Este trabalho é uma tentativa de leitura da trilogia de Honório de Medeiros. Trilogia que nasce com a publicação de Massilon, em 2010, perpassa a publicação de História de cangaceiros e coronéis, 2015, e tem o seu desfecho com a publicação de Jesuíno Brilhante, 2020
Honório de Medeiros propõe em sua
obra um estudo histórico sobre o cangaço a partir das relações de poder, um
estudo sobre as relações de poder e uma nova proposta para escrita da história
ao considerar que a história deve ser entendida, escrita e explicada por uma
perspectiva analítica e interpretativa.Como condição necessária para o trabalho
de pesquisa, o autor apresenta uma revisão da literatura preexistente acerca do
cangaço, propondo uma classificação em fases, tipos de estudos e tipos de
autores, procurando situar nesse contexto a sua proposta de abordagem.
As fases, que trata
por ondas, são três: a fase da produção dos fatos, quando se passaram os
acontecimentos; a fase da coleta dos fatos, quando os fatos passam a ser
registrados; e uma terceira fase, que deve ser a elaboração de teorias. Três também são os
tipos de texto: os que fantasiam, os que narram e os que pensam. E considera
também a presença de zonas de interseção: narrações que analisam; fantasias que
narram etc.
Quanto aos autores, reconhece três
grupos distintos: um grupo que reúne cantadores de viola, cordelistas,
contadores de estórias, xilogravuristas e poetas; um grupo que nomeia de
pesquisadores do cangaço, que são aqueles que se debruçam 192 sobre o tema; e o
grupo que congrega os pesquisadores acadêmicos sediados nas universidades. A
par desse contexto, elege, por sua vez, um caminho próprio de investigação que,
considera, deve partir de uma leitura crítica das fontes, aplicando uma
metodologia adequada e suportes teóricos condizentes. É essa a proposta que
desenvolve na construção da sua trilogia, o que se pode albergar em cinco
vertentes de abordagem distribuídas nos três volumes publicados.
A primeira vertente é o que se pode
considerar estudos sobre os estudos, que seriam os trabalhos em que o autor
expõe uma reflexão e uma visão crítica sobre os estudos existentes acerca do
cangaço.No primeiro volume, Massilon, é possível identificar os
seguintes textos nessa vertente: “Aplicação do método da ciência”; “O cangaço
em nova onda”; “A nova onda do cangaço”. No segundo volume, História de
Cangaceiros e Coronéis, os capítulos “Epifenômeno do cangaço”, “Tipos de
textos sobre o cangaço” e “Sobre história e conhecimento escolar”.
Um segundo viés compreende estudos
críticos mais aprofundados sobre as teorias e abordagens sobre o cangaço, quais
sejam, a teoria do escudo ético, do estudioso Frederico Pernambucano de Melo —
ensaio que integra o segundo volume, História de Cangaceiros e Coronéis —;
e um estudo crítico sobre Câmara Cascudo e o cangaço, adendo a Jesuíno
Brilhante, terceiro volume da série. O terceiro viés se volta para as
biografias e os perfis de cangaceiros, coronéis e outras figuras históricas do
contexto.
Uma quarta abordagem se detém aos
episódios e a outros aspectos. Em episódios, o ataque de Lampião a Mossoró; em
aspectos, podemos elencar o pacto dos governadores e o Rio Grande do Norte no
tempo dos coronéis. A quinta perspectiva, que perpassa todas as anteriores, é o
arcabouço metodológico e teórico. A metodologia adotada é plurimetodológica,
voltada para uma diversidade de fontes de pesquisa, e envolve levantamento
bibliográfico; pesquisa documental, que resulta do acesso a fontes documentais
diversas; e pesquisa etnográfica, que é a pesquisa de campo, que alberga a
coleta de depoimentos, realização de entrevistas e visita aos locais dos
acontecimentos.
