas a moradores da região confirmaram tudo.
Sabendo da aproximação das tropas cearenses, os potiguares tinham de novo
cruzado a barra do rio Mossoró, tendo se reagrupado na cidade de Areia Branca,
do outro lado do rio. Um tanto desanimado, Salustiano estabelece seu
quartel-general na vilazinha de Grossos, tendo ordenado o hasteamento do pavilhão
cearense e que se cantasse o hino, ao crepúsculo do dia 11.
Aí começa o episódio mais glorioso e obscuro da
carreira do coronel, e que de certa forma revela toda a grandeza e
vileza de que o homem é capaz. A verdade crua é que certos homens, inclusive
certos oficiais das forças expedicionárias
cearenses simplesmente estavam aliviados por saberem do recuo do inimigo.
Estavam certos de que não haveria combate,
eles - e a verdade precisa ser dita - estavam com medo da morte, e prezavam
mais suas vidas que sua honra.
E foram esses homens que se assustaram quando, por
volta de meia-noite, o Coronel Salustiano entrou na tenda dos
oficiais e disse que isso não podia ficar assim. A honra estadual não podia
ficar afrontada daquele jeito. O inimigo recuara para suas fronteiras, mas não poderia ficar impune: era preciso dar-lhe
uma lição. E de nada adiantaram as
objeções de alguns oficiais mais medrosos. Salustiano expôs seu plano e deu a
ordem: no dia seguinte, eles invadiriam o
Rio Grande do Norte! Havia alguns barcos lá por perto, e eles cruzariam a barra
do rio Mossoró e invadiriam a cidade de
Areia Branca.
O ataque começou logo ao amanhecer. A tropa cearense deveria estar pronta para embarcar nas canoas e seguir o trilho. O historiador Soriano Cavalcanti guarda algumas poucas fotos que sobreviveram, tanto do lado cearense como do lado potiguar, e essas fotos contam como foi a incursão. Ao alvorecer do grande dia o Coronel Salustiano estava eufórico, mas não uma euforia irresponsável e otimista. Não, pelo contrário, ele uma euforia rara nos tempos modernos, a euforia do homem que vai de encontro ao próprio destino, embora esse destino possa ser a morte em alguma salina perdida na costa de um rio esquecido. Salustiano não tinha ilusões quanto à guerra: sabia que nela os homens morrem, matam e são mutilados física e mentalmente. Mas também não tinha ilusões quanto a si mesmo: sabia que seu destino era afrontar o inimigo, e desafiar a morte carregando o Sagrado Pavilhão.
O ataque começou logo ao amanhecer. A tropa cearense deveria estar pronta para embarcar nas canoas e seguir o trilho. O historiador Soriano Cavalcanti guarda algumas poucas fotos que sobreviveram, tanto do lado cearense como do lado potiguar, e essas fotos contam como foi a incursão. Ao alvorecer do grande dia o Coronel Salustiano estava eufórico, mas não uma euforia irresponsável e otimista. Não, pelo contrário, ele uma euforia rara nos tempos modernos, a euforia do homem que vai de encontro ao próprio destino, embora esse destino possa ser a morte em alguma salina perdida na costa de um rio esquecido. Salustiano não tinha ilusões quanto à guerra: sabia que nela os homens morrem, matam e são mutilados física e mentalmente. Mas também não tinha ilusões quanto a si mesmo: sabia que seu destino era afrontar o inimigo, e desafiar a morte carregando o Sagrado Pavilhão.
Às sete horas do dia 12 de março de 1904 o Coronel
Salustiano, com alguns soldados, pegou o primeiro dos barcos
(foto).Nesta foto vemos o Coronel
Salustiano com seu uniforme afrancesado, ao lado do homem de cartola, o velho
prefeito da cidade cearense de Grossos, que Salustiano acusou de ter fugido
covardemente perante o inimigo quando da invasão e por isso obrigou a vir logo
na primeira vaga de invasão, composta deste e de alguns outros poucos barcos.
O problema é que nunca houve uma segunda e terceira
vagas de invasão. Alguns oficiais, achando que Salustiano estava
enlouquecido, atravessaram o rio e entendendo-se com o inimigo conseguiram
telegrafar para o Presidente do Estado, e
este respondeu que eles não deveriam invadir o estado vizinho. Salustiano
negou-se a cumprir tais ordens, por serem uma
afronta a sua honra militar, e no comando apenas de poucos homens, empreendeu a
travessia.
O combate foi renhido, tendo as poucas tropas de Salustiano
lutado bravamente. (ver foto à esquerda).
Esta foto da esquerda, diga-se
de passagem, talvez seja a mais rara e importante de todas as que estão aqui,
pois apesar de sua má qualidade, é a única de combate real, e foi tirada pelo
fotógrafo da expedição, o alferes Cristiano de Moraes. O fato é que após
renhida luta o Coronel Salustiano, sem apoio, foi obrigado a retirar-se. Esse
talvez tenha sido seu grande problema, a retirada. Ele, que passara a vida
inteira dizendo que um comandante deveria vencer ou morrer, agora se deixara
convencer por seus comandados de que não deveria se suicidar, e assim
retirou-se com suas poucas tropas de volta para o lado cearense, deixando os
potiguares livres na cidade entrincheirada de Areia Branca, onde orgulhosamente
posaram para muitas fotos, como esta abaixo. Logo depois veio a ordem do
Presidente da República de que as tropas dos dois lados deveriam recuar para
suas bases.
O fato é que depois daquele dia quente de março de
1904, naquela região com um vento penetrado de sal, o Coronel Salustiano nunca
mais foi o mesmo. Pediu passagem para a reserva e deixou-se ficar numa cadeira
de balanço olhando para o mar na sua casa em Fortaleza, sempre remoendo o
momento em que tivera de se retirar, manchando sua honra para sempre. Era um
homem acabado. E pouco adiantaram as homenagens que recebeu no decorrer dos
anos. Foi condecorado por vários governadores e muitos anos depois ao
Presidente Getúlio Vargas enviou um telegrama de enaltecimento ao velho
militar.
Ruy Barbosa
Para não deixar a história sem final, acrescento
que a região do Apodi e de Grossos, objeto do litígio entre os dois estados,
acabou sendo decidida no Supremo Tribunal Federal, onde o Rio Grande do Norte
teve a esperteza de contratar o melhor advogado que havia na época, o baixinho
e ranheta advogado baiano Ruy Barbosa, o homem que se agarrava aos livros como
se fossem ouro. Com um homem desses acabou sendo barbada para os potiguares, e
eles ficaram com a região.
Quanto a Salustiano, morreu numa data muito
infeliz, 11 de julho de 1932, quanto os olhos de todo o país estavam voltados
para a Revolução que estourara em São Paulo. Poucas pessoas foram a seu
enterro, a maioria familiares, e dizem que o enterro foi rápido, devido a uma
chuva fina de fim de estação. Sua lápide ainda hoje pode ser vista no cemitério
de Fortaleza, e nela está escrito muito simplesmente: "Aqui jaz José
Torcápio Salustiano de Albuquerque Padilha, a Altaneira Águia do Apodi".
* José de Arimatéia Bandeira publicou no grupo O Apodi que queremos !
Fonte: www.honoriodemedeiros.blogspot.com.br
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