Durante muitas décadas, não se falava sobre Lampião
nem de brincadeira em uma fazenda do interior de Minas Gerais. Lá, o casal José
Antônio Souza e Jovina Maria da Conceição seguia uma vida pacata, distante de
qualquer referência ao mundo do cangaço. O estilo de vida dos pais - sem
família e com um passado de lacunas - começou a gerar muitas perguntas dos
filhos. A explicação parecia frágil: a de que os parentes haviam todos morrido
nas grandes secas do Nordeste.
Mas quando José Antônio completou 95 anos, achou
que era hora de, enfim, contar a própria história. O casal pacato era, na
verdade, Moreno e Durvinha, dois cangaceiros sobreviventes do bando de Lampião.
Com a revelação, os filhos foram descobrindo profundas marcas do cangaço nos
pais: das marcas deixadas na pele de Durvinha por uma bala expelida a faca até
a afamada valentia de Moreno, homem dos trabalhos pesados de Lampião.
A história do casal, que fugiu travestido de
romeiro e mudou de identidade para escapar das forças volantes, é contada no
documentário "Os Últimos Cangaceiros", que estreia nesta quinta-feira
(28), no Cinema do Dragão do Mar. Por meio dos depoimentos de Moreno e
Durvinha, de imagens de arquivo e das gravações feitas pelo cineasta Benjamin
Abrahão na década de 1930, o filme mostra a vida no cangaço por um viés
diferente. "Os Últimos Cangaceiros" ilumina detalhes do bando de
Lampião para revelar sua arqueologia - com modos de vida, cultura, cotidiano e
vestígios históricos.
Com trilha sonora de DJ Dolores, o filme é embalado
por ritmos nordestinos, com a sobreposição da sanfona sobre melodias eruditas.
É também pelo uso das imagens de arquivo que o filme chama atenção. As imagens
feitas por Benjamin Abrahão, o único a filmar o Cangaço na época de atuação do
grupo, ganham cores em um trabalho realizado frame a frame para o documentário
de Wolney Oliveira, o que provoca realismo maior ao espectador.
Durvinha em foto de Benjamim Abrahão
Além disso, "Os Últimos Cangaceiros" se
desdobra na tela como um filme de encontros. O documentário acompanha a busca
de Moreno e Durvinha por seus familiares e os encontros com as pessoas com as
quais cruzaram ao longo da vida em bando. Embora o filme revele que os últimos
cangaceiros do bando de Lampião foram recebidos socialmente como heróis após
revelarem suas identidades, ele não esconde o lado obscuro do Cangaço.
Uma coisa é certa: o longa é capaz de mostrar
aspectos do bando de Lampião que seguem distantes das inúmeras ficções sobre o
tema e da História oficial. Realizado com uma equipe integralmente cearense ao
longo de cinco anos, o documentário tem 180 horas de filmagens editadas em 79
minutos. O projeto, iniciado para ser uma ficção sobre Lampião, se tornou um
documentário sobre um casal de cangaceiros que ilumina também sutilezas do
grupo - das vaidades dos integrantes ao cheiro de perfume que eles deixavam por
onde passavam. A ideia de uma ficção futura, porém, ainda não foi abandonada
pelo diretor.
Neli Conceição, filha do casal Moreno e Durvinha
"Os Últimos Cangaceiros" é fruto do
interesse pelo Cangaço nutrido pelo diretor Wolney Oliveira desde os tempos em
que o pai dele, cineasta Eusélio Oliveira, o levava para filmar as romarias de
Juazeiro do Norte. "Em uma das viagens, meu pai me deu de presente o livro
'Milagre em Juazeiro', fiz até meu primeiro longa sobre isso. Pela primeira
vez, me deparei profundamente com a figura fantástica e polêmica do Lampião.
Depois meu pai me deu outro livro, chamado 'Memórias do Cangaço'. Essa história
sempre ficou remoendo em mim", conta.
Quando conheceu a filha de Maria Bonita e Lampião,
Vera Ferreira, em um festival de cinema, Wolney a convidou para apresentar, no
Cine Ceará, trechos filmados por Benjamin Abraão. As conversas com Vera na
época serviram de estímulo para que ele iniciasse o projeto de uma ficção sobre
o líder do Cangaço. "Começamos a filmar o longa 'Lampião, governador do
sertão'. O nome é resultado de uma carta que ele fez pro Governo de Pernambuco,
propondo divisão dos territórios a serem governados pelos dois. Ele assinou
dessa forma, daí veio o nome inicial", explica Wolney.
Wolney Oliveira
Durante as filmagens, a equipe descobriu que Moreno
e Durvinha estavam vivos. Diante da novidade e do alto custo para realizar uma
ficção de época, Wolney decidiu transformar seu filme em um documentário.
"Eu pensei: Estou fazendo um filme sobre Lampião, que já está morto. Achei
então que o filme não era mais sobre Lampião, mas sobre Durvinha e Moreno, que
ainda estavam vivos", diz.
O filme foi finalizado em 2011 com um material
importante para a memória do Cangaço. Exibido em 50 festivais nacionais e
internacionais, contabiliza, até agora, oito prêmios. Quatro anos após a sua
finalização, "Os Últimos Cangaceiros" enfim chega às salas de cinema
de Fortaleza. Questionado sobre a demora para colocar o longa em circuito,
Wolney Oliveira afirma que o grande nó ainda do cinema brasileiro é a
distribuição.
"Eu me dou por feliz porque meu filme vai ser
lançado nacionalmente, por um apoio da Secult ainda na gestão do ex-secretário
Paulo Mamede. A Coelce é que vai bancar o lançamento por meio do edital
Mecenato. Não havia sensibilidade do Poder Público para o audiovisual, embora
hoje o Ceará seja um dos mais importantes produtores do Brasil. Eu acredito
muito na palavra do governador Camilo, que criou um comitê da cultura e assumiu
o compromisso de colocar 1,5% do orçamento para o setor", declara.
Mais informações:
"Os Últimos Cangaceiros" entra em cartaz
a partir de 28 de maio de 2015. Haverá sessão especial em Fortaleza no dia 28
de maio, às 19h30, no Cinema do Dragão-Fundação Joaquim Nabuco, seguida de
debate com o diretor.
Jornal Diário do Nordeste
Beatriz Jucá
Repórter