A pesquisa e o levantamento
bibliográfico se concentram em livros: obras gerais de história do Rio Grande
do Norte, trabalhos monográficos sobre cangaceiros, biografias, memória,
genealogia e estudos teóricos no campo da ciência, filosofia, biologia,
sociologia, direito, ciência política etc.; cordéis diversos, que contam a
história de cangaceiros e seus feitos; e revistas e jornais de ontem e de hoje.
Documentos diversos, compreendendo certidões de batismo e de óbito,
inventários; peças jurídicas, como processos, representações, denúncias,
pareceres, relatórios; cartas pessoais e cartas abertas (publicadas em
jornais). Todos são fontes exploradas e, em sua maioria, reproduzidas a título
de citação, adendo ou anexo.
Depoimentos, entrevistas e o “Diário
de Viagem” — quarta parte do volume Massilon —, que relata o
percurso da pesquisa de campo. Há também toda uma preocupação em documentar o
trabalho de pesquisa em notas de referência, aditivas e explicativas, em rodapé
e/ou ao final de cada volume, referendando as fontes pesquisadas, os
depoimentos colhidos e as entrevistas realizadas.
A título de anexo, o autor cuida da
reprodução de documentos, seja em fac-símile, seja transcrito. Também há a
menção, ao final de cada volume, das fontes bibliográficas consultadas. A par de
todo esse suporte metodológico, Honório de Medeiros desenvolve a sua teoria, o
alicerce para observar e compreender o fenômeno do cangaço e o estudo das
relações de 194 poder, e o faz ao apresentar os dados coletados, a análise e a
interpretação, refutando hipóteses consagradas pela historiografia e propondo
um novo olhar para a história.
A invasão de Lampião a Mossoró ganha
uma nova proposta de análise que considera as relações de poder e interesse dos
coronéis e refuta as premissas postas, construindo um novo paradigma para
entender a história. O mesmo acontece ao observar o pacto dos governadores como
decorrência dessa relação de poder; e não é diferente quando se debruça sobre a
dualidade “cangaceiro, herói ou bandido?” Honório de Medeiros não se julga fiel
da balança ou solucionador de questões históricas, mas apresenta prismas
analíticos e interpretativos se fiando na base plurimetodológica que adota.
A sua tentativa de biografar Massilon
esbarra em uma série de dificuldades oriundas dos desencontros e conflitos de
informação que permeiam os textos sobre o cangaço e, também, na ausência de
dados.O nome é a primeira verdade a encontrar para contar Massilon. Com tantos
nomes possíveis e pistas, Honório de Medeiros se encontra diante de um baralho
embaralhado: Benevides, Massilon Leite, Massilon Diógenes, Antonio Leite? Uma
figura e tantos nomes, qual seria?
O pesquisador é aquele que sabe aonde
deve ir. E Honório de Medeiros vai em busca dos registros de nascimento e
batismo e nada encontra, até que uma pista o leva ao inventário do pai do
cangaceiro e lá está o verdadeiro nome de Massilon: Macilon Leite de Oliveira. Mas
não se dá por satisfeito, pois sabe que pesquisar é entender as circunstâncias
das fontes, e se faz a pergunta que deixa também para o leitor: como saber se o
escrivão não se enganou? Honório de Medeiros entende que encontrar uma possível
resposta não é dirimir uma dúvida. Assim, o autor também revela mais uma faceta
do seu trabalho: um projeto de como se deve construir a história.
Honório de Medeiros é aquele que
compreende que fazer história é não se contentar com o que está posto e, dessa
forma, parte numa viagem em busca de novas fontes, que alimentam novas versões
da história, ciente de que só a par de todas elas, é possível analisar e
interpretar. O pesquisador é também, para Honório de Medeiros, aquele que
reconhece a ausência de fontes de pesquisa e que desconfia, compara, checa e
confronta todos os fatos. A construção de Massilon, a
biografia, obedece a uma forma de apresentação sistemática que nasce da divisão
lógica do autor para a exposição do tema. A primeira parte é dedicada ao motivo
(capítulo “A busca por Massilon”) e ao contexto (capítulo “O Rio Grande do
Norte e Sertão”). A segunda parte se volta para a descoberta e a revelação do
biografado: como se chamava, onde e quando nasceu, quais eram as suas feições —
e nesse quesito há toda uma investigação para identificar e recuperar a
presença de Massilon em uma fotografia, desvendando, assim, o único retrato
possível do cangaceiro. Além disso, o autor aborda temperamento, fatos da
vida, registros outros e, por fim, o fim, a morte do biografado.
