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Uma Lembrança de Ariano Suassuna Por:Bruno Paulino



Um dia eu conheci o escritor Ariano Suassuna e conversei com ele. Não foi por muito tempo, mas valeu o papo. Foi quando o vate visitou Quixeramobim no final do ano da graça de 2011. Fico pensando hoje que poderia ter tirado uma foto para registrar aquele momento. Mas ele estava tão emocionado por adentrar a casa em que nasceu Antônio Conselheiro que respeitosamente hesitei. Acho que fui também tomado por aquele sentimento catártico. 
                                   
"Suassuna lacrimejava em silêncio."

Depois ele comentou com todo mundo que ali o rodeava que o livro Os Sertões foi um componente fundamental de sua formação intelectual. Que foi lendo Euclides da Cunha que se deparou pela primeira vez num livro com a gente simples e a paisagem que conhecia. E que aquela saga de Antônio Conselheiro e sua gente – que teve início ali naquela casa – era também a história dele. Era a história de todo o sertão. Era um Brasil que não se conhecia. Era o Brasil Real. Não o Brasil Oficial. Impossível não se emocionar com depoimento tão vivo e espontâneo.

Ariano recebe do Cariri Cangaço comenda de 
"Personalidade Eterna do Sertão"

Recordo que ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, Ariano Suassuna discursou: “Euclides da Cunha, mesmo ofuscado, ao se ver diante do povo brasileiro real, pôde tomar seu lado – e o grande livro que é Os Sertões resultou do choque experimentado ante aquele Brasil brutal, mas verdadeiro, que ele via pela primeira vez em Canudos e que amou com seu sangue e seu coração, se bem que nunca o tenha compreendido inteiramente com sua cabeça, meio deformada pela falsa ciência européia que o Brasil venerava, e ainda venera, como dogma.”

Bruno Paulino, Manoel Severo e Anapuena Ravena

Apaixonado pela saga do beato Antônio Conselheiro, Ariano dedicou-lhe o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta e andava pelos vários cantos do país com a relíquia de um cartucho de bala em seu bolso, artefato que foi encontrado nos arredores do dizimado arraial de Belo Monte, e que gentilmente um morador da atual cidade de Canudos na Bahia lhe presenteou. O escritor exibia a cápsula durante suas palestras e falava das medonhas disparidades entre o Brasil Real e o Brasil Oficial, citando e explorando o pensamento antes desenvolvido por Machado de Assis. Dizia que bastava estudar sobre Canudos para entender toda história do Brasil.

“Em Canudos, a bandeira dos seguidores de Antônio Conselheiro era a do Divino Espírito Santo – a bandeira do nosso povo, pobre, negro, índio, e mestiço. Povo que o Brasil Oficial, o dos brancos e poderosos, mais uma vez (e como já se sucedera em Palmares e no Contestado), iria esmagar e sufocar, confrontando-se ali, no caso, duas visões opostas de justiça”, escreveu certa vez Suassuna ao inaugurar no Recife um teatro que nominou de Arraial em homenagem aos seguidores do Beato nascido em Quixeramobim. Nem sei por qual motivo hoje dei para lembrar esse dia. Porém, nunca esquecerei uma frase que disse pessoalmente a mim quando tive a oportunidade de trocar algumas palavras com ele: 

“Tenho muita inveja de você rapaz que nasceu nessa terra que pariu um dos maiores revolucionários que esse mundo conheceu que foi o bom peregrino Antônio Conselheiro. Cuide com seus amigos para que essa história não caia no esquecimento por aqui.”.

Disse isso me deixando atordoado e sem saber o que responder naquele momento.

Bruno Paulino é cronista e aprendiz de poeta
Quixeramobim, Ceara
Fonte:blogs.opovo.com.br


E Vem aí...
Cariri Cangaço
Antônio, O Conselheiro do Brasil
Quixeramobim - Maio de 2019

O Inesgotável Tema Cangaço Por:Wasterland Ferreira



Como todos sabemos, o fenômeno histórico e criminógeno do Cangaço foi derrotado militarmente (ainda bem), tendo como marco-histórico e oficial o assassinato do cangaceiro Cristino Gomes da Silva Cleto, o Corisco, que não obstante o fato de estar aleijado de ambos os braços e obviamente segurar o mosquetão, por haver sido baleado meses antes na cidade baiana de Paripiranga, foi alcançado pela volante do tenente Zé Rufino (José Osório de Farias) da Polícia Militar da Bahia, que terminou por metralhar o famoso cangaceiro, tido por muitos, inclusive pela imprensa como o braço direito de Lampião, e também chamado de Diabo Louro. 

O fato, ocorrido na fazenda Pulgas, em Brotas de Macaúbas, Bahia, a 25 de maio de 1940, pôs fim à um ciclo histórico e épico de praticamente cinco séculos e que não tenho dúvidas, foi uma das mais fortes e aguerridas formas de irredentismo levantadas (de modo contínuo, ou seja, de caráter permanente e prolongado) contra os valores impostos pelo colonizador europeu, e com o passar dos séculos, a partir de quando o banditismo rural passou a operar nos sertões do Nordeste, deu-se início aquilo que o Mestre Frederico Pernambucano denominou magistralmente como o "divórcio litoral-sertão" - ver Guerreiros do Sol. Violência e banditismo no Nordeste do Brasil, ora em 5.a ou 6.a edição pela Editora A Girafa/Massangana, e considerada a obra mais completa sobre o assunto. 

Sandro Lee, Wasterland Ferreira, João de Sousa Lima e Itamar Baracho

Contudo, o Cangaço tornou-se bem vitorioso culturalmente, sendo seu símbolo máximo Nordeste, Brasil e mundo afora o famoso chapéu de couro com abas enormes e levantadas na frente e atrás e que a partir de 1930 sofreu uma estilização riquíssima - a partir do advento das mulheres, cuja porta de entrada foi a partir de Maria Gomes de Oliveira, a "Bonita", depois chegando Sérgia Ribeiro da Silva, a "Dadá", mulher do mencionado cangaceiro Corisco, que havia dois anos que estava na casa de uma tia deste. E sem ordem cronológica também citamos Dulce Menezes dos Santos, de Criança; Nenê, fiel companheira de Luiz Pedro; Adília, de Canário; Maria Fernandes, companheira do cangaceiro Mané Juriti; Antonia, do Rego, mulher de Santílio Barros, o Gato; Maria dos Santos, a Mariquinha, companheira de Ângelo Roque da Costa, o famoso Labareda, e tantas outras -, tornando-o ainda mais bonito e atrativo, como também a todo o conjunto do traje guerreiro do cangaceiro nordestino, que foi tão bem estudado pelo já referenciado escritor e historiador Frederico Pernambucano de Mello que terminou por dedicar uma obra especializada a respeito: Estrelas de Couro. A Estética do Cangaço, ora em 3.a edição pela Escrituras Editora, sendo o quê há de mais completo sobre a chamada "estética do Cangaço".

Aí o que vemos hoje são as várias representações da figura histórica e épica do cangaceiro em nossa cultura, seja através do boneco de barro esculpido pioneiramente pelo Mestre Vitalino (in memoriam), no Alto do Moura, em Caruaru, Pernambuco, fazendo escola; seja na formação dos grupos estilizados de Xaxado - esta é a música, sendo a "pisada", a dança -, estilizados no que refere-se a participação feminina na dança histórica e guerreira (surgida ainda nos tempos da atuação do bando de cangaceiros sob o comando de Sebastião Pereira e Silva, o Sinhô, havendo relatos de que o Xaxado teria sido criado em seu próprio bando), onde originalmente era uma dança exclusivamente masculina.


Podemos também apontar o uso de elementos históricos e estéticos do Cangaço na formação dos grupos folclóricos de bacamarteiros, de que se valeu o eminente professor e escritor pernambucano Olímpio Bonald Neto, para escrever e publicar livro clássico: Bacamarte, pólvora e povo, recentemente reeditado pela CEPE - Companhia Editora de Pernambuco.
E a lista de manifestações artístico-culturais no uso da figura do cangaceiro que por tanto tempo atuou neste Nordeste setentrional é enorme, e vale ressaltar que bem acertado na absorção pelas vias da arte e do folclore e que hoje, ao contrário do que foi no passado, traz alegria, entretenimento, arte e beleza plenas à toda a população, como também riquezas materiais através dos capitais investidos e em contrapartida advindos dessa gama de produção cultural.

Wasterland Ferreira Leite, Recife-PE.
Pesquisador e Membro efetivo da SBEC - Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço.

Missão Velha Homenageia Coronel Liberato na Festa de 10 Anos do Cariri Cangaço Por:Bosco André



Nos 10 anos do Cariri Cangaço em Julho de 2019, Missão Velha se prepara para grandes homenagens. Vultos históricos que com sua atuação e presença forte nos cenários politico e administrativo foram relevantes para a construção da memória imortal da região do Cariri cearense. Dentre esses temos o Cel. Liberato Manuel da Cruz.

Cel Liberato foi Inspetor Escolar , Delegado e Intendente do Município de Missão Velha, substituindo ao não menos importante 
Cel. Antonio Joaquim de Santana, no período entre
 29-08-1917 a 19-10-1917. Vigésimo filho
 do casal Manuel Inácio da Cruz e Maria das Dores da Encarnação, ca
sou duas vezes, primeiro com a sobrinha Ana Isabel da Conceição Macêdo e em segundas núpcias com Joana Rodrigues da Cruz (Santinha). Então que venha os 10 Anos de Cariri Cangaço no Portal do Cariri, Missão Velha, com a ho
menagem do Município ao ilustre Patriarca da família Liberato – Coronel Liberato Manuel da Cruz.

João Bosco André
Pesquisador e escritor
Conselheiro Cariri Cangaço.

Canudos -O Fim do Treme-terra Por:Raul Meneleu Mascarenhas

Moreira Cesar

Uma onda de temor varreu o sertão. Lá vinha ele: o Anticristo, o Corta-Cabeças. o Treme-Terra. Muito tempo depois da guerra, ele ainda serviria de inspiração para os cantadores. Como nesta quadra, recolhida por José Calazans: 

Moreira César foi ao céu 
Com Tamarindo ao seu lado 
Sdo Pedro falou assim: 
A que cara de malvado! 

Antônio Moreira César era o seu nome,  coronel a sua patente. O oficial talvez mais celebrado do Exército, a quem se atribuía bravura sem igual. Era considerado o herdeiro do marechal Floriano Peixoto, falecido havia dois anos, ídolo dos militares e patrono-mor dos "jacobinos", como eram chamados os defensores mais intransigentes do regime republicano. 

Euclides da Cunha o descreve: "O aspecto reduzia-lhe a fama. De figura diminuta — um tórax desfibrado sobre pernas arcadas em parênteses —, era organicamente inapto para a carreira que abraçara. (...) Apertado na farda, que raro deixava o dólmã feito para ombros de adolescente frágil agravava-lhe a postura. A fisionomia inexpressiva e mórbida completava-lhe o porte desgracioso e exíguo". E no entanto, quanto respeito — e quanto medo — impunha à sua volta. Consideravam-no um herói por sua atuação na repressão aos dois movimentos que haviam desafiado o regime florianista — a Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, e a Revolução Federalista, no Sul. 

Em Santa Catarina para onde foi enviado com plenos poderes, para apagar os últimos fogos da Revolução Federalista distinguiu-se pela ferocidade. Quando não fuzilava, decapitava os adversários. Agora ia entrar na legenda do sertão. 


"Na Guerra de Canudos, depois de Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha, Moreira César é o principal personagem", diz Oleone Coelho Fontes, outro dos canudistas baianos, autor de um livro sobre Moreira César, O Treme-Terra." 

O elenco da epopeia do sertão pode ser prolongado ao infinito: coronel Tamarindo, o segundo de Moreira César, cabo Roque, herói efêmero de uma bravura que não houve; marechal Bittencourt, o ministro da Guerra. Do lado dos conselheiristas, a turma dos jagunços valentes, alguns formados na escola do cangaço antes de se juntar ao Conselheiro e se tomar os cabeças de seu Exército improvisado: João Abade, o "comandante da rua", como era conhecido — "rua" no sentido de "arraial", de "cidade", de "área urbana" e comandante porque era o chefe militar supremo: Pajeú, o temível guerrilheiro das estocadas ardilosas, "forma retardatária de troglodita sanhudo", segundo Euclides; Pedrão, que veio a morrer só em 1958, com tanto gosto de lutar que dizia a José Calazans, quando já nonagenário, e entrevado: 

"Faz pena um homem como eu morrer sentado". O mesmo Pedrão, que mais de trinta anos depois de Canudos seria contratado pelo interventor Juraci Magalhães para combater Lampião, justificava-se: "O coração pedia para brigar". 

A estes, acrescentem-se os acólitos religiosos do Conselheiro: Antônio Beatinho, José Beatinho, Paulo José da Rosa. José Beatinho, com sua bela voz, fazia as rezas mais bonitas e mais pungentes. Havia o sineiro Timotinho. Até o fim, não importava o vareio de balas, o troar de canhões e o mar de cadáveres que se interpunham em seu caminho, nas ruas estreitas do arraial. Timotinho cumpria a obrigação de tocar o sino. Morreram juntos, ele e o sino, um arremessado para cada lado, quando uma bala de canhão atingiu a torre da igreja velha. 

A Guerra de Canudos é tão rica de personagens quanto a — releve-se a insistência na comparação — de Troia e de personagens que igualmente foram se credenciando à mitologia, tal a maneira como os descrevem, e tais as façanhas que lhes atribuem. 

Se o Brasil fosse os Estados Unidos, e produzisse filmes como Hollywood, haveria aqui mais filmes com Moreira César e Pajeú, Tamarindo e João Abade, do que há nos Estados Unidos com o general Custer e Touro Sentado. 

Canudos, entre outras coisas, é uma esplêndida história, com uma trama de emoções e imprevistos. A guerra começou com um equívoco. Correram rumores em Juazeiro, à margem do Rio São Francisco a noroeste de Canudos, de que por causa do atraso na entrega de uma encomenda de madeira para a construção da nova igreja do arraial, os conselheiristas preparavam uma invasão da cidade. A população assustou-se com o boato, o juiz local notificou o governador do Estado, Luís Viana, e este resolveu enviar a Canudos — estamos em novembro de 1896 — uma expedição punitiva. 


Tinha 104 homens, era comandada por um tenente, Pires Ferreira, e estava destinada ao primeiro dos sucessivos vexames que seriam impostos aos militares. Quando os soldados estavam estacionados no povoado de Uauá, já perto de Canudos, sentiram a aproximação de um estranho cortejo — uma fila de gente que rezava e entoava cânticos religiosos, tendo à frente uma grande cruz e um estandarte do Divino. "Parecia uma procissão de penitência", escreve Euclides. Era um batalhão do Conselheiro, armado com o que foi possível juntar na circunstância — velhos trabucos, facões, paus, pedras, foices. Depois de quatro horas de combate, embora com muito mais perdas do que o inimigo, puseram-no a correr. Terminava aquela que passou para a História como a primeira expedição. 

A segunda expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, quintuplicou de tamanho — 550 homens — e pela primeira vez usou Monte Santo como base de apoio e ponto de partida da ofensiva, algo que se repetiria nas expedições seguintes. Monte Santo, 100 quilômetros ao sul de Canudos, é, hoje como há 100 anos, o lugar mais interessante da região. O Monte Santo que lhe empresta o nome é a Sena de Piquaraçá, que se eleva atrás da cidadezinha. Na verdade, a cidadezinha é como outras do sertão. O que há de interessante no lugar é o monte, que lhe serve de majestoso pano de fundo — um monte sulcado por um caminho que o vai galgando, sinuosamente, subindo sempre, subindo até quase perder de vista e todo salpicado de capelinhas, como se fosse, como escreveu Euclides da Cunha, "uma escada para os céus". 

Febronio de Brito

Lá no alto, no fim do caminho, há uma igreja maior, a Igreja de Santa Cruz. Trata-se de uma via-sacra, em que as capelinhas representam as passos da Paixão. Foi construída no século XVIII. 100 anos antes de Canudos, por um capuchinho italiano, frei Apolônio de Todi. A subida até Santa Cruz, longa de 3 km, é penosa. O caminho é não só íngreme, quase a desafiar alpinistas, como composto de chão rude de pedras, cortantes algumas, escorregadias outras. No alto, bate um vento forte e descortina-se um panorama deslumbrante da região.

O Monte Santo de frei Apolônio, reprodução do que ele imaginava fosse o Calvário de Jesus — na verdade muito mais alto, mais íngreme e mais penoso de subir do que o Calvário ao qual se é apresentado em Jerusalém —, é o mais eloquente símbolo material do catolicismo do sertão: um catolicismo feito de penitência de severidade, de purgação atormentada e permanente dos pecados.

