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Olhar sobre o Cangaço Por:Guerhansberger Tayllor


Gostaria de esclarecer para o amigo leitor, que não tenho a pretensão de buscar a “origem” do cangaço, pois estaria caindo no que o célebre fundador da escola dos Annales, Marc Bloch, chamou de o “ídolo das origens” . Nesse primeiro momento do capítulo, através da historiografia do tema, objetivo compreender como o cangaço emergiu como campo de estudos. E como essas escritas teceram memórias sobre o cangaço e seus agentes históricos. Para isso, reflito a partir dos livros: O Cabeleira (1876), de Franklin Távora; Heróis e bandidos: os cangaceiros do Nordeste (1917), de Gustavo Barroso; Lampeão: sua história (1926), de Érico de Almeida; e Lampião (1933), de Ranulfo Prata .  

Escolhi abordar esses livros porque os dois primeiros foram pioneiros no estudo sobre o cangaço, proporcionando-nos notar como esse fenômeno passou a ser concebido no momento em que estava emergindo como campo de estudos. Já os dois últimos, criam inscrições negativadas para os corpos de Lampião e para o cangaço. A partir deles, tento pegar o fio condutor para compreender como vai ser produzida uma “memória maldita” para o cangaceiro aqui estudado. 

Em 1876, João Franklin da Silveira Távora, em um esforço de explicar o nacional pelo regional, publicou O Cabeleira. Considerado o primeiro romance histórico do cangaço, resultou da necessidade que o autor teve em apresentar o valor literário e a riqueza histórica e cultural da então região Norte. Cearense, nascido no dia 13 de janeiro de 1842, mudou-se dois anos depois para o Recife, onde residiu até 1874. Inserido em um contexto histórico de decadência econômica das elites da região Norte, que perdiam espaço no cenário nacional para a economia cafeicultora e a cultura sulista em ascensão, as províncias do Norte foram colocadas em segundo plano .



Diante desse panorama, Távora propôs uma forma literária que prezasse pelo que acreditava ser a reprodução fiel do cenário regional, apontando para a divulgação dos costumes, problemas e culturas nortista que perdiam espaço para os valores sulistas. Destacando a especificidade e a busca da autonomia literária do Norte em relação ao Sul, no prefácio do livro O Cabeleira, Távora afirma: Proclamo uma verdade irrecusável. Norte e Sul são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua, porque o gênio de um não se confunde com o do outro. Cada um tem suas aspirações, seus interesses, e há de ter, se já não tem, sua política (TÁVORA, 2010. p. 14-15).  

Na busca pela divulgação das histórias do Norte, Távora narrou o passado da então província de Pernambuco por meio das façanhas do jovem aventureiro José Gomes, o Cabeleira . Afamado bandoleiro e tendo seus feitos cantados por trovadores sertanejos anônimos, foi tomado como objeto inicial de representação da literatura do Norte, através da escolha de Távora. Segundo Dutra (2013), é notório perceber que o autor buscou nos ícones populares inspiração para personagens que geravam admiração devido à ambiguidade de suas histórias, possibilitando criar indivíduos que passariam a representar à região. Portanto, o cangaceirismo aparece pela primeira vez na literatura como elemento simbolizador da região Norte. 


Wescley Rodrigues, Reclus de Pla, Guerhansberger Tayllor e Iris Mendes em 
dia de Cariri Cangaço

De acordo com Araújo e Ferreira (1999), José Gomes nasceu no ano de 1751, em Glória do Goitá, Pernambuco, era filho de Joaquim Gomes e Joana. Teve sua infância e adolescência (de)formada pelos conflitos entre a educação materna e a paterna. Enquanto sua mãe tentava lhe catequizar com os ensinamentos religiosos e “humanistas”, seu pai o induzia a praticar crimes contra animais e depois contra humanos. Com isso, o Cabeleira oscilava entre esses dois polos, mas Joaquim Gomes arrastou o seu filho para o banditismo, transformando-o em um fora da lei sanguinário. Távora retratou o cangaço como sendo o lugar do terrível, do não humano, o polo oposto do bem. Segundo ele: “O cangaço é voz sertaneja. Quer dizer o complexo das armas que costuma trazer os malfeitores” (TÁVORA, 2010. p. 140).  

Para despertar o seu lado “humano”, o Cabeleira precisaria buscar romper com o cangaceiro que foi produzido pelos ensinamentos do pai. Não era possível expressar seu sentimento amoroso por Luisinha (o amor da sua vida) sem abandonar a “última arma do terrível cangaço de outrora” (TÁVORA, 2010. p. 130). Um personagem ambíguo, lutando entre o bem e o mal, foi assim que Távora apresentou o cangaceiro do Norte. As histórias e memórias dos “bandidos heróis” também foram objetos de estudo do intelectual memorialista cearense Gustavo Barroso. Em 1917, foi publicada a primeira edição do livro Heróis e bandidos: os cangaceiros do Nordeste.