Outro não é o percurso que promove ao biografar Jesuíno Brilhante, tanto nos capítulos que lhe dedica na primeira parte de História de Cangaceiros e de Coronéis, quanto, cinco anos depois, no terceiro e último volume da trilogia, dedicado à história de Jesuíno Brilhante e ao aprofundamento da tese. O ataque de Lampião a Mossoró também ganha contorno em História de Cangaceiros e de Coronéis, seguindo o mesmo caminho de explanação, passo a passo. Honório de Medeiros introduz, apresenta e passa a considerar as hipóteses e os envolvidos, cangaceiros e coronéis, e chega ao campo de análise para, então, propor a sua própria tese para leitura e intepretação.Para tanto, o autor trabalha a construção dos conceitos. É pelo capítulo “Do conceito de cangaço”, na terceira parte do volume Massilon, que ele começa contrapondo as definições de cangaço e de banditismo.
Importante nessa conceituação é a
definição de Cascudo: “para o sertanejo [cangaço] é o preparo, carrego,
aviamento, parafernália do cangaceiro, inseparável e característica, armas,
munições, bornais, bisacos com suprimentos, balas, alimentos secos, mezinhas
tradicionais, uma muda de roupa, etc.” E também estabelece confrontos.Honório
de Medeiros refuta a concepção de bandido social proposta pelo historiador Eric
Hobsbawm. E vai mais longe: é impossível conceituar e explicar o cangaço em
razão das condições geográficas, sociais, econômicas etc.
Caldeirão que Honório de Medeiros
resumirá como “hipóteses do ambiente social” no seu “Esboço de conclusão”,
capítulo de Jesuíno Brilhante. Essa redução é simplista, considera,
e não abarca toda a complexidade e singularidade do fenômeno. Em Jesuíno
Brilhante, o autor considera novos aportes para a construção do conceito de
cangaceiro, levando em consideração que seriam figuras entre a santidade e o
banditismo. E sustenta que a teoria do escudo ético, de Frederico Pernambucano
de Mello, não é uma leitura que se aplica exclusivamente ao cangaço, e sim ao
banditismo de forma geral. Pernambucano teria partido, considera Honório de
Medeiros, da noção de fator moral apresentada por Câmara Cascudo em Vaqueiros
e Cantadores, que, por sua vez, teria bebido na fonte de Felipe Guerra,
em Ainda o Nordeste.
Tanto a noção de escudo ético quanto
a noção de fator moral consideram a justificativa moral do cangaceiro para
aderir ao cangaço como fator determinante, hipótese que Honório de Medeiros
propõe que possa ser substituída por uma teoria mais abrangente. Já no estudo
que empreende acerca de Câmara Cascudo e o cangaço — adendo do volume Jesuíno
Brilhante —, investiga a construção e o molde do pensamento cascudiano
acerca do tema. A perspectiva da ânsia de grandeza e impulso à revolta pessoal,
que serve para pensar o cangaço, lerá em Bertrand Russell; como colherá em
Albert Camus a noção de homem revoltado, que é aquele que, inconformado, reage,
para então propor a leitura da figura do cangaceiro a partir da noção de
outsider proposta por Howard S. Becker e Norbert Elias.
