O que
mais se evidencia depois destes anos de debate diz respeito a continuar
chamando o Banditismo de "Social", e parece mais interessante
pesquisar as causas da violência rural que discutir a existência de um
componente de oposição entre "senhor" e "bandido". O mundo
rural é de uma complexidade maior que aquela criada pelos escritores das
classes médias urbanas para os surtos de bandoleirismo, e neles o Banditismo
Social aparece como um fato do passado, todavia, o banditismo contemporâneo
aparece como criminalidade. São poucos os casos em que o bandido é glorificado
em vida, e esta pode ser uma clave para nos aproximarmos desta questão.
Há
pouco tempo Paul Saint Cassia publicou um artigo sobre o "banditismo" na Enciclopédia Européia de História
Social. O autor caraterizou o banditismo por regiões, inclusive o banditismo na
América Latina, ressaltando a dimensão comparativa da questão.Este
artigo aponta para os elementos recorrentes do banditismo, enfatizando a sua
dimensão antropológica na construção de um novo modelo. Mas não deixa de chamar
a atenção sobre as três possibilidades de abordagem do Banditismo: como uma
categoria legal, como uma categoria social, e da perspectiva da lenda e da
literatura, popular ou não. Estas três abordagens mudaram com o tempo e de
disciplina em disciplina. A maioria dos autores analisados no ponto anterior
realizou chamados ao estu do das condições sociais, políticas e econômicas em
que se desenvolveu o Banditismo Social.
Por outro lado, poucos autores
empreenderam esta tarefa, e quase todos se concentraram na discussão do mito do
bandido social, mas não podemos descuidar de outros aspectos. A criminalização ou não do banditismo está relacionada à forma com
que o Estado se defrontou com a questão. Em algumas ocasiões, os bandidos
passaram a fazer parte de grupos legais, ou passam a integrar as milícias do
Estado (como foi o caso do mexicano Pancho Villa), ou sendo anistiados quando
se combateram do lado das forças da lei, como foi oferecido a Lampião para
lutar contra a Coluna Prestes.
Soldados da Coluna Prestes
Segundo
Saint Cassia, há vários elementos que estão na base do Banditismo: a estrutura social
e a ecologia política da região; a distribuição de propriedades; a acumulação
de capital e as formas em que a mesma se
legitima; a presença ou ausência da sociedade civil; a existência de um sistema
eleitoral confiável unido ao uso da força para impor os resultados; e a
insegurança constante, maior que a miséria em que vivem os camponeses. O autor
apresenta um interessante modelo para abordar a questão, contudo nenhum dos
pontos por ele apresentados menciona a resistência dos camponeses à opressão. Este
modelo está destinado a compreender a existência de uma violência endêmica em
certas regiões em que o capitalismo se torna o modo de produção principal.
O
banditismo e outras formas de protestos rurais são menores, ou inexistentes, em
locais onde o proletariado rur al se organiza segundo os padrões trabalhistas,
como ligas camponesas ou sindicatos. Se acompanharmos os pontos anteriormente
citados poderemos compreender melhor os conflitos rurais na consolidação do
capitalismo.
Saint
Cassia não esquece as questões culturais do banditismo. Assim, a questão da
violência, que tanto preocupara Hobsbawm e Blok, adquire para ele novas
tonalidades: A violência é intrínseca ao banditismo? Lampião era um vingador e
não um bandido social, porque abusava do uso da violência?
Lampião e seu bando
Conhecendo a
sociedade e a sua cultura, pode-se descobrir se a violência é necessária ou
não, se a extrema crueldade de certos bandidos está relacionada com a sua
escassa inserção no meio em que atuam, ou se é intrínseca às formas locais da
apropriação das riquezas? O uso da violência é um discurso numa linguagem que
deve ser interpretada. Saint Cassia chama a atenção para as diferenças entre a
"violência" e o "terror", sendo a primeira um tecido de
signos e o segundo um dos resultados dos mesmos.
Os
aspectos econômicos do Banditismo não têm recebido uma atenção adequada. O
bandido pode ser visto ainda como uma forma de ascensão social e econômica, uma
forma de defesa das propriedades familiares, ou reagindo às transformações
produtivas. O bandido também pode ser um agente intermediário nas relações
econômicas regionais, atuando por conta própria ou a mando dos poderosos
regionais. O bandido está inserido na economia regional, e para manter boas
relações com uma parte dos agentes econômicos tem que pagar pelos serviços
recebidos. O mais importante destes serviços é a proteção, sendo que o
pagamento pela proteção era feito em bens e serviços, atuando a mando dos coiteiros. Este não é um assunto menor e nos permite
entender a questão da cumplicidade ou os serviços realizados
para os poderosos locais.
O
Banditismo Social deixou de estar em pauta. Depois do debate na LARR, já mencionado, as
abordagens acadêmicas foram decrescendo. Desde meados da década de noventa há
menos artigos destinados a analisar esta questão. Em compensação, cresceram os
estudos sobre o setor rural, ou as formas em que se manifestou a insatisfação
camponesa.
No Brasil, a atuação do Movimento
dos Sem Terra (MST) ajudou a mudar a maneira como os
camponeses eram apresentados, e a historiografia está começando a privilegiar
as formas coletivas de ação, ao invés das
práticas individuais.
Em
outros países a historiografia também passou a priorizar práticas coletivas.
Voltemos ao caso da Argentina. Nos últimos anos foram publicados neste país
dois livros sobre um mesmo acontecimento: a matança de "gringos" em
1872, na cidade de Tandil, a 400 quilômetros a sudeste da cidade de Buenos
Aires.
Os
autores abordaram a questão de ângulos diferentes. Para compreender o massacre,
John Lynch apresenta a estrutura social, política e econômica da Argentina. O
trabalho enfatiza a relação entre gauchos e
imigrantes, e as reações posteriores à matança, principalmente das
coletividades estrangeiras e do governo inglês. Lorenzo Macagno, por sua vez,
centra-se na questão religiosa de um grupo de indivíduos que se sentia expulso
da sua sociedade. O cristianismo primitivo foi a forma de processar estas
mudanças e os recém-chegados foram identificados e responsabilizados por essas
mudanças.
Ambos
os estudos diferem. Macagno carateriza este movimento como messiânico e analisa
as suas semelhanças com outros movimentos similares. Lynch, por sua vez, parte
das fontes oficiais e daquelas produzidas pelos imigrantes. O interessante em
ambos é que o líder principal do bando, Gerónimo de Solané, analisado
exaustivamente em ambos os casos, não é visto como um rebelde ou um vingador, e
sim como um membro exótico dessa mesma comunidade. É possível entrever
semelhanças com outras lideranças religiosas, porém os seus seguidores não são
famílias de camponeses, e sim indivíduos fora-da-lei. Alguns prófugos do
exército, da justiça, desempregados e trabalhadores, formaram em suas filas.
Isto nos remete ainda à questão das fontes. As diferenças estão fortemente
relacionadas com as fontes escolhidas e as análises realizadas. Ambas se aproximam
da questão para en tender como esses grupos vivenciaram o processo de
modernização do campo e, no caso, violência e criminalidade são fundamentais
neste processo.
Benjamim Abhraão
O
mito dos bandidos sociais não precisa de justificativas acadêmicas e continua a
correr solto. No Brasil são inúmeros os livros, artigos jornalísticos,
programas de TV, cordéis e outros, lançados ano a ano. Eles enfatizam a
compreensão da personalidade dos principais cangaceiros e a justificativa de
uma vida violenta numa sociedade igualmente violenta e injusta. Em março de
2003 foi noticiada a restauração dos filmes e fotografias realizada por
Benjamim Abrahão, o que deu uma nova oportunidade para que a questão voltasse a
ser apresentada na mídia. Os
jornais de Fortaleza enfatizaram o fato e novamente reapareceu o mito do
cangaceiro como um homem que resiste às autoridades e luta pela melhoria das
condições de vida dos homens do sertão. Novamente o mito e a lenda voltaram à
tona. Há uma necessidade de reler sobre o cangaço para afirmar a identidade
nordestina.
Poderíamos
dizer que Hobsbawm continua a inspirar os trabalhos relacionados com o
Banditismo Social, e também podemos questionar as suas abordagens. O que não
podemos deixar de reconhecer é a sensibilidade deste autor de compreender a
sobrevivência do mito e a forma em que o mito é autonomizado da sua realidade
pelos intelectuais das classes médias urbanas. O exemplo citado dos jornais de
Fortaleza não deixa lugar a dúvidas: Hobsbawm ainda continua a ser uma
referência se abordamos a "invenção" da lenda do Banditismo Social.
Norberto
O. Ferreras
Revista
História - Coordenação
de Pós-Graduação em História
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