Trabalho que se tornou uma espécie de paradigma explicativo para os estudos do cangaço, tendo em vista que diversos pesquisadores tomaram Barroso como ponto de apoio para reflexões posteriores sobre o banditismo. Por conseguinte, podemos dizer que Barroso se notabilizou como um tipo autor que Foucault denominou de: “fundador de discursividade”. Ou seja, o autor que possibilita a formação de outros textos a partir dos seus escritos. De acordo com Ferreras (2003), o principal aspecto do livro escrito pelo memorialista cearense é a função estabelecida pelo meio ambiente, sendo decisivo para a compreensão e explicação da forma cultural dos habitantes do sertão nordestino. 


Gustavo Barroso

A geografia exerceria uma influência ímpar para se perceber as formas em que a sociedade se desenvolve e transforma seus indivíduos. Portanto, a condição humana passaria a ser  definida pelo meio ambiente que, por sua vez, condiciona os seus comportamentos. O cangaceirismo se constituiria como o fruto do seu meio social, como afirma Barroso:  


O clima sertanejo tem a máxima culpa na produção da cangaceiragem [...] foi a alma do sertão que moldou e fundiu a do cangaceiro. 

A fim de viver nessa região agreste, batida pelo sol, é demasiadamente sóbrio. O eterno combate contra o meio inóspito desenvolve-lhe a coragem e a resistência. A ameaça continua de perceber dá-lhe o fatalismo e estóica resignação para todos os males (BARROSO, 2012. p. 23-24). O determinismo geográfico é lançado por Barroso como uma forma explicativa para a análise das causas e motivações do cangaceirismo no Nordeste brasileiro. Modelo que influenciará os trabalhos da temática de forma maciça, a partir da década de 1960, quando o interesse pelo estudo do cangaço adentou nas Universidades e recebeu forte influência do marxismo.  

A justificativa pelo meio social também será um dos pilares de sustentação no processo de construção do mito em torno do cangaceiro. Ao recorrer à historiografia do tema, é comum percebermos a repetição do discurso de vitimização pelas circunstâncias vivenciadas pelos indivíduos que passaram a usar o cangaço como forma de vida. O caso mais conhecido é o de Lampião, que justificou sua entrada no cangaço para matar Zé Saturnino e José Lucena: o primeiro, acusado de ser o causador das intrigas familiares com os Ferreiras; e o segundo, de ter matado seu genitor. Para Barros (2007), esse é o início do processo de mitologização da história dos Ferreira e de Lampião. 



Mas não apenas Lampião, outros cangaceiros, juntamente com seus familiares, lançaram mão desse discurso da justificativa pelas circunstâncias do meio na tentativa de defesa ou de superação da memória negativa construída sobre os integrantes do cangaço, como é o caso do personagem estudado neste trabalho, Francisco Pereira Dantas (Chico Pereira). Voltando para Barroso, Heróis e bandidos não deixa de ser um livro que tece admiração pelos cangaceiros. Contudo, também de confronto com essa situação (atraso, desmoralização e incivilização das terras nordestinas). Dessa forma, Barroso construiu distintos arquétipos de bandidos, diferenciando as diversas possibilidades e ambiguidades do cangaço. Assim, podemos perceber bandidos com características particulares como psicóticos, nobres, selvagens, etc. 

É notório que o autor defende alguns e condena outros, justificando o título do livro: Heróis e bandidos (FERRERAS, 2003. p. 173). O cangaço que emergiu como um campo de contradições no “bandido herói” de Távora, e nos “Heróis e bandidos” de Barroso, foi reconstruído, pelas duas primeiras biografias de Lampião, como um espaço do infame, dos corpos e “memórias malditas”. A estigmatização e decodificação do corpo bandido de Lampião fomentou a construção de uma memória negativa em torno de outros cangaceiros em atuação na época, tendo em vista que Lampião passou a ser a figura que sintetizou o cangaço e todas as ações desse fenômeno.  

Segundo Dutra (2013), Virgulino é a figura que levou os indivíduos a fazerem uma relação automática com o cangaço. Portanto, falar de Lampião é falar ao mesmo tempo do cangaço. Embora reconheça a especificidade e complexidade de cada caso (cangaceiro), não resta dúvida que Lampião passou a representar o cangaceiro do Nordeste Brasileiro, a ponto dos escritos sobre seu corpo se estenderem para definir a conduta e as ações dos demais. Na medida em que as notícias jornalísticas abordaram com maior ênfase as práticas cangaceiras como vergonha nacional e a incapacidade dos governantes de estancarem tais condutas, os “donos do poder” começaram a produzir uma “memória maldita” sobre os cangaceiros, lançando mão de práticas discursivas em torno do combate ao banditismo, como meio para angariar recursos do governo federal. 