O outsider é o transgressor, o
desviante, o excêntrico que não espera viver com as regras estipuladas pelo
grupo. Dessa maneira, Honório de Medeiros propõe entender a figura do
cangaceiro pelo prisma do inconformismo. Compreender, e não julgar, alerta o
autor. E, assim, vai chegar ao conceito de cangaceirismo: é a história dos
inconformados, revoltados, outsiders. Outro conceito macro é o conceito de
coronelismo, que está atrelado a uma compreensão da estrutura de poder feudal
no Brasil monárquico e republicano. Honório de Medeiros se valerá do conceito
de coronelismo traçado por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder.
Seria o coronelismo aquela mesma
estrutura de poder que se verifica na Europa feudal, um mundo de senhores
arbitrários, cuja vontade era a lei, associados ao clero, proprietários de
terras e do subjugo dos homens. O coronelismo é, portanto, uma forma de
exercício do poder. Outros aportes sustentam a construção do seu pensamento
teórico. Honório de Medeiros parte da ciência por uma perspectiva ampla e
transdisciplinar como caminho possível. O autor considera o racionalismo
crítico do filósofo britânico Karl Popper para construir uma abordagem
científica e aplica as regras do método científico para propor uma lógica das
informações como forma de validar ou não as hipóteses e, assim, escrever a
história.
O autor também vai se valer da noção
de campo social do sociólogo francês Pierre de Bourdieu, que compreende a
realidade como uma malha aberta, cujos pontos de interseção, os atratores
sociais, congregam fatos e ações semelhantes, formando uma malha social, ou
seja, um campo. Essa compreensão de campo social lhe permite observar
cangaço e coronelismo como fenômenos do mesmo campo social, o campo social do
poder. Ao considerar o cangaço um fenômeno social, Honório de Medeiros parte do
postulado do cientista político, sociólogo e antropólogo francês Émile
Durkheim, em As Regras do Método Sociológico, e equipara fato
social a fato natural, ou seja, considera os fatos sociais como passíveis de
teste, comprovação e validação.
O fenômeno, portanto, pode ser
comprovado pelas suas leis de recorrência, e as hipóteses levantadas podem ser
testadas. Dessa forma, considera Honório de Medeiros, os fatos são passíveis de
serem testados para serem comprovados ou não. Outra contribuição importante no
construto da sua proposta é a aplicação da teoria da evolução, do biólogo
britânico Charles Darwin. Honório de Medeiros se apropria do darwinismo ao
compreender o comportamento humano como uma evolução constante, uma busca pela
sobrevivência e adaptação ao meio, e se aproxima da corrente da bio-história. No
que tange ao estudo das relações de poder, o referencial é o cientista
político, jurista e historiador italiano Gaetano Mosca e sua teoria de classe
política. Mosca entende que um fenômeno não deve ser apenas estudado em sua
forma concreta ou apenas nas suas manifestações formais. É preciso compreender
a dinâmica que se esconde e sustenta as relações de poder e interesse e, assim,
compreender que os grupos funcionam a partir dos seus interesses de poder. O
cangaço, nessa leitura, apresenta-se como uma manifestação de poder e revolta
dos excluídos.
É a partir dessa perspectiva e da
junção dessas partes que o autor conecta cangaceiros e coronéis e estabelece o
cangaço como resultado das relações de poder, e é assim que também escreve uma
história do poder.Honório de Medeiros lança nos três volumes de sua trilogia, e
em quase duas décadas de pensamento e reflexão, uma nova perspectiva teórica,
metodológica e conceitual para a pesquisa e a escrita da história, abrindo as
portas da história no Rio Grande do Norte, dos estudos sobre o cangaço e sobre
as relações de poder, para uma nova perspectiva no século XXI.
GUSTAVO SOBRAL é jornalista
e escritor. Publicou e organizou diversos livros, dentre os quais “As
Memórias Alheias” e “Os Fundadores”.
Ensaio publicado na Revista da Academia Norte-rio-grandense de Letras Nº66, jan-mar, 2021, p.191-199.
Fonte: http://honoriodemedeiros.blogspot.com/ - 11 de maio de 2021
Preciso desse livro. Urgente.
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