A obra é o resultado de um interesse que surgiu na pesquisadora durante sua adolescência. De acordo com Nadja, a própria mãe a chamou para assistir a um documentário sobre o cangaço quando mais jovem e, desde então, foi despertado o desejo em se aprofundar sobre o tema. “Quando fui cursar História, escolhi o tema para escrever meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e, dentro dele, escolhi falar sobre Maria Bonita, pois percebi que faltava algo que problematizasse esses muitos discursos”, lembra.
Para a pesquisadora, uma novidade acerca da imagem de Maria Bonita é perceber como ela era interpretada pelo olhar majoritariamente masculino e sobre o papel feminino na sociedade da época. “A partir de Maria Bonita podemos perceber como as mulheres foram – e são – representadas pelos discursos masculinos. Procuro fazer isso no meu livro, lançar esse olhar sobre a história que vem sendo contada há mais de 80 anos por jornais, cordéis e outros livros”
Segundo Nadja Claudino, as cangaceiras – apesar de passarem por conflitos através do contexto em que viviam – se portavam, na maioria dos aspectos, como as outras sertanejas, devendo obediência e fidelidade ao seu companheiro e sem tanto poder nas decisões de grupos. “As mulheres quando escolheram o cangaço ou quando foram levadas para essa vida involuntariamente, perceberam que seus papéis não eram mais os mesmos de quando viviam no seio da sociedade sertaneja”, analisa. “Essas mudanças não se deram apenas no âmbito social: o papel da mulher mudou nas questões ligadas à maternidade e também à feminilidade. As mulheres cangaceiras pariam, mas não maternavam seus filhos, pois o ambiente do cangaço já havia inserido as mulheres mas nunca foi espaço para crianças, frutos das relações amorosas dos cangaceiros. Deixar de ser mãe, no sentido do cuidado com seu filho, subverteu a lógica de uma feminilidade que só seria completa com a maternidade”.
As mulheres, como lembra a autora, não entravam nos bandos como um reforço armado, mas sim para servir como companhia aos cangaceiros. “Penso que Lampião e os outros não pretendiam deixar a vida do cangaço e procuraram formar uma sociedade em que houvesse espaço para a ‘vida doméstica’”.
Hoje se pode perceber, como aponta na obra, que Maria Bonita passou por pré-julgamentos a partir do próprio nome pelo qual se tornou conhecida, que são vistos na atualidade como posicionamentos estereotipados. “O olhar lançado sobre ela atende muito às discussões do momento que estamos vivendo de empoderamento das mulheres e de questionamentos sobre os papéis que nos foram impostos pela sociedade”, reforça a escritora. “Eu discuto o nome Maria Bonita, que era usado por jornalistas, mas não era usado dentro do grupo. É um nome que adjetiva apontando para a sua beleza, de como ela foi alvo de uma escrita libidinal, e de como a beleza é cobrada de nós, mulheres, e foi cobrada dela, até mesmo depois de morta”.
A “rainha sertaneja e mulher guerreira”, termos apontados por Nadja Claudino, são problemáticos por reduzir a imagem da mulher. “’Guerreira’ é um adjetivo utilizado incontáveis vezes para designar mulheres que sofrem, que mantém duplas jornadas de trabalho, ganham salários menores e se mantêm ‘belas’, suaves, amorosas, ‘maternais’ e ‘femininas’. Somos muitas Marias Bonitas e precisamos vencer grandes barreiras e julgamentos para escrevermos o nosso destino”, diz Claudino, que ressalta: “ A história de Maria Bonita é atualíssima”.
As histórias da mais famosa mulher do cangaço – como conta a pesquisadora Nadja Claudino, na obra Maria Bonita: entre o punhal e o afeto – não podem ser comprovadas, já que ela não sobreviveu para se lembrar do próprio passado.
“Ao contrário de Sila ou Dadá, que sobreviveram ao fim do cangaço, tudo o que se tem sobre Maria Bonita foi dito por pessoas que conviveram com ela ou saiu da imaginação dos escritores. Não encontrei nada que Maria Bonita tenha dito em entrevistas ou relatos próprios, e esse silêncio foi propício para que os outros falassem por ela”, julga.
A pesquisadora revela encontrar diversas representações da companheira de Lampião nas artes. “No cordel, por exemplo, Maria Bonita aparece como uma mulher capaz de derrotar um grupo de volantes, de comandar homens, de ser de fato uma guerreira. Numa minissérie televisiva da Rede Globo, ela aparecia cortando as orelhas das rivais. Surge também como uma mulher que intercedia junto à Lampião pela vida de algum sertanejo que ela julgasse inocente. Em matérias de jornais como o Diário de Pernambuco, ainda na época do cangaço, aparecia como mulher que dava chicotadas na cara das vítimas do banco”.
A pesquisa da paraibana, portanto, baseia-se também nessas possibilidades retratadas da companheira de Lampião. “É justamente sobre essas histórias que pode construir meu trabalho, não querendo trazer à tona uma verdade impossível de ser apreendida, mas sim os discursos criados sobre Maria Bonita. O que se sabe de fato é que ela pagou com a vida sua ousadia, teve que romper com o seu mundo para viver um amor radical com um fora da lei e foi e continua sendo alvo de julgamentos”.
Há, ainda, por outro lado, muito a ser descoberto sobre a figura histórica tão relevante para o Nordeste sertanejo. Partindo do que resultou em Maria Bonita: entre o punhal e o afeto, Nadja Claudino pretende explorar outros temas que conversam com o que ela aborda em seu livro. “Pretendo partir para outro tema que, de certa forma, dialoga muito com esse. Por enquanto, não penso em escrever outro livro sobre cangaço, mas tenho muito interesse que essa produção cresça e que a história das cangaceiras seja repensada”, finaliza.
Cairé Andrade
(Matéria publicada no jornal A União, em 26 de abril de 2020)
Nenhum comentário:
Postar um comentário