O livro de Érico de Almeida, Lampeão: sua história foi um marco dessa produção maldita. No ano de 1926, a Imprensa Oficial do Estado da Paraíba publicou a primeira biografia de Lampião, escrita pelo jornalista Érico de Almeida. Segundo Cardoso (1996), o texto foi encomendado pelo então Presidente João Suassuna e auspiciada pelo Deputado José Pereira Lima (Zé Pereira, de Princesa Isabel). Essa escrita tinha como objetivo denegrir a imagem de Lampião e exaltar o combate ao cangaceirismo pelo Estado, comandado por seus representantes: João Suassuna, no litoral; e José Pereira Lima, no sertão.

O livro de Érico de Almeida apresentou um claro projeto de memória: construir uma identidade de combate ao cangaceirismo pelo Estado da Paraíba, ressaltando os esforços de João Suassuna, a quem o autor tratou de “o anjo do bem”. Para esse fim, reservou o primeiro capítulo do livro, chamado: O bandidismo e a ação do presidente João Suassuna. Como toda memória é seletiva, permeada pela dialética da lembrança e do esquecimento, o escritor buscou lembrar que o Estado da Paraíba não media esforços para combater o cangaceirismo. Ao mesmo tempo, iniciou uma luta para que as acusações feitas a João Suassuna e José Pereira Lima, de serem protetores de cangaceiros, caíssem no esquecimento.  

O Governo de João Suassuna (1924-1928) vinha recebendo fortes críticas administrativas pela inércia no combate aos grupos de cangaceiros que atuavam no Estado, como também de possíveis relações de proteções aos mesmos. Acusações que se acentuaram depois que a cidade paraibana de Sousa foi invadida pelos cangaceiros, no dia 27 de julho de 1924. O acontecimento recebeu notável destaque pelos jornais de vários estados do Nordeste e do país. Nessa circunstância, o Governo do estado precisava dar uma resposta às críticas e recuperar a imagem que estava em estágio acelerado de difamação. 

João Suassuna ao centro

Uma das primeiras medidas tomada por João Suassuna foi providenciar a elaboração de uma memória escrita sobre as suas ações frente ao cangaceirismo, buscando maquiar as relações coronelísticas que permeavam seu governo, em que era frequente o uso dos serviços de homens armados para garantir o seu poder e de seus correligionários, atacando grupos rivais no cenário político. Desta forma, a primeira biografia de Lampião pode também ser considerada uma estratégia do Presidente da Paraíba, na construção de uma memória governamental de combate ao cangaceirismo e, ao mesmo tempo, uma contra-memória a esse fenômeno e sua relação com o Estado e seus principais representantes. 

Portanto, Érico de Almeida não poupou palavras apologéticas para definir João Suassuna e seus serviços prestados contra o bandidismo. Foi assim que o autor começou o seu texto: "Publicando estas notas de reportagem, acerca do super-bandido Lampeão, não posso eximir-me ao dever de traçar algumas linha a propósito da extraordinária actuação do sr. dr. João Suassuna, honrado presidente do Estado, na grande campanha contra o banditismo. S. exc., mau grado a insuperável crise financeira que nos asphyxia, não tem recuado perante sacrifícios de qualquer especie, para jugular a terrivel praga que devasta e extermina as nossas fontes vitaes no alto sertão"(ALMEIDA, 2013. p. 7). 

Diante de uma linguagem afetiva e extremista a respeito do presidente João Suassuna, a autoria do livro foi colocada em questão ao longo dos anos. De acordo com Cardoso (1996), já em fins da década de vinte, chegava a Paraíba o poeta e escritor Mário de Andrade, em “missão cultural” para estudar as manifestações da chamada cultura popular. Ao ler a primeira biografia de Lampião chegou à conclusão que Érico de Almeida era o pseudônimo de João Suassuna. Essa hipótese é fortemente defendida e aceita por muitos pesquisadores da temática. Mas o que interessa aqui é que o livro construiu uma memória gerenciada pelo Governo de uma implacável perseguição ao cangaceirismo na Paraíba. Tese que muitos escritores reproduzem até hoje, sem levar em consideração os interesses e o lugar de produção dessa memória oficial. 

Com relação a Lampião e ao cangaço, o livro criou uma espécie de “gramática maldita”, adjetivando esses corpos como o lugar do infame, do sanguinário, do nefasto e de uma terrível praga que assolava o Nordeste. Homens de vidas infames desacreditados pela lei, com má fama, cujos corpos precisavam ser disciplinados pelo poder controlador do Estado. Foi trilhando essa mesma perspectiva e produção memorialista que a segunda biografia de Lampião veio reforçar a construção de um espaço negativado para o cangaço e seus personagens.

Continua...


Guerhansberger Tayllor
Pesquisador de Lastro, PB
Parte de Monografia:
"Nas Redes das Memórias:As múltiplas faces do Cangaceiro Chico Pereira"

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