Páginas

Uma História de Amor e Fúria: Da Balaiada ao Cangaço Parte I Por:Verônica Kobs


Uma história de amor e fúria é um filme brasileiro de animação, dirigido por Luiz Bolognesi, que estreou em 2013. Nele, a História do Brasil é contada a partir das lutas e conflitos que construíram o país e que até hoje fazem parte da identidade nacional. O filme teve boa repercussão e foi indicado para o Annecy, festival que, com Uma história de amor e fúria, contou, pela primeira vez, com um representante brasileiro na competição.

Mais de quinhentos anos de História são distribuídos em confrontos que constituem o eixo da narrativa. No Brasil Colônia, europeus e tribos indígenas encenam conquistas e derrotas que resultam de enfrentamentos sucessivos. O segundo momento remonta à época da escravatura, com destaque ao movimento da Balaiada, protagonizado pelos militares comandados pelo Barão de Caxias e pelos revoltosos[1]. Na metade do filme, os períodos da ditadura e da pós-ditadura apresentam novo confronto, entre as sociedades civil e militar. Finalmente, depois de contemplar tipos distintos de lutas e combates, em tempos também diferentes (o passado remoto e o passado recente), o filme cria um mundo no futuro, mais especificamente no ano de 2096, com algumas grandes transformações possibilitadas pelo avanço tecnológico, como ocorre em qualquer filme de ficção científica. Nessa sociedade “provável”, água é ouro e, por isso, torna-se o principal motivo das lutas pelo poder.



Boa parte da crítica reclamou da História longa e condensada demais e não viu com bons olhos o tratamento maniqueísta dado à trajetória do protagonista: “(...) o primeiro aspecto a ser discutido é a simplificação brutal da história do Brasil como uma sucessão de confrontos sangrentos entre opressores e oprimidos” (COUTO, 2013). É isso. O personagem principal é sempre o mesmo (pelo menos em essência). Ele morre e renasce, para participar de novas lutas, derrotas e conquistas. O personagem é um só, que se transmuta de guerreiro tupinambá a líder dos revoltosos, na Balaiada, a guerrilheiro na ditadura e, depois, a jornalista do futuro. O filme de animação tem, de fato, essa característica de suprarrealidade, em que é possível um personagem nascer e morrer diversas vezes, para completar seu destino de revolução e de amor por Janaína. Além disso, não se pode desprezar o fato de que parte da história se passa em um futuro distante, o que ajuda a encarar grandes saltos no tempo e na História do Brasil e o atavismo do personagem principal como verossímeis, no contexto da animação e da ficção científica.
O destino do personagem é longo e se renova a cada vida, a cada sociedade e a cada conflito que se estabelece. 

Entretanto, o lugar dele é sempre entre aqueles que lutam por liberdade, pelos direitos e por melhores condições de vida e de trabalho, em oposição ao poder hegemônico. Nesse aspecto, voltamos à Balaiada, que, no filme, é mostrado de forma menos redutora, sem o ranço didático próprio dos livros de História. Em Uma história de amor e fúria, não só são revistos os papéis daqueles que tomaram a frente do movimento. A animação mostra também a relação legítima que existe entre a Balaiada e o Cangaço:

Essa nossa guerra é apenas uma data nos livros de História. Ninguém conta que Caninana, Sete Estrelas e Raio escaparam e ficaram vagando pelos sertões e aí nasceu o Cangaço. Foi o jeito que a turma que não é de abaixar a cabeça achou pra continuar lutando. (UMA HISTÓRIA, 2013)


Essa passagem opõe-se claramente ao discurso histórico “chapa-branca”, quando caracteriza a Balaiada apenas como uma data e quando denuncia a omissão que se faz da relação que existe entre a luta dos balaios e o início do Cangaço. Outro dado relevante é o elogio que se faz à tenacidade e ao desejo de justiça daqueles que participaram dos dois movimentos.



A referência é rápida, mas uma cena consolida a relação entre os dois movimentos. Quando o líder Manoel dos Anjos é morto, transforma-se em um pássaro. Sua imagem, após levar o tiro, de braços abertos e prestes a cair, já sugere isso. Seus braços parecem asas e se abrem como se ele fosse alçar voo. De fato, os militares, no lugar do corpo, veem apenas a ave, que voa sobre os companheiros que conseguiram fugir. A cena, então, passa a focalizar o grupo de cangaceiros em primeiro plano.

