É de conhecimento generalizado que cangaceiro, ainda que diuturnamente convivendo com as mais difíceis situações, era sujeito zeloso e vaidoso. Demasiadamente cuidadoso com sua aparência, sim senhor. Tome-se como exemplo as vestes vistosas, os adornos coloridos, os apetrechos cuidadosamente bordados e costurados, sem falar no uso da brilhantina, do óleo de coco e dos perfumes e loções. E dizem que até importados.
No anseio de se mostrar ao mundo como pessoa de vida normal, feliz, contente, nos seus afazeres cotidianos de repouso e retomada de energia, aceitou de bom grado que o fotógrafo sírio-libanês Benjamin Abraão o registrasse quase que artisticamente. Fazia poses, fingia estar atirando, era retratado solitariamente ou em grupo. E nas fotografias um Lampião familiar ao lado de sua Maria e seu cão; o líder lendo a missiva talvez de um coronel importante; tomando conhecimento do prêmio de sua cabeça através de um jornal. Num dos retratos, Virgulino folheia uma revista com modelo em traje de banho. E, sem qualquer receio, mostra o que estava apreciando. E bem ao lado de sua Maria. Cangaceiro era assim, quase um artista.
Na verdade, cangaceiro era um espalhafatoso, gostava de aparecer, de causar uma imediata e aparatosa impressão. Que o medo acaso causado fosse por outro motivo, não pelo aspecto apresentado. As mãos que apertavam o gatilho para matar, que puxavam o punhal para sangrar e para afastar os garranchos e pontas de espinhos da caminhada, eram as mesmas mãos reluzentes dos anéis dourados se enfileirando nos dedos.
E um jeito assim vaidoso de ser não podia ser diferente quando se tratava do alimento. E é inegável que todo mundo quer se fartar do melhor. Mas neste ponto tinha de obedecer à fome e o que estivesse à disposição. O que não significa que abdicasse da escolha do melhor que pudesse ser encontrado na região onde estivesse de passagem ou de refúgio. Mas num sertão empobrecido, de pobreza reinando perante a maioria da população, fortuna quando encontrava uma criação ou uma mesa mais sortida.
Sertanejo, conhecedor e apreciador da cozinha matuta, um guloso pelas misturas e pedaços depreciados pelos sulistas, o cangaceiro só não comia do bom e do melhor se a ocasião só permitisse se contentar com um naco de carne seca e um punhado de farinha seca. E tantas vezes nem disso pôde dispor. Mas o seu intento era sempre ter um prato de alumínio transbordante de feijão de carne com carne de bode, só para citar uma das iguarias autenticamente nordestinas.
Apetitoso no seu regabofe, costumeiro esvaziador de prato de estanho e de qualquer prato. Mas, antes que esqueça, pelas bandas de cá nordestinas, ou sertanejas mesmo de chão rachado de sol, chama-se regabofe o alimento que dá sustança ao cabra. Pode ser uma buchada gorda de bode, um sarapatel apimentado, um mocotó suculento, mas também a perna de preá assada ou até mesmo a carne de palma refogada. Dependendo da fome e da situação, tudo é festança no bucho, na barriga esfomeada.
Por isso mesmo, todo esforço que se faça para citar quais os alimentos da mesa cangaceira, necessário será que se aponte quatro situações ou momentos diferenciados no seu regabofe, e tudo na dependência de onde e como estivesse. Porque a fome existia sempre, e acrescida pelo esforço físico, ainda que sem tempo para comer e ela ali judiando por dentro. Logicamente que o alimento colocado à disposição do coito não era o mesmo que o apressadamente engolido na caminhada pelas matarias.
Do mesmo modo, diferente era a comida de coito e aquela encomendada às pressas nas moradias sertanejas que fosse encontrando na caminhada. E mais diferente ainda era o farto alimento encontrado quando recebido como ilustre e importante visitante de um coronel ou outro poderoso qualquer. Quer dizer, o regabofe variava segundo o local e a situação onde estivesse.
Assim, foi dito que o alimento se diferenciava perante quatro situações. A primeira seria aquela cotidiana, da vivência no bando, saboreada no calor da caminhada ou do repouso na mataria; a segunda seria aquela servida com mais fartura, mais aprimorada, colocada à disposição quando bando se acoitava por mais tempo em determinado lugar; a terceira seria aquela encontrada pelas estradas, nas moradias sertanejas onde batesse à porta e ordenasse o preparo de urgente alimentação; e a quarta seria aquele regabofe mais faustoso, de lamber os beiços e repetir o prato, vez que saboreado na condição de convidado ou de ilustre visitante na residência de um portentoso senhor nordestino.
Continua...
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
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