Hoje, ao chegar a Monte Santo, depara-se com uma placa: "Benvindo. Welcome. Bienvenido. Monte Santo. Altar do Sertão". Como se a cidadezinha perdida nos fundões do Brasil fosse visitada por estrangeiros. Não é, mas os sertanejos continuam a procurá-la. Na Semana Santa, costuma atrair milhares de devotos. Mas mesmo no resto do ano, e especialmente nas sextas-feiras, o dia da feira na cidade, o movimento é grande. É o dia preferido pelos pagadores de promessa. 

Monte Santo , Bahia

O caminho de pedras que sobe morro acima registra então um contínuo vaivém. Hoje são raros, mas ainda há os que sobem de joelhos ou carregando pedras. Fica-se a perguntar que tanto se peca, no sertão, que tanto se precisa de penitência? Monte Santo evoca tanto a religião como cidade santuário, quanto a Guerra de Canudos. No tempo de suas peregrinações pelo sertão, antes de estabelecer-se no arraial. Antônio Conselheiro visitou-a várias vezes. Um ano antes de estabelecer-se em Canudos, encetou. com seus seguidores, trabalhos de restauração em algumas das capelinhas da montanha. 

Quando os soldados se reuniram em Monte Santo, segundo Euclides, a cidade tomou ares de festa. Barracas militares, centenas de forasteiros: "Tudo aquilo era uma novidade estupenda". A segunda expedição demorou quinze dias na cidade antes de se pôr a caminho. E então, tudo foi muito rápido. Bastaram dois dias, ao se aproximar de Canudos, para que ela também, fosse desarticulada e posta a correr, depois de ter sido surpreendida pelo inimigo emboscado nos morros próximos do arraial insurreto. A humilhação era demasiada. O irredentismo dos fanáticos" sertanejos, como começavam a ser qualificados, virava questão nacional. O histerismo que tão frequentemente caracteriza a vida política brasileira, materializado ora em denúncias arrasadoras, ora em invectivas que desqualificam o adversário num dia como um "comunista" no outro como "neoliberal", consolidava uma fantasia: a de que Canudos era a ponta-de-lança de uma reação monarquista. 

Lembre-se de que o regime republicano fora inaugurado havia apenas sete anos. O novo regime já enfrentara o desafio da Revolta da Armada e da Revolução Federalista. Agora, sob o disfarce do fundamentalismo religioso, vinha dos sertões uma revolta que sem dúvida se ramificava pais afora, nos arraiais monarquistas, e quem sabe tinha até apoio do exterior. Para debelá-la. só um bravo como Moreira César. Paulista de Pindamonhangaba, então com 47 anos, o coronel foi convocado para chefiar os 1.300 homens que formariam na terceira expedição. Da lenda de Moreira César faz parte uma coleção de marcos na região. Na cidade de Euclides da Cunha, a antiga Cumbe. apontarão ao visitante a casa em que ele ficou, quando por lá passou, a caminho de Canudos — um sobrado hoje vazio e fechado, atrás da igreja. 

Em Queimadas, Monte Santo, em cada cidade se mostram os lugares de alguma forma ligados à sua memória. No lugar chamado Umburanas, em Canudos, por onde corre o riacho do mesmo nome há uma cruz, no meio do mato. Uma lápide explica, embaixo: 

"Neste lugar foi abandonado, 
no dia 4 de março de 1897, 
o cadáver do coronel Moreira César..."


O marco, mandado edificar por Oleone Coelho Fontes, José Calazans, Renato Ferraz e outros estudiosos de Canudos, foi inaugurado no dia 4 de março último, centésimo aniversário do evento que rememora. Como pôde o coronel acabar desse jeito? Ele vinha tão confiante... Ao se aproximar de Canudos, ordenou que se disparassem dois tiros de um de seus quatro canhões Krupp. "Lá vão dois cartões de visita ao Conselheiro", disse. Ao longo da marcha, sua preocupação maior era que os conselheiristas abandonassem o arraial, privando-o da glória de derrotá-las. 

À medida que se aproximava, o otimismo aumentara: "Vamos tomar o arraial sem disparar mais um tiro, a baioneta". Ocorre que Moreira César rinha outro adversário, tão difícil de vencer quanto o Conselheiro — ele próprio. Era epilético, num tempo em que não se tinha como conter a doença. Sofreu dois ataques durante a campanha de Canudos. Além disso. apresentava um temperamento instável e impulsivo. Certa vez, navegando para o Rio de volta da campanha de Santa Catarina, com seus soldados, mandou prender o capitão do navio, por suspeitar de uma traição para a qual não havia evidência alguma. 



Em Canudos, da mesma forma como lhe sobrava confiança, faltou-lhe previdência. Mandou seus homens ao ataque depois de longo dia de marcha penosa. sem descanso. Fê-los avançar até para dentro do arraial e entrar numa luta corpo-a-corpo com os conselheiristas — o que, além de facilitar a movimentação do adversá-rio familiarizado com o labirinto de ruelas, inutilizou a artilharia que não podia disparar sob pena de atingir os próprias companheiros.   


A situação se complicava. Moreira César ordenou um ataque de cavalaria mais desastroso ainda em se tratando não de uma planície aberta. mas de um inimigo entrincheirado num reduto cheio de barreiras. Com a situação cada vez mais feia o coronel deixou seu posto de comando, endireitou o cavalo em direção ao arraial e avançou, dizendo: "Vou dar brio àquela gente". Não foi muito além. Atingido no ventre por uma bala, vergou-se. largando as rédeas. Os companheiros cercaram-no. "Não foi nada, um ferimento leve", disse. Morreu naquela noite. Os infortúnios de Moreira César e sua expedição estão magistralmente descritos em "Os Sertões".  