Em entrevista à Revista de Cinema, o diretor do filme explicou por que escolheu a Balaiada como um dos episódios históricos que compõem a animação: “(...) ficamos em dúvida entre a Balaiada, a Revolta dos Malês e a Cabanagem. Escolhemos a Balaiada porque foi nesse momento que nasceu o cangaço e o exército brasileiro” (SCHENKER, 2013). 



Apesar de breve, a associação entre balaios e cangaceiros é bastante salutar, porque contesta a “versão oficial” dos fatos e porque demonstra uma luta sem interrupções; ela apenas se renova. Astolfo Serra (citado por Sousa (2013)), em seus estudos sobre a Balaiada, também faz referência a nomes que, depois, voltariam a ser mencionados em textos sobre o Cangaço:

Ao contrário do que se pensa, na Balaiada, conheceu-se um incontável contingente de rebelados, muitos hoje não são nem conhecidos. Apreciando essas informações, faço uso do Pe. Astolfo Serra que afirmou (1948, p. 166):

“Novos chefes se apresentam com suas comitivas de rebeldes. (...). Designam-se mutuamente por nomes simbólicos e são Relâmpago, Corisco, Raio, Caninana, Sete Estrelas, Teteu, Andorinha, Tigre, etc. – toda uma série de homens rudes e sequiosos de aventuras e de vinditas”.(SOUSA, 2013)

Muito mais do que o fato de a Balaiada ter sido o movimento precursor do Cangaço, é preciso pensar sobre as relações de diferenças e semelhanças que existem entre eles. A continuidade é inegável, mas a recontextualização garantiu as idiossincrasias responsáveis pela evolução da luta.


No campo das diferenças, deve-se ressaltar, fundamentalmente, que o Cangaço não foi um movimento pontual, tal como a Balaiada. O Cangaço foi um movimento de maior amplitude geográfica, de maior duração[1] e mais complexo. Por esses motivos, compreende inúmeros aspectos, até mesmo divergentes, em algumas situações. Prova disso era a relação oscilante de Lampião com as autoridades[2]. Os interesses mudavam e exigiam novos acordos. Alguns fazendeiros e proprietários de terra davam guarida aos cangaceiros em troca da proteção[3]. Do mesmo modo, o Cangaço, apesar de ser oficialmente combatido pela Polícia e pelo Governo, servia de grupo de auxílio emergencial para manter a ordem e combater os inimigos, em ocasiões extraoficiais. Esse poder de negociação de Lampião, aliado à necessidade de adaptação constante, foi considerado o principal estratagema para a sobrevivência dos homens e para a longevidade do movimento. Fazia-se uso da política do favor, que “ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa [...]” (SCHWARZ, 2000, p. 17). 

Em se tratando de dependência, é imperativo que exista uma hierarquia, como explica Roberto Schwarz: “O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm” (SCHWARZ, 2000, p. 16). O inusitado é que o dominante e o dominado alternavam os papéis: ora os governantes e os proprietários de terra davam e os cangaceiros recebiam, ora o bando de Lampião assumia o poder, para dar aquilo que era caro ao governo e aos latifundiários. Estabelecia-se, assim, uma relação de equilíbrio, que previa troca e negociação constantes. Além disso, muitos estudiosos mencionam a importância da mobilidade do bando, impedindo que fosse alvo fácil durante as diligências.

No que diz respeito às semelhanças, elas estão, em sentido amplo, na relação de submissão do povo em relação ao poder oficial e, depois, no movimento de sublevação como flagrante reação popular aos desmandos dos governantes. Ainda nesse aspecto mais geral, merecem destaque a consolidação de um poder paralelo, extraoficial, e a resistência (que, aliás, tornou-se uma característica emblemática e inerente à identidade do negro e do sertanejo, que protagonizaram os dois movimentos em questão). No que diz respeito à Balaiada no filme, temos o seguinte comentário: 

A visão mais interessante refere-se à figura histórica de Duque de Caxias, patrono do exército brasileiro, e que foi transformado em estátuas e logradouros por aí, mas no filme é o responsável pelo fim de um movimento popular, a Balaiada. O movimento é retratado na segunda parte do filme, e as figuras de herói (Duque de Caxias) e vilão (o Balaio, líder do movimento) são questionadas. (PASTORELLO, 2013)


Continua...

Verônica Daniel Kobs
Professora de Imagem e Literatura e de Literatura e Estudos Culturais, 
no Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade (Curitiba-PR). 

Um comentário: