Diário de Antônio Conselheiro - Despedida
Praza aos céus que abundantes frutos produzam os conselhos que tendes ouvido; que ventura para vós se assim o praticardes; podeis entretanto estar certos de que a paz de Nosso Senhor Jesus Cristo, nossa luz e força, permanecerá em vosso espírito. Ele vos defenderá das misérias deste mundo; um dia alcançareis o prêmio que o Senhor tem preparado (se converterdes sinceramente para Ele) que é a glória eterna. Como não ficarei plenamente satisfeito sabendo da vossa conversão, por mim tão ardentemente desejada. Outra coisa, porém, não é de esperar de vós à vista do fervor e animação com que tendes concorrido para ouvirdes a palavra de Deus, o que é uma prova que atesta o vosso zelo religioso. Antes de fazer-vos a minha despedida, peço-vos perdão se nos conselhos vos tenho ofendido. Conquanto em algumas ocasiões proferisse palavras excessivamente rígidas, combatendo a maldita república, repreendendo os vícios e movendo o coração ao santo temor e amor de Deus, todavia não concebam que eu nutrisse o mínimo desejo de macular a vossa salvação (que fala mais alto do que tudo quanto eu pudesse aqui deduzir) me forçou a proceder daquela maneira. Se porém se acham ressentidos de mim, peço-vos que me perdoeis pelo amor de Deus. É chegado o momento para me despedir de vós; que pena, que sentimento tão vivo ocasiona esta despedida em minha alma, à vista do modo benévolo, generoso e caridoso com que me tendes tratado, penhorando-me assim bastantemente! São estes os testemunhos que me fazem compreender quanto domina em vossos corações tão belo sentimento! Adeus, povo, adeus aves, adeus árvores, adeus campos, aceitai a minha despedida, que bem demonstra as gratas recordações que levo de vós, que jamais se apagarão da lembrança deste peregrino, que aspira ansiosamente a vossa salvação e o bem da Igreja. Praza aos céus que tão ardente desejo seja correspondido com aquela conversão sincera que tanto deve cativar o vosso afeto. (NOGUEIRA, 1974:181-182).
Gravura Antônio Conselheiro
Testamento do Padre Cícero
Em nome de Deus. Amém. Eu, Padre Cícero Romão Batista achando-me adoentado, mas sem gravidade, e em meu perfeito juízo, e na incerteza do dia da minha morte, tomei a resolução de fazer o meu testamento e as minhas últimas disposições, para o fim de dispor dos meus bens, segundo me permitem as leis do meu País. E como, devido ao meu atual incômodo, não posso levar muito tempo apurado em este longo documento, nem quero fazer um testamento público, mas, sim um testamento cerrado, de acordo com o artigo mil seiscentos e trinta e oito e seus parágrafos do Código Civil Brasileiro, pedi ao meu amigo Luiz Teófilo Machado, segundo Tabelião de Notas desta Comarca, que por mim escrevesse este meu testamento em minha presença, e por mim ditado, reservando-me para assiná-lo com o meu próprio punho.
Declaro que sou filho legítimo dos falecidos Joaquim Romão Batista e Dona Joaquina Vicência Romana; que nasci na Cidade do Crato, neste Estado do Ceará, no dia vinte e quatro de março de mil oitocentos e quarenta e quatro (1844). Como profissão, adotei o Ministério Sacerdotal, de acordo com as Ordens que me foram conferidas pelo então Bispo do Ceará, Dom Luís Antônio dos Santos, de saudosa memória, exercendo-o, conforme a minha vocação, com amor, dedicação e boa vontade, e desejando assim continuar enquanto o bom Deus, pela divina Misericórdia, me conceder forças e consciência dos meus atos. Declaro mais que desde a minha ordenação, mesmo durante o pouco tempo que fui vigário na Paróquia de São Pedro do Crato, nunca percebi um real sequer pelos atos religiosos que tenho praticado como sacerdote católico. Declaro ainda que todos os dinheiros que me foram e continuam a ser dados, com oferta (feitas) a mim unicamente, os tenho distribuído em atos de Caridade que estão no conhecimento de todos, bem como em grandes e vantajosas obras de agricultura, cujo resultado tenho aplicado em bens, que ora deixo, na maior parte, para a Bem-Aventurada e Santa Congregação dos Salesianos, a fim de que ela funde aqui no Juazeiro os seus Colégios de educação para crianças de ambos os sexos. Desde muito cedo, quando comecei a ser auxiliado com esmolas, pelos romeiros de Nossa Senhora das Dores que aqui chegavam, a par do auxílio eficaz por mim feito para o desenvolvimento desta terra, resolvi aplicar parte das esmolas recebidas em propriedade, visando assim fazer um patrimônio para ajudar uma Instituição Pia e de Caridade, que pudesse aqui continuar a sua Obra Benfazeja.
Foto de Antônio Vicelmo
E porque, dentre todas as existentes, nenhuma se me afiura mais benemérita e de ação mais eficaz, e de caridade mais acentuada do que a dos bons e santos discípulos de Bom Bosco, os Beneméritos Salesianos, a eles deixarei quase tudo o que possuo, conforme adiante declaro. E rogo a esses bons e verdadeiros servos de Deus, os Padres Salesianos, que me façam esta grande Caridade, instituindo nesta terra uma obra completa. Estou certo, não só porque conheço a índole deste povo aqui domiciliado, assim como (a índole) das populações sertanejas que aqui frequentam e por meio de bons conselhos tenho educado na prática do Bem e do Amor a Deus, e mais ainda porque o pedido que faço, estou certo, repito, que todos os romeiros aqui domiciliados ou de pontos distantes, como prova de estima e amizade a mim, e em louvor e honra à Virgem Mãe de Deus, continuarão a frequentar este meu amado Juazeiro com a mesma assiduidade; e auxiliarão aos Beneméritos Padres Salesianos, como se fosse a mim próprio, para a manutenção, aqui, da sua Obra de Caridade Cristã, isto é, dos seus Colégios, nesta terra, para todo o sempre, será a maior tranqüilidade para minha alma na outra vida.
Padre Cícero de Juazeiro do Norte
Declaro, outrossim, que os dinheiros que tenho recebido para mandar celebrar missas conforme a intenção das pessoas que me os tem dado, os tenho distribuído como o maior critério, por intermédio dos padres e vigários desta e de outras Dioceses e de algumas Instituições religiosas do País e de estrangeiro. Devo acrescentar que os dinheiros que me tem sido entregues para eu aplicar como entendesse e quisesse, na intenção, louvor e honra de Nossa Senhora das Dores, sem nenhuma outra condição, do mesmo modo os tenho aplicado com muita consciência em atos de caridade, em auxilio a Obras e Instituições Pias, e em bens que ora deixo; conforme vai adiante declarado, para Nossa Senhora das Dores, Padroeira desta Matriz, e para a Santa Congregação dos Salesianos; particularizo, desta maneira, a aplicação, à minha vontade, das importâncias, em dinheiro, recebidas (por mim) para distribuir na intenção de Nossa Senhora das dores, nunca me apoderei delas; ao contrário, ordenei sempre que fossem recolhidas aos respectivos cofres da Igreja, hoje Matriz, os quais estiveram sempre à guarda dos Vigários da Paróquia. Devo ainda declarar, por ser para mim uma grande honra e um dos muitos efeitos da Graça Divina sobre mim, em virtude de um voto por mim feito aos doze anos de idade, pela leitura que nesse tempo eu fiz da vida imaculada de São Francisco de Salles, conservei a minha virgindade e a minha castidade até hoje.
Afirmo que nunca fiz mal a ninguém, nem a ninguém votei ódio nem rancor, e que sempre perdoei, por amor de Deus e da Santíssima Virgem, a todos que me fizeram mal consciente ou inconscientemente. Preciso ainda elucidar um assunto ao qual meu nome por circunstâncias especiais se acha ligado, porém no qual minha ação, aliás, pacífica, conciliadora e sempre ao lado do bem, tem sido injustamente deturpada pelos que se deixam dominar pelas paixões do momento ou não souberam interpretá-la. Nunca desejei ser político; mas, em mil novecentos e onze (1911), quando foi elevado o Juazeiro, então povoado, à categoria de vila, para atender a insistentes pedidos do então Presidente do Estado e meu saudoso amigo Comendador Antônio Pinto Nogueira Acioli, e para evitar, ao mesmo tempo, que outro cidadão, na direção política deste povo, por não saber ou não poder manter o equilíbrio de ordem até esse tempo mantido por mim, comprometesse a boa marca desta terra, vi-me forçado a colaborar na política. Apesar das bruscas mutações da política cearense sempre procurei conservar-me em atitude discreta, sem apaixonamentos, evitando sempre as incompatibilidades que pudessem determinar choques de efeitos desastrosos. Para conseguir isto, muitas vezes tive de me expor ao conceito de homens sem idéias bem definidas. Após a queda do governo Acioli, por motivo de ordem moral, retrai-me da política, mantendo, entretanto, relações de cordialidade com o governo Franco Rabelo, sendo até eleito terceiro vice-presidente do Estado. E o meu amor à ordem foi tão manifesto que, a despeito da má vontade ao pedido da população desta terra e autorizar que o meu nome fosse apresentado para voltar ao cargo de Prefeito deste Município naquele mesmo governo que me era sobremaneira hostil.
Quando, em novembro de mil novecentos e treze (1913), o meu amigo Dr. Floro Bartolomeu da Costa, atual Deputado Federal por esta cidade, e diretor político desta terra, de volta ao Rio de Janeiro me informou que os chefes do partido decaído haviam resolvido reunir a Assembléia Estadual aqui, por ser impossível a reunião em Fortaleza em virtude da pressão exercida pelo partido governante, e dar-lhe a direção do movimento reacionário com a maior lealdade ponderei, em carta reservada ao Coronel Franco Rabelo, sobre a vantagem da sua renúncia. E assim procedi, porque, sem nada de mais grave propriamente saber, a não ser da reunião da Assembléia, percebi, pelos precedentes de violência do então governo, a possibilidade de uma luta.
Afirmo que nunca fiz mal a ninguém, nem a ninguém votei ódio nem rancor, e que sempre perdoei, por amor de Deus e da Santíssima Virgem, a todos que me fizeram mal consciente ou inconscientemente. Preciso ainda elucidar um assunto ao qual meu nome por circunstâncias especiais se acha ligado, porém no qual minha ação, aliás, pacífica, conciliadora e sempre ao lado do bem, tem sido injustamente deturpada pelos que se deixam dominar pelas paixões do momento ou não souberam interpretá-la. Nunca desejei ser político; mas, em mil novecentos e onze (1911), quando foi elevado o Juazeiro, então povoado, à categoria de vila, para atender a insistentes pedidos do então Presidente do Estado e meu saudoso amigo Comendador Antônio Pinto Nogueira Acioli, e para evitar, ao mesmo tempo, que outro cidadão, na direção política deste povo, por não saber ou não poder manter o equilíbrio de ordem até esse tempo mantido por mim, comprometesse a boa marca desta terra, vi-me forçado a colaborar na política. Apesar das bruscas mutações da política cearense sempre procurei conservar-me em atitude discreta, sem apaixonamentos, evitando sempre as incompatibilidades que pudessem determinar choques de efeitos desastrosos. Para conseguir isto, muitas vezes tive de me expor ao conceito de homens sem idéias bem definidas. Após a queda do governo Acioli, por motivo de ordem moral, retrai-me da política, mantendo, entretanto, relações de cordialidade com o governo Franco Rabelo, sendo até eleito terceiro vice-presidente do Estado. E o meu amor à ordem foi tão manifesto que, a despeito da má vontade ao pedido da população desta terra e autorizar que o meu nome fosse apresentado para voltar ao cargo de Prefeito deste Município naquele mesmo governo que me era sobremaneira hostil.
Quando, em novembro de mil novecentos e treze (1913), o meu amigo Dr. Floro Bartolomeu da Costa, atual Deputado Federal por esta cidade, e diretor político desta terra, de volta ao Rio de Janeiro me informou que os chefes do partido decaído haviam resolvido reunir a Assembléia Estadual aqui, por ser impossível a reunião em Fortaleza em virtude da pressão exercida pelo partido governante, e dar-lhe a direção do movimento reacionário com a maior lealdade ponderei, em carta reservada ao Coronel Franco Rabelo, sobre a vantagem da sua renúncia. E assim procedi, porque, sem nada de mais grave propriamente saber, a não ser da reunião da Assembléia, percebi, pelos precedentes de violência do então governo, a possibilidade de uma luta.
