Guerhansberger Tayllor e Narciso Dias
Partindo da ideia de que a história é ciência e que a memória seria uma das suas matrizes, Le Goff (1992) aponta que a memória faz parte do jogo do poder que autoriza manipulações conscientes ou inconscientes, que obedece aos interesses individuais ou coletivos. Já a história, como todas as ciências, tem como compromisso a busca por verdades, bem como a desconstrução dos discursos memorialísticos. Como historiador, através deste trabalho, busco compreender como foram fabricadas as memórias sobre o cangaceiro Chico Pereira, investigando quais os interesses que estavam em jogo no seu processo de construção.
Entendendo Chico Pereira como um personagem múltiplo e que sobre o seu corpo se inscreveram inúmeros significados dito pelos outros, penso como esses sentidos forjaram e definiram memórias sobre esse cangaceiro. Para tanto, trabalho o conceito de capitalização dos corpos, desenvolvido por Michel de Certeau, em seu livro a “Escrita da História”. Isso implica no investimento de significados que empreendem verdades sobre o que é dito sobre os corpos dos outros (nesse caso, o de Chico Pereira) instituindo memórias. Michel de Certeau apresenta esse conceito quando discute a conquista da América pelo europeu, quando este escreve a história a partir do lugar do vencedor, o Ocidente, a partir do gesto de silenciar o outro.
Assim sendo, colonizar o corpo do outro é habitá-lo, no sentido de dominá-lo através de valores do “eu”. 7 Foi por meio das inscrições sobre o corpo de Chico Pereira que suas memórias foram fabricadas a partir de signos interessados, com vontades de mobilizar verdades, seja como sendo um corpo incriminado pelos jornais e processos criminais (trabalhados no primeiro capítulo), seja como o injustiçado e vítima do seu meio social construído pelos signos do seu filho no livro Vingança, não (desenvolvido nos dois últimos capítulos).
Michel de Certeau
Nas redes das memórias porque, na infância, lembro-me quando meus pais saíam de casa para trabalhar e eu corria para a casa de minha avó paterna (Luiza, a quem carinhosamente chamo de “Pris”). Ela, afetivamente como sempre, estendia a rede no alpendre da casa, convidando-me para dormir. No vai e vem da rede, ouvia “estórias” que ela contava sobre um livro que havia lido nos tempos de professora. Este livro se chama Vingança, não. Lembro que minha avó falava em um tal de Chico Pereira e eu a perguntava: “– Quem foi Chico Pereira, vó?” Ela respondia: “– Foi um cangaceiro, meu filho. Mas que não fazia mal a ninguém. Foi um jovem injustiçado. Mataram o pai dele, e ele teve que se vingar”.
Cariri Cangaço em Visita a Fazenda Jacu, de Chico Pereira
As forças das minhas escolhas e do destino me trouxeram até a escrita deste
trabalho, aqui estou tentando me aventurar pelas redes das memórias interessadas, que
produziram múltiplas faces para o cangaceiro Chico Pereira. Esse título foi também
uma forma de homenagear a minha querida avó Luiza. Só agora posso tentar esboçar
uma resposta à pergunta que fazia na rede das memórias da minha “Pris”: – Quem foi
Chico Pereira, vó? Para tanto, gostaria de convidar o amigo leitor para conhecer
como montei essa resposta nos três capítulos apresentados a seguir. No primeiro capítulo, procuro compreender como o cangaço passou a ser objeto de estudo da escrita da história e como seus primeiros escritos tecem memórias sobre esse fenômeno e os seus sujeitos. Para isso, uso os livros: O Cabeleira (1876), de Franklin Távora; Heróis e bandidos: os cangaceiros do Nordeste (1917), de Gustavo Barroso; Lampeão: sua história (1926), de Érico de Almeida; e Lampião (1933), de Ranulfo Prata. Esses dois últimos forjaram uma memória negativada sobre os corpos dos cangaceiros. Partindo disso, problematizo a construção de uma “memória maldita” sobre o corpo do cangaceiro Chico Pereira, que foi empreendida pelos discursos interessados dos jornais e dos processos criminais.
No segundo capítulo, busco problematizar a reconstrução memorialística sobre Chico Pereira, mobilizada pela publicação do livro Vingança, não; escrito pelo seu filho sacerdote, Francisco Pereira Nóbrega. Usando o conceito de lugar social de produção, desenvolvido por Michel de Certeau, almejo entender como o discurso lançado pelo livro parte de um lugar que condicionou as escolhas feitas pelo autor para reescrever a história do seu genitor. No segundo momento, analiso as condições e possibilidades que proporcionaram a escrita do livro Vingança, não; ser aceita dentro da ordem discursiva de seu tempo.
No último capítulo, proponho uma análise do livro Vingança, não, pensando como o filho reescreveu a trajetória do pai no cangaço. Para depois, apresentar como a escrita da história desse personagem se apropriou das memórias trabalhadas até aqui, ao tomar Chico Pereira como objeto de estudo. Em outras palavras, qual memória foi lembrada ou esquecida pelos pesquisadores? A “maldita”? Ou a redentora escrita pelo autor de Vingança, não? A partir de agora, espero apresentar ao amigo leitor o que concebo com as múltiplas faces do cangaceiro Chico Pereira.
Continua...
Guerhansberger Tayllor
Pesquisador de Lastro, PB
Parte de Monografia:
"Nas Redes das Memórias:As múltiplas faces do Cangaceiro Chico Pereira"
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