Morto o comandante, a desarticulação da tropa foi geral. O coronel Pedro Nunes Tamarindo, que deveria sucedê-lo no comando — um homem "simples, bom e jovial", segundo Euclides, que já chegara aos 60 anos e não aspirava senão a uma reforma tranquila — proferiu então sua frase famosa, um clássico de todos os tempos das debandadas militares: "É tempo de murici, cada um cuide de si". Tamarindo seria por seu turno abatido horas depois, quando transpunha o Córrego do Angico. Seu corpo foi recolhido pelos conselheiristas, empalado e erguido num galho. para assustar os imprudentes que porventura ainda viessem a ousar uma nova expedição contra o arraial sagrado. Os soldados não tinham como salvar os cadáveres ilustres. 




No atropelo da fuga, com os sertanejos ao seu encalço, fustigando-os e roubando-lhes as armas e as munições, abandonaram o corpo de Moreira César nas Umburanas... 

A morte do cultuado coronel elevou à potência máxima o clima nacional de histeria. As turbas invadiram as ruas do Rio de Janeiro. "A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro", escreveu Euclides. "Vingança" e "morte aos monarquistas" eram as palavras de ordem. Jornais monarquistas foram empastelados. Um monarquista, o coronel Gentil de Castro, fiel escudeiro do último primeiro-ministro do Império, o visconde de Ouro Preto, foi assassinado. Criavam-se fantasias. Correram rumores de que um certo cabo Roque, ordenança de Moreira César, heroicamente, tinha permanecido ao lado do corpo do chefe e resistira até o último cartucho, preferindo a morte a permitir que o inimigo profanasse a sagrada relíquia. 
 
Uma rua no Rio e outra em São Paulo foram batizadas com o nome do cabo Roque. Eis então que Roque aparece são e salvo, entre as últimos fujões retardatários e destrói o Roque da fantasia. O cabo Roque de verdade, desprovido de qualquer glória veio a morrer prosaicamente em 1900, de peste bubônica, no Rio. Quanto a seu malogrado chefe, ficava agora entregue aos cantos do sertão, mesmo que equivocados, confundindo o local em que foi abandonado o corpo com o da morte: 

Coronel Moreira César 
Olho de cana caiana. 
Tomou chumbo em Canudos 
Foi morrer nas Umburanas. 

Raul Meneleu Mascarenhas
Pesquisador e escritor, Conselheiro Cariri Cangaço
https://meneleu.blogspot.com/2016/04/canudos-o-fim-do-treme-terra.html?m=1&fbclid=IwAR2rViEj1kNihM4aAThhyDvEaoumPKaGRsDs-HFFq6UTfwU1AZFGNsjS_UI




E Vem aí...
Cariri Cangaço
Antônio, O Conselheiro do Brasil
Quixeramobim - Maio de 2019

Serra Negra e Poço Redondo Por:Rangel Alves da Costa

Coronel João Maria

Somente uma questão de limites interestaduais separou Poço Redondo, em Sergipe, da baiana Serra Negra (hoje Pedro Alexandre), pois no restante sempre existiu uma comunhão de amizades e entrelaçamentos familiares, políticos e de poder. 
A família Carvalho de Serra Negra, principalmente os irmãos João Maria de Carvalho (tenente João Maria, coronel de poder e de mando) e Piduca Alexandre, sempre estiveram presentes na vida de Poço Redondo. Mas a família numerosa, da descendência do alagoano de Entremontes, Pedro Alexandre, toda igualmente amiga do sertão sergipano. E vasta era a prole de Pedro Alexandre: João Maria de Carvalho, Pedro Alexandre Filho (Piduca), Liberato de Carvalho (caçador de cangaceiro e depois general do Exército), João Batista, José Pedro (Zuca Carvalho), João Pedro (Ioiô), Manoel (Santinho), e ainda as filhas Adelina, Nanã, Zabilina (Isabel), Zefinha, Maria, Dona (Esmeralda) e Doninha. 

Município de Pedro Alexandre

Todos estes se tornaram de renome e influência nas terras baianas e mais além, ultrapassando as fronteiras e alargando suas amizades com os sertanejos de Poço Redondo. Gabriel Feitosa exemplifica bem tal entrelaçamento. Bastião Joaquim, irmão de Gabriel, era outro amigo dos Carvalho da Serra Negra, assim como Antônio Rosendo, Abdias, Mané Cante, Tião de Sinhá e muitos outros. Estes mais pela vida vaqueira a serviço dos da Serra negra. Gabriel não foi somente vaqueiro e tangedor de gado de Piduca Alexandre, mas principalmente um grande e fiel amigo. 

Os alexandrinos possuíam inteligência sem igual. Sabiam muito bem que não adiantava apenas a riqueza sem os entrelaçamentos das amizades. Daí que foram fecundando de amigos as terras baianas e sergipanas, tornando Poço Redondo como verdadeiro lar familiar e sempre rodeado de muitos amigos. No tempo do cangaço, durante as famosas Carreiras (quando Poço Redondo ficava praticamente deserto pela aproximação dos cangaceiros), o principal destino de inúmeras famílias foi Serra Negra. Meus avôs paternos Ermerindo e Emeliana foram destes que partiram em fuga. Foi em Serra Negra que nasceu o meu tio José Alves Costa (o saudadoso Zé de Ermerindo). 

Rangel Alves da Costa, Orlando Carvalho, Dona Marlene, Manoel Severo e Manoel Serafim no Cariri Cangaço da Serra Negra

As propriedades adquiridas pelos alexandrinos no sertão sergipano possibilitaram uma aproximação ainda maior. Os irmãos João Maria e Piduca, por exemplo, já eram possuidores de uma imensidão de terras em solo baiano, mas com tino sem igual para a posse de novas terras, passaram a adquirir dezenas de fazendas do lado de cá da fronteira, em Poço Redondo. Como dito, somente no lado sergipano possuíam mais de uma dezena de grandes propriedades, verdadeiros latifúndios. 

De João Maria eram o São Clemente, Cacimba Dantas, Paraíso, Santo Antônio, Poço do Mulungu, Exu, Riacho Largo de Baixo e o Recurso, propriedade esta comprada a meu avô Teotônio Alves China, o China do Poço. De Seu Piduca eram a Queimada Grande (onde Tião de Sinhá era Vaqueiro), Lagoa da Onça, Bate Lata (Lulu de Sinhá, irmão de Tião, era o vaqueiro), Casa Nova (Santa Maria), Caibreiros, Charco Grande, Barraca dos Negros (onde Bastião de Timbé foi vaqueiro), Baixa Verde (também sob responsabilidade de Bastião de Timbé), Jurema e Riacho Largo de Cima. Os irmãos poço-redondenses João Paulo e Abdias eram os vaqueiros desta fazenda. 

Cariri Cangaço visita a Casa do Coronel João Maria

Também na política o Coronel João Maria passou a ter influência em Poço Redondo. Quando da emancipação política em 1953 e a aproximação da primeira eleição, o coronel baiano comprou briga com a burguesia política de Sergipe ao apoiar José Francisco do Nascimento (Zé de Julião) para prefeito. Por causa desse apoiou, foram redobradas as tratativas para que o candidato governista fosse eleito a qualquer custo. Como de fato ocorreu. Na eleição seguinte repetiu o apoio ao ex-cangaceiro e seu amigo Zé de Julião, que novamente foi derrotado pelas maracutaia do poder político sergipano. Aliás, não só Zé de Julião, na condição de ex-cangaceiro (Cajazeira), como diversos outros poço-redondenses, assim que precisassem de apoio ou proteção, bastava bater à porta do coronel baiano. Seus refúgios estavam garantidos.

Mesmo a morte do Coronel João Maria aos setenta e três anos, em agosto de 63, não afastou nem diminuiu a amizade dos baianos com Poço Redondo. Não havia uma só Festa de Agosto aonde uma multidão não chegasse a Poço Redondo. Dr. Heraldo de Carvalho, filho de João Maria, e seu primo Eraldo de Carvalho, tornaram-se lendários nas comemorações da padroeira poço-redondense. 

Festeiros, brincalhões, namoradores, amigueiros sem igual, sentiam-se verdadeiramente em casa. Como de fato estavam, pois sempre recebidos de braços abertos. De Heraldo de Carvalho a história repassada - e verdadeira - dando conta de seus exageros após umas doses a mais de uísque. Certa feita, durante um forró na bodega de Delino, em pleno dia maior da festa, o então prefeito de Serra Negra adentrou no salão com seu portentoso cavalo. E o alazão imenso, branco e de beleza majestosa, só faltou dançar. E dizem até que dançou. 
Muito ainda teria que ser dito sobre tais laços de amizade. Impossível não falar sobre João de Ioiô e seus filhos Orlando da Serra Negra e Zé Maria, todos Carvalho de raiz e flor. Mas depois eu conto. Prometo.

Rangel Alves da Costa, Pesquisador e Escritor
Conselheiro Cariri Cangaço

NOTA CARIRI CANGAÇO: Em Junho de 2018 o Cariri Cangaço chegava a Bahia em seu primeiro evento em Pedro Alexandre dentro da Programação do Cariri Cangaço Poço Redondo. Veja no link abaixo:
https://cariricangaco.blogspot.com/2018/07/serra-negra-e-espetacular-visita-do.html

Canudos - Duas Vezes Morto,Duas Ressuscitado Por:Raul Meneleu


Cigarro não ofende? Não, não ofende, e então Manuel Alves, mais conhecido por "Manuel Travessa", de 57 anos mas aparentando mais, pele morena e estorricada de sertanejo, chapéu de couro, dentes ruins, acende o cigarrinho que é seu companheiro inseparável. Estamos no carro que conduz o autor desta reportagem e o fotógrafo de VEJA do lugar chamado Bendegó, dentro do município de Canudos, à beira da estrada, antes de chegar à cidade propriamente dita, ao lugar chamado Alto Alegre, uma elevação à margem do lago no fundo do qual se encontram as ruínas da antiga Canudos. 

Quem foi Antônio Conselheiro para Manuel Travessa? — No meu pensamento, ele era igualmente que um crente, hoje. Há 100 anos, não existia crente. Eu sempre penso que pode ter existido um ciúme da Igreja Católica pelo Antônio Conselheiro. Euclides da Cunha escreveu em Os Sertões que a cidade de Queimadas, para onde as tropas iam de trem, desde Salvador, antes de enfrentar os caminhos poeirentos do sertão, assinalava uma fronteira: "Salta-se do trem: transpõem-se poucas centenas de metros entre casas deprimidas: e topa-se para logo, à fímbria da praça — o sertão" Está-se no ponto de encontro de duas sociedades alheias uma à outra segundo Euclides, "O vaqueiro encourado emerge da caatinga, rompe entre a casaria desgraciosa e estaca o campião junto aos trilhos, em que passam vertiginosamente os patrícios do litoral, que o não conhecem." Entre um e outro há uma "discordância absoluta", segundo o autor, o que acaba por desequilibrar "o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo" e "perturba deploravelmente a unidade nacional". Os soldados vindos de outras partes do país, chega a escrever Euclides, tinham a sensação de seguir para uma guerra externa. "Sentiam-se fora do Brasil." Há exagero nisso, certamente. Já havia exagero há 100  anos,  e haverá ainda mais hoje, em considerar o sertão um mundo à parte do resto do Brasil. Mas, por mais que hoje em dia se esteja familiarizado com a região, por mais romance regionalista que se tenha lido, filme do cinema novo que se tenha visto, por mais música e novela de TV que se tenha digerido, o forasteiro será tomado pela sensação de um mundo meio encantado, a começar pela língua que ali se pratica. Dá vontade de reproduzir, tal e qual, a fala de Manuel Travessa. — Ele não foi um destruidor (o Conselheiro). Não foi que nem Lampião. Ninguém diz que ele matou alguém. 


Era igual que Assembléia de Deus, Deus é Amor. Essas cresceram e agora está difícil acabar com essa... essa como se diz... essa religião. Manuel Travessa não é um qualquer. Pode ser qualificado como um empresário do sertão. Um empresário quase miserável, que vive numa casa que Antonio Ermírio de Moraes não imagina possa preencher as necessidades de um ser humano. come um tipo de comida que Abílio Diniz não comeu nem quando foi sequestrado e veste uma roupa que Moreira Ferreira estranharia muito num companheiro da Fiesp, mas um empresário — um farejador de oportunidades, campeão da iniciativa. Ele já tinha um bar naquele lugar chamado Bendegó e agora que o asfalto está chegando à região, antevendo uma ampliação do mercado, abriu outro. 

Mais significativas são suas realizações no Alto Alegre. um lugar batizado por ele próprio ao chegar à região. cm 1971 depois das muitas perambulações pelo sertão, a partir de sua Monte Santo natal. Só havia três casas no local, e a elas ele acrescentou a sua. Começou a notar então que frequentemente aparecia gente interessada em Canudos, querendo informações e em busca de vestígios da guerra. Para tentar satisfazer essa demanda, Manuel Travessa iniciou, em 1975. uma coleção de relíquias — espingardas, balas, capacetes de soldado. Objetos que achava pelas redondezas ou comprava dos vizinhos. Hoje essa coleção está reunida numa casinha que construiu para abrigá-la, composta de um só cômodo, de não mais que 2 por 2 metros, a que, de maneira sem dúvida pretensiosa, chama de "museu". Ao lado de uma tralha que realmente tem a ver com a guerra. o museu de Travessa exibe máquinas de costura velhas e até um buda de porcelana.



Ivanildo Silveira, Aderbal Nogueira, Manoel Severo e Raul Meneleu

Ao lado do museu, Manuel Travessa levantou uma capela e ao lado da capela, um salão de dança. Assim, pode-se rezar pelo Conselheiro no local ou alternativamente, convocar um forró. O conjunto de museu-igreja-salão completa-se com uma escultura do Conselheiro em madeira e um canhão também em madeira, além de duas cruzes, para compor o que poderia ser chamado de praça monumental do Alto Alegre, se monumental fosse, ou mesmo se praça fosse — na verdade é um conjunto de toscas construções erigidas na terra dura de um descampado. De qualquer forma é o que se tem. Quem vai ao povoado que hoje ostenta o nome de Canudos não encontrará recordação do Conselheiro. O Alto Alegre, a 10 quilômetros de distância, por iniciativa do empresário sertanejo Manuel Travessa, preenche essa lacuna. 

Contam-se três Canudos, ao longo da História. A primeira, do Conselheiro, depois de arrasada, ficou no seguinte estado de acordo com o depoimento de um ex-conselheirista, Manuel Ciríaco, ao jornalista Odorico Tavares, em 1947, quando a guerra completava cinqüenta anos: "Era de fazer medo. A podridão fedia a léguas de distância, os bichos a gente via correndo pelos cadáveres e urubu fazia nu-vem. Tudo abandonado, ninguém ficou enterrado. Foi quando Ângelo dos Reis, por sua própria caridade, trouxe uns homens e enterrou ali mesmo a jagunçada morta Todas essas colinas que o senhor vê estão cheias de ossos de jagunços. Acabou-se Canudos, e durante uns dez anos, só se vinha aqui de passagem". O Ângelo dos Reis citado era um fazendeiro da região. Dez anos decorridos, durante os quais o simples nome de Canudos fazia medo na região — era sinônimo de atrocidade, perseguição, constrangimento —. o local começou a se repovoar. 

Alguns eram antigos habitantes que voltavam. Nascia uma segunda Canudos, sobre os escombros da primeira. Na década de 50 foi projetado um açude que represando as águas do Rio Vaza-Barris, acabaria por inundar o povoado. Será que a represa precisaria ser justamente ali, fazendo submergir um lugar histórico como aquele? A pergunta foi feita pelo escritor Paulo Dantas, em 1958, ao engenheiro que chefiava as obras. José Femandes Peixoto. "Isso é conversa de poetas" respondeu o engenheiro. "O que esta região precisa é de água. A tradição é muito bonita, mas não mata a sede nem a fome de ninguém".


Em 1969, depois de sucessivos atrasos, a represa finalmente inundou Canudos. A população a essa altura já tinha sido transferida para o povoado chamado Cocorobó — mesmo nome do açude —, mais tarde rebatizado de Canudos. Esta é a Canudos atual, a terceira. Em junho último, foi inaugurado o Parque Estadual de Canudos. Estendendo-se ao sul do açude, compreende uma área de 18 km quadrados, em que se encontram sítios familiares a quem conhece a história da guerra: o Alto do Mário, o ponto mais elevado, de onde hoje se descortinam o açude e as montanhas ao redor, a Fazenda Velha — ruínas de uma antiga sede de fazenda na qual os Conselheristas fixaram um posto avançado que resistiu até os dias finais; o Morro da Favela. Próximo ao Alto do Mário, situa-se uma grande vala comum, possivelmente vizinha do hospital de campanha dos militares, onde eram enterrados os soldados. É o chamado "Vale da Morte". 