Não sendo porém, atendido pelo então Presidente Coronel Franco Rabelo e não podendo este evitar que, à sombra do seu nome, fossem cometidos atos de desatino, entre os quais bárbaros assassinatos e espancamentos, considerei finda a minha árdua tarefa, afastando-me do campo de ação política e deixando, ao mesmo tempo, que o Dr. Floro agisse segundo as ordens recebidas, já que não me era possível poupar esta população laboriosa da triste condição de vitima indefesa. E no período mais agudo da luta, como curso de gravidade foi para mim uma surpresa, podem garantir, os que aqui a testemunharam, que a minha atitude era lastimar as desastrosas conseqüências dos erros políticos; e jamais deixei de ser no sentido de evitar violência.
De maneira que posso afirmar, sem nenhum peso de consciência, que não fiz revolução, nela não tomei parte, nem para ela concorri, nem tive nem tenho a menor parcela de responsabilidade, direta ou indiretamente, nos fatos ocorridos.
Dr. Floro Bartolomeu
Eleito, no biênio do governo Benjamim Barroso, primeiro Vice-Presidente do Estado, apesar deste (se achar) rompido politicamente com o Dr. Floro Bartolomeu, sempre com ele mantive a maior cordialidade. Não tenho culpa de que, por um despeito mal-entendido e de ordem política, houvesse e ainda exista quem me queira tornar por ela responsável. Estou certo de que, quando se fizer a verdadeira luz sobre esses fatos, meu nome realçará limpo, como sempre foi. Faço estas declarações, neste documento, para que os que me sobreviviam fiquem cientes (porque perante Deus tenho a consciência tranqüila), que neste mundo, durante toda a minha vida, quer como homem quer como sacerdote, nunca, graças a Deus, cometi um ato de desonestidade, seja sob que ponto de vista se possa ou queira encarar (o assunto); nem nunca cometi, nem alimentei embuste de espécie alguma.
Insistindo, peço, como sempre aconselhei, que sejam bons e honestos, trabalhadores e crestes, amigos uns dos outros e obedientes e respeitadores às Leis e Autoridades civis e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, no seio da qual, tão somente, pode haver felicidade e salvação. Torno extensivo este meu pedido também a todos os meus amigos, pessoas de outros Estados e Dioceses, romeiros também da Santa Virgem Mãe de Deus, isto é: que continuem a visitar o Juazeiro, em romaria a Santíssima Virgem, como sempre o fizeram, auxiliando a manutenção do seu culto e das Instituições religiosas que aqui foram criadas; e com especial menção, repito, a dos Beneméritos Padres Salesianos que, aqui no Juazeiro, serão os meus continuadores na Obra de Caridade que empreendi. E sejam sempre bons e honestos, trabalhadores e crentes, amigos uns dos outros e obedientes e respeitadores às leis e autoridades civis e da Igreja Católica Apostólica Romana, no seio da qual, tão-somente, poderemos encontrar felicidade e salvação.
Estes conselhos que sempre dei em minha vida não me canso de repeti-los aqui para que, depois da minha morte, fiquem bem gravados na lembrança deste povo, cuja felicidade e salvação sempre foram objeto da minha maior preocupação.
Não tenho ascendentes vivos nem tampouco descendentes, e assim julgo poder dispor dos meus bens, que se acham livres e desimpedidos, de acordo com as Leis do meu País, e do modo por que desejo e como segue; e o faço na plenitude de minhas faculdades e da mais livre e espontânea vontade... (SOBREIRA, 1969:308-404).
O testamento prossegue com a distribuição dos bens. Transcrevemos os trechos em que o Padre se refere ao povo em geral.
Continua...
Continua...
Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros
Dra. em Ciências Sociais,
Professora de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
Professora de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARROS, Luitgarde O. C. A terra da Mãe de Deus -Um estudo do Movimento Religioso de Juazeiro do Norte. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, ed MINC-INL, 1988. MARIZ, Celso, Ibiapina, um Apóstolo do Nordeste. Paraíba, Publicações Unitas Editora, 1942.
NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. São Paulo; Nacional 1974.
PINHEIRO, Ireneu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1963.
SOBREIRO, Pe. Azarias. O Patriarca do Juazeiro. Petrópolis: Vozes, 1969.
ZAMA, César. Apud. NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. São Paulo: Nacional, 1942.
Fonte:portfoliun laboratório de imagens
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