No dia 24 de junho de 1578, um Exército de 24 mil portugueses, comandado pelo seu rei dom Sebastião I, partiu de Lisboa e após quase um mês navegando pelo Atlântico em 847 embarcações chegou a Tânger, no Marrocos. Dali marchou por sete dias até a cidade de Alcácer-Quibir. O objetivo era atacar, com seus cavaleiros, lanças, espadas, arcabuzes e canhões, o rei marroquino Abd al-Malik. A vitória mataria dois coelhos: afastaria as ameaças dos muçulmanos ao litoral português e o país seria o protagonista de um processo de cristianização e colonização do norte da África.
Mas o desastre foi total para os portugueses. Abd al-Malik também tinha cavaleiros, lanças, espadas, arcabuzes e canhões. E a vantagem de um Exército de 60 mil homens. Três marroquinos para cada português. Metade do Exército lusitano foi morto na batalha e a outra metade, presa.
O corpo de dom Sebastião nunca seria encontrado. Aos 24 anos, o rei não deixou herdeiro ao trono e Portugal seria governado pela Espanha por 60 anos. Do fim misterioso de dom Sebastião surgiu o sebastianismo, a crença mística de que ele voltaria para afastar o domínio estrangeiro ou para livrar dos seus opressores os pobres e infelizes. O mais popular divulgador do sebastianismo foi o sapateiro da vila portuguesa de Trancoso Gonçalo Annes Bandarra, que previu, em poemas, a volta de dom Sebastião, “o Desejado”.
Suas Trovas fizeram enorme sucesso. Foram proibidas pela Inquisição, mas continuaram circulando clandestinamente por décadas, mesmo após sua morte. A lenda se espalhou por Portugal e, 260 anos mais tarde, tornou-se realidade no alto de uma montanha próxima à cidade de São José do Belmonte, sertão de Pernambuco, transformando-se em um dos episódios mais bizarros e sinistros da história brasileira.
Tudo começou em 1838, na Pedra Bonita (hoje, Pedra do Reino) – um platô encimado por dois rochedos paralelos, cada um com 30 m de altura –, quando João Antônio Vieira dos Santos começou a abordar os habitantes mostrando-lhes duas pepitas, as quais ele dizia serem preciosas. João Antônio afirmava que as havia conseguido graças ao rei dom Sebastião, que o conduzia todos os dias em sonho a seu esconderijo. O rei português ainda lhe teria indicado que o desencanto e a revelação de seu reino estariam próximos e, assim que isso acontecesse, ele retornaria ao mundo como o Messias. Para dar fundamento, digamos, acadêmico a seus argumentos, o profeta levava consigo, além das pedrinhas, os textos de As Trovas do Bandarra, que tanto sucesso haviam feito em Portugal.
“Esse fato demonstra a perspicácia do falso profeta, que, conhecendo o nível de esclarecimento de seus ouvintes, apropriou-se de uma narrativa de convencimento”, diz Marcio Honorio de Godoy, da PUC-SP e autor de O Desejado e o Encoberto, sobre o sebastianismo. Moradores de sítios vizinhos começaram a aderir à crença e visitar o complexo rochoso encantado, onde dom Sebastião dormia, segundo suas pregações. Com a popularidade crescendo, o profeta foi coroado rei de Pedra Bonita, cargo provisório enquanto dom Sebastião não despertava. Mas a agitação atraiu os olhares das autoridades.
O movimento provocava o esvaziamento da mão de obra rural e disseminava uma seita pagã. Enfim, um caso de polícia e de Igreja. O padre Francisco José Correia, respeitado na região, foi acionado. “O embusteiro João Antônio então se apresentou ao sacerdote, arrependeu-se de sua conduta e devolveu-lhe as falsas pedras”, conta Belarmino de Souza Neto, historiador e autor de Flores do Pajeú: História e Tradições.
O que deveria ser o fim do sebastianismo sertanejo gerou uma crença ainda mais fanática e perigosa. João Antônio assumiu a farsa e saiu da cidade, mas antes passou a coroa para o cunhado João Ferreira. O segundo rei de Pedra Bonita também dizia ter visões de dom Sebastião e intensificou a divulgação da profecia. Carismático, ganhou muita popularidade e conseguiu aumentar o número de seguidores para 300. Eles o chamavam de “Sua Santidade El-Rei” e beijavam-lhe os pés. Decidiu estabelecer sua corte ali mesmo, junto às duas grandes rochas de Pedra Bonita – local de rituais de desencantamento que permitiram ao outro rei, o desaparecido em Alcácer-Quibir, e que no momento dormia, voltar ao mundo real.
É nesse momento que as coisas começaram a degringolar. Ferreira decidiu estabelecer sua casa em um dos blocos de rocha. Nela, eram promovidos festejos e beberagens entre seus associados, que se drogavam com manacá e jurema, ervas com propriedades alucinógenas, para conseguir “entrar” no reino de dom Sebastião. Na segunda torre de pedra, foi escavado o santuário – que servia de refeitório e para os rituais de desvirginamento, nos quais, após cerimônias de casamento, as noivas eram oferecidas em primeira mão ao monarca.
O que o novo rei pregava foi registrado, em 1875, por Antônio Attico de Souza Leite, do Instituto Arqueológico da Província de Pernambuco. “Um iluminado ali congregou toda a população para o advento do reino encantado do rei dom Sebastião, que irromperia castigando, inexorável, a humanidade ingrata”, escreveu. O dia a dia dos sebastianistas era ocupado por rezas e cantorias. Na rotina não entravam a preocupação com vestimentas ou com a higiene. Também não se tomava o cuidado de cultivar vegetais ou criar animais. Caravanas de jagunços de confiança do rei eram despachadas para recolher doações ou saquear fazendas vizinhas e, se possível, buscar novos adeptos.