O Parque foi uma ideia do professor Renato Ferraz um dos mais ativos lutadores pela memória de Canudos — pesquisador, organizador de seminários e eventos sobre o assunto. Ferraz sabe tudo o que é possível saber de Canudos. Só falta escrever um livro a respeito, algo que promete vagamente para o futuro. 

A parte visível do Parque Estadual de Canudos. que é administrado pelo Centro de Estudos Euclides da Cunha, da Universidade Estadual da Bahia, consiste, por enquanto, num portal de entrada e em placas de localização dos sítios históricos. No decreto de sua criação. pelo governo do Estado, estatue-se que deverão funcionar no local "museu, laboratório de arqueologia, estação experimental de meteorologia, escolas experimentais e outras instituições". 

Um trabalho de exploração arqueológica está em curso, a cargo do arqueólogo paulista Paulo Zanatini. Trata-se de uma arqueologia histórica. basicamente — procuram-se trincheiras, barricadas, armas ou restos  de armas, balas, objetos de uso cotidiano dos soldados ou sertanejos, ossadas, sepulcros. Uma das últimas descobertas de Zanatini foi que as ruínas até agora consideradas da Fazenda Velha são de uma casa mais recente, do início do século. A Fazenda Velha verdadeira, da época da guerra está soterrada embaixo dessas ruínas. 


No Alto Alegre uma trinca de garotos de 11 ou 12 anos cerca-nos e se dispõe a levar-nos a um passeio de bote pelo lago. Um dos meninos, Gilmar, conta que o "painho" uma vez achou uma canela no chão. Ou seja, um osso da perna, ou o que ele supôs fosse um osso da perna. Não se pode ficar com esses achados, explica Gilmar. O pai então deu para um alemão. Um alemão? Não, ele não sabe direito se era alemão. Mas sabe que era uma pessoa que "não fala igual que a gente. não". 

Manuel Travessa

No bote, passeando pelo lago. percebem-se. quase à superfície, encobertos somente por um palmo de água, as guarnições laterais de uma antiga ponte. Essa ponte fazia parte da estrada que cortava a segunda Canudos. Há também uma ruína que aponta para fora do lago. Trata-se da parte superior do portal de um cemitério, também da segunda Canudos. Da Canudos do Conselheiro, a única construção que sobrou de pé, ao fim da guara, foi um cruzeiro que se erguia à frente da igreja velha. Às vésperas da inundação da área, o cruzeiro, de madeira, foi transportado para o povoado de Cocorobó, para onde estava sendo transferida a população. Ficou o pedestal de cimento em que ele se incrustava. No ano passado. o nível do açude baixou sensivelmente, e o pedestal, ou o que resta dele. emergiu das águas. Um pouco do Conselheiro voltava à tona. Ferraz, aquele que sabe tudo de Canudos e teve a ideia de instituir o parque, serviu de guia ao peruano Mario Vargas Llosa em 1979, quando este realizava as pesquisas para seu romance sobre a Guerra de Canudos, A Guerra do Fim do Mundo

Um dia, Vargas Llosa e Renato Ferraz fizeram uma escala na cidade sergipana de Simão Dias. No hotel onde se hospedaram, rústico como todos na região, foram recebidos por um funcionário homossexual — sim, há disso também no sertão. Logo depois, invade o quarto uma senhora que sem dúvida guiada pelas informações do funcionário, queria conhecer o atraente estrangeiro. Ela se ouriça: "Argentino!, argentino!", exclamava, como uma fã de galã de televisão. Era a dona do hotel, dona Raimunda. Quando se preparavam para partir da cidade. dona Raimunda pediu uma carona até Lagarto. Atenderam-lhe ao pedido. e ela viajou no banco de trás. Quando chegaram a Lagarto. dona Raimunda foi saindo devagar do carro, esgueirando-se, no difícil movimento de deixar o banco de trás de um Fusca... e então deu o bote. Numa manobra fulminante, prendeu-se ao pescoço de Vargas Llosa e pespegou-lhe um beijo na boca. 

Manuel Travessa diz que ouviu uma vez do avó que Canudos seria destruída três vezes. — A primeira vez pelo fogo, a segunda pela água e a terceira pelo pó. Pelo fogo foi a guerra. Pela água. a represa. Só falta pelo pó. Esse avô de Travessa era o materno, de nome Mundu, um criador de cabras. Ele explica que a mãe teve treze filhos antes dele. Depois, "me conseguiu". E o pai? Do pai, Manuel Travessa não sabe: "Sou filho de mulher particular". Manuel Travessa subiu na vida e hoje, além de empresário, é político — elegeu-se vereador, em Canudos. 

Como seria essa terceira destruição da cidade de que falava seu avó? 


— O que espero é que a barragem estoure e essa lama se torre no pó. Aí ninguém vai escapar desse pó. Isso é o que eu penso.  

Fonte: Revista Veja de 3 de setembro de 1997
Reportagem Roberto Pompeu de Toledo
Raul Meneleu Mascarenhas
Pesquisador e escritor ; Aracaju-Sergipr
Conselheiro Cariri Cangaço
http://meneleu.blogspot.com/2016/04/canudos-duas-vezes-morto-duas.html




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Antônio, O Conselheiro do Brasil
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