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Resenha do Cangaço - Lampião: duas vidas, duas mortes? Por: Lemuel Rodrigues



Resenha apresentada no Canal HISTORIA ATUAL, no YouTube, capitaneado pelo professor doutor Lemuel Rodrigues, ex-Presidente da SBEC - Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço.

No programa comenta a obra "Lampião, o invencível: duas vidas, duas mortes – o outro lado da moeda", de José Geraldo Aguiar. O autor defende a tese de que Lampião não morreu em 1938 na Grota do Angico, e sim em agosto de 1993 no estado de Minas Gerais.

Entre Rezas e Bacamartes a Obra Prima de Valdir Nogueira


O CEHM comunicou nessa segunda-feira 11 de outubro a publicação do já esperado livro de seu associado Valdir Nogueira, cujo título: ENTRE REZAS E BACAMARTES, possui prefácio do historiador e membro da Academia Pernambucana de Letras, Frederico Pernambucano de Mello, e integra a Coleção Tempo Municipal do referido Centro de Estudos de História Municipal – CEHM/Agência Condepe/Fidem.

A obra traz um recorte sobre a atuação do Monsenhor Afonso Pequeno e a tradicional desavença entre as famílias Pereira e Carvalho sob a ótica da alternância de poder na lendária região do Pajeú do sertão pernambucano. Numa terra em que imperava a lei do punhal e do bacamarte, essas duas famílias espargiram sangue em ódios feudais, numa luta que esbarrou num famigerado banditismo.

Augusto Martins, Manoel Severo e Valdir Nogueira
Sobre o livro de Valdir Nogueira comentou o professor Yony Sampaio, professor da Universidade Federal de Pernambuco e Consultor do Banco Mundial: “Muitos livros tem tratado da lendária briga entre os Pereira e os Carvalho. De modo geral exploram os confrontos armados, as sucessivas emboscadas e ataques, culminando com o período de Sebastião Pereira e Luís Padre. Este fantástico relato de Valdir Nogueira, Entre Rezas e Bacamartes, no entanto, é o primeiro a analisar em detalhe as intrigas politicas, a alternância de poder local, que vem a se constituir no cenário onde a questão se desenvolve.

Monsenhor Afonso Pequeno

Geograficamente, amplia o centro da questão para os municípios de Belmonte e Vila Bela, de onde se irradia pelo Pajeú e pelo sul do Ceará, relacionando movimentos do Cariri a incidentes no Pajeú. Indo aos fundamentos da questão, antepõe o Monsenhor Afonso Pequeno ao coronel Antônio Andrelino Pereira da Silva, filho do Barão do Pajeú.

De um lado, um padre guerreiro, politico, mas defensor da religião, a exemplo de muitos, como o Monsenhor Arruda Câmara, na revolução de trinta. De outro, um coronel tentando manter a estatura e autoridade do pai, porém sem possuir as mesmas qualidades de sobriedade e equilíbrio. Os novos perfis que traça, revelam faces escondidas da questão. Para iluminar tantas questões, Valdir divulga correspondências inéditas, comunicações em jornais da época, e corrige interpretações equivocadas.
O livro de Valdir já nasce um clássico, essencial para melhor entendimento da história e da formação social daquele sertão. O autor nasceu e foi criado em Belmonte e já nos brindou com um belo livro sobre São José do Belmonte. Conhece quase cada palmo de terra, discorre sobre as fazendas, locais de emboscada e convive com descendentes das famílias envolvidas, hoje bastante entrelaçadas, como sempre ocorre na sociedade sertaneja. Assim, possui a autoridade necessária para tal empreitada. Simples, de fala mansa, em outras épocas poderia ter tomado o bacamarte e entrado catinga adentro. Porém tem sido mais afeito aos estudos e ao conhecimento e preservação do passado da região.

Excelente pesquisador, minucioso, reverencia nosso passado e tem sido o esteio da hoje famosa cavalhada do Belmonte que homenageia e relembra os incidentes da Pedra Bonita, então Serra Talhada e hoje Belmonte, que incendiou a imaginação de Ariano Suassuna no Romance da Pedra do Reino. Ao leitor, tenho certeza que embarca em aventura prazerosa e educativa. Do autor, espero que continue a perscrutar nosso passado e revelar aspectos pouco conhecidos da nossa formação histórica e social”.

CALDEIRÃO E CONTESTADO - Um Estudo Comparativo de uma Guerra do Sertão


O Caldeirão do Beato José Lourenço e a Guerra do Contestado, dois dos mais extraordinários e marcantes episódios que nos trazem a feição trágica do Messianismo no Brasil, serão o Tema dos Grandes Encontros Cariri Cangaço desta quarta-feira. Sua gênese, seu desenvolvimento, as repercussões, enfim. Manoel Severo, curador do Cariri Cangaço, recebe os professores, Lemuel Rodrigues da UERN e Paulo Pinheiro Machado da UFSC para um programa especial, AO VIVO no Canal do You Tube do Cariri Cangaço: CALDEIRÃO E CONTESTADO - Um Estudo Comparativo de uma Guerra do Sertão, imperdível nesta quarta, dia 27/10 as 19h30 , vem com a gente.

O Tribunal do Júri de Villa Bella , PE julga o Coronel Chico Chicote - 1913 – Análise de Autos de Processo-Crime

Herlon Fernandes

Há alguns anos venho desbravando as fontes históricas, sejam na bibliografia conhecida ou nos documentos dos arquivos, acerca do personagem central de um romance, já em adiantada fase. Trata-se da pessoa do coronel Chico Chicote, brejo-santense radicado em Porteiras, na famosa localidade Guaribas, atacada em 1927, por quatro forças policiais e pelo consórcio de seus inimigos. Ele foi símbolo de poder naquela época, típico líder da era do bacamarte.

Um neto do próprio Chico Chicote, o advogado Djalma Inácio de Lucena, ao narrar o que sabia sobre as histórias do avô, contou-me sobre um júri à que fora submetido o coronel, na comarca de Belmonte, sem data certa. Não sabia maiores detalhes a respeito. Com tais informações, em pesquisas na hemeroteca da Biblioteca Nacional, acabei por descobrir a notícia de um jornal, revelando a prisão de Chico Chicote, no ano de 1913, em Belmonte, Pernambuco. 

Com esse fio, conversando com Valdir Nogueira, amigo que a família Cariri Cangaço me agregou, residente naquele local, conversamos sobre a minha sonhada vontade de poder encontrar os autos daquele processo-crime, certamente uma fonte de informações preciosas, considerando a oficiosidade dos atos judiciais. Conversamos sobre muitos fatos curiosos da antiga Villa Bella; Valdir me disse que, por coincidência, seguiria até Recife, no dia seguinte, e daria um pulo no departamento histórico do Tribunal de Justiça do Estado do Pernambuco, onde o processo talvez estivesse arquivado.


Qual não é minha surpresa quando recebi os preciosos documentos: o processo de primeiro grau e a respectiva apelação.
Ao folhear as velhas páginas destes autos, senti-me como talvez se sentiram os arqueólogos que abriram a tumba de Tutancámon; ao transcrever os rebuscados manuscritos, senti-me como um Sherlock Holmes. Foi o mais próximo que consegui chegar do famigerado coronel.

Conforme CALEIRO, et al, os processos “são testemunhos dos costumes e da constituição do universo físico e mental do período analisado, bem como da ação da justiça institucionalizada. As imagens que se depreendem da leitura destes documentos descortinam relações de poder, amor, ódio, violência e solidariedade.”

O processo, presidido por uma autoridade de Estado, um juiz togado, respeitado o Contraditório e Ampla Defesa, é documento valiosíssimo para a pesquisa, porque seu conteúdo reflete “aspectos da vida cotidiana, uma vez que, interessada a justiça em reconstruir o evento criminoso, penetra no dia-a-dia dos implicados, desvenda a sua vida íntima, investiga seus laços familiares e afetivos registrando o corriqueiro de suas existências” (MACHADO, 1987, p. 23). Compartilho, pois, com todos vocês da análise de transcrições relevantes de peças do dito processo. Certamente, minha intimidade com o processo penal facilitou-me a tarefa. É um precioso mergulho no tempo.



A DENÚNCIA

Por libelo crime em cartório diz a justiça pública, como autora, por seu promotor, contra os réus Francisco Pereira de Lucena, vulgo Chico Chicote; Antônio de Lira; José Luiz e Laurentino de Tal, por esta ou na melhor forma de direito.

E.L.C.

1. Provará que no dia 12 de Agosto de mil novecentos e seis, de 3 para 4 horas da tarde, no lugar Mameluco, deste município, os réus desfecharam diversos tiros de rifles em Félix de Tal, dos quais um o atingiu produzindo-lhe o ferimento descrito no presente sumário.
2. Provará que este ferimento por sua natureza e sede foi causa eficiente da morte do ofendido.
3. Provará que os réus cometeram o crime impelidos por motivo frívolo.
4. Provará que os réus cometeram o crime com superioridade em armas de modo que o ofendido não pudesse defender-se com probabilidade de repelir a ofensa.
5. Provará que os réus cometeram o crime com premeditação mediando entre a deliberação criminosa e a execução o espaço pelo menos de 24 horas.
6. Provará que os réus cometeram o crime com surpresa.

Nestes termos, pede-se a condenação dos réus nos graus máximos do art. 294, §1º, do Código Penal, por se dar nas circunstâncias agravantes do 39, §§2,º, 4º, 5ª e 13º do mesmo Código Penal. E para que o crime se julgue, se oferece o presente libelo que se espera seja recebido e afinal julgado provado.

E. Custas

Requeiro a bem da acusação que tenham lugar as diligências legais e especialmente que sejam notificadas as testemunhas abaixo arroladas para comparecerem às sessões do julgamento a fim de afirmarem o que souberem e perguntado lhes for acerca do presente crime.

Rol de Testemunhas:

1. José Feijó de Medeiros
2. [?] Ribeiro de Melo
3. Antônio Feijó de Medeiros
4. José Pinho Celestino
5. Amaro Pereira de Araújo
6. Alexandre B [?] de Araújo
Umas residentes no Ceará, outras neste município
Villa Bella, 13 de Junho de 1913.
O Promotor Público
Januário Batista do Amaral


A INSTRUÇÃO PROBATÓRIA: MOTIVAÇÃO DO CRIME E INTERROGATÓRIO DO RÉU

O juiz presidente do Tribunal do Júri foi do Dr. Felisberto dos Santos Pereira, natural de Rio Formoso, zona da Mata de Pernambuco. Nascido em 1882 e formado em 1907, pela Faculdade de Direito do Recife, sendo colega do poeta paraibano Augusto dos Anjos. 

Destaco trechos relevantes a oitiva das testemunhas.

a) 1ª TESTEMUNHA
José Feijó de Medeiros

Que achava-se no campo, na qualidade de vaqueiro que era, no dia doze de agosto de mil novecentos e seis, data em que se deu o fato delituoso de que se trata, (…) quando ela testemunha vinha saindo de uma vereda que desemboca na estrada de Canabravinha deste termo, aí encontrou-se inesperadamente com o denunciado Francisco Pereira de Lucena, vulgo Chico Chicote, e mais três indivíduos aos quais ela testemunha não conheceu; que aí todos lhe disseram - boa tarde - e um deles dirigindo-se a ela testemunha disse-lhe que desse lembrança a Félix de Tal que agora iria levar carta no inferno; que logo após os citados indivíduos, todos armados de rifle, continuaram o seu caminho pela referida estrada e ela testemunha surpresa com o que acabava de ouvir, dirigiu-se imediatamente a sua casa, onde deixou a roupa de couro, digo de campo, logo se encaminhando para um açude próximo em que o citado Félix trabalhava; que em ali chegando encontrou ele à margem do açude referido, de pé e recostado a um pau, o aludido Félix, que apresentava um ferimento mortal na região lombar, produzido por bala, ferimento este que atravessando todos os tecidos da região, veio terminar do outro lado na região abdominal correspondente; que ela testemunha indagando de Félix o motivo de semelhante desgraça, este lhe respondeu que há poucas horas apenas fôra surpreendido no seu trabalho pelos denunciados Chico Chicote, José Luiz, Antônio de Lyra e Laurentino de Tal, os quais se aproximando dele ofendido, descarregaram-lhe cerrada carga de tiros, ouvindo antes Chicote dizer para seus companheiros: - O homem é este - que o próprio Félix disse a ela testemunha ter contado onze tiros na ocasião dos disparos e que não obstante estar armado de garrucha, tão atarantado ficou que dela não fez uso; que ela testemunha verificou na vítima além do ferimento descrito uma espécie de queimadura no braço direito, sendo de presumir que tivesse sido feita por alguma bala mal alvejada; que Chico Chicote e seus companheiros se aproximaram da vítima sem que esta pressentisse, tanto que ao passarem pelo rancho que Félix ali fizera para descanso nas horas mais quentes do dia, apanharam o rifle do mesmo Félix que ali estava, carregando-o depois do fato; que a opinião corrente e mais segura é a de que o motivo do crime foi determinado pelo fato