Ferreira tinha ideias próprias de quais seriam os rituais exigidos para promover o desencantamento de dom Sebastião. “Era necessário banhar as pedras e regar todo o campo vizinho com sangue dos velhos, dos moços, das crianças e dos irracionais”, registrou Antônio Attico. A loucura começaria para valer na manhã de 14 de maio de 1838. Ferreira anunciou que, numa visão, dom Sebastião lhe garantira que o sangue dos seguidores o traria de volta.
Durante três dias, os fiéis, embalados por gritos, danças hipnóticas, música e bebidas alcoólicas, mataram 30 crianças, 12 homens, 11 mulheres e 14 cães. Pais e mães traziam como oferendas partes do corpo dos filhos. Aos pés do rei, arrancavam orelhas, línguas, dedos dos pés, das mãos ou genitais, relata Antônio Attico, baseado em testemunhas. Os cadáveres amontoavam-se e eram colocados na base das duas pedras de maneira simétrica, separados por sexo, idade e “qualidade”, esta última determinada de acordo com o tipo de promessa e da entrega de entes queridos ao sacrifício que eles houvessem feito. Quem se recusava ao sacrifício era tido como infiel e desprezível. “Os mais fanáticos entendiam tal recusa como uma quebra na continuidade do ritual de desencanto”, afirma Honorio de Godoy.
A loucura assassina de Sua Santidade El-Rei fez surgir um terceiro personagem. Pedro Antônio Viera dos Santos, irmão do primeiro rei, João Antônio, resolveu frear o ritual. Tomou a palavra e fez um discurso carismático anunciando que ele também tinha uma mensagem de dom Sebastião para divulgar. “Ele anunciou que dom Sebastião lhe apareceu em uma visão cobrando o sangue do segundo rei para o desencantamento ser concluído”, afirma o historiador Belarmino de Souza.
Os fiéis apoiaram imediatamente a sugestão e começaram a gritar: “Viva El-Rei dom Sebastião! Viva nosso irmão Pedro Antônio!” Deposto do seu título e na condição de um simples súdito, João Ferreira, o amalucado messias, foi arrastado ao sacrifício. Seu crânio foi esmigalhado e o corpo amarrado, pés e mãos, ao tronco de duas árvores grossas. Ao vencedor, Pedro Antônio, foi passada a coroa. Era ele, agora, o terceiro regente de Pedra Bonita. Sua primeira medida foi decretar a suspensão imediata dos assassinatos.
Mas tamanho horror não poderia escapar às autoridades. Enquanto no alto do morro a transição entre os dois reinados acontecia, as denúncias dos sacrifícios humanos chegavam ao conhecimento do major Manuel Pereira da Silva, autoridade militar de São José do Belmonte. Um vaqueiro, José Gomes, fugido de Pedra Bonita, relatou as barbaridades. Curiosamente, o delator destacava a frustração dos integrantes por terem sacrificado inocentes em vão, já que dom Sebastião não havia desencantado.
O major partiu no dia seguinte rumo à Pedra Bonita. Liderava um grupo formado por dois de seus irmãos, Cypriano e Alexandre, e 26 soldados. Após um dia de caminhada, e ainda distante do local da seita, a caravana fez uma pausa embaixo de alguns umbuzeiros. A poucos metros do abrigo, no entanto, encontrou-se de frente com o novo rei dos sebastianistas, Pedro Antônio, acompanhado de um séquito numeroso de pessoas armadas com porretes e facões.O rei e sua corte haviam deixado Pedra Bonita fugindo do cheiro dos cadáveres insepultos.
O encontro pegou os dois grupos de surpresa. Os militares, em campo aberto, pareciam em desvantagem diante dos sebastianistas. Mas estes estavam exaustos. Na batalha que se seguiu, o major ganhou a guerra, mas pagou caro pela vitória. O rei, Pedro Antônio, e 16 de seus seguidores foram mortos. Do lado dos militares, cinco vítimas fatais, inclusive os dois irmãos do major. Ali, debaixo dos umbuzeiros, terminava, em 17 de maio de 1840, o sangrento reinado dos sebastianistas da Pedra Bonita, sem que dom Sebastião acordasse para socorrê-los. O messianismo não se extinguira no imaginário brasileiro. Grupos semelhantes surgiram. Um dos maiores, no interior da Bahia, em 1896, foi liderado por Antônio Conselheiro e gerou a Guerra de Canudos.
Postagem por Narciso Dias - Conselheiro Cariri Cangaço
Fonte: Facebook
Postagem por Narciso Dias - Conselheiro Cariri Cangaço
Fonte: Facebook
SAIBA MAIS - LIVROS
No Reino do Desejado: A Construção do Sebastianismo em Portugal nos Séculos XVI e XVII -
Jacqueline Hermann
Companhia das Letras, 1998.
Flores do Pajeú: História e Tradições
Belarmino de Souza Neto
Biblioteca Pernambucana de História Municipal, 2004
PARABÉNS COMPANHEIRO NARCISO DIAS, PELO BELO HISTÓRICO AQUI CONTADO, ABRAÇOS: BOSCO ANDRÉ.
ResponderExcluirExtremamente instrutivo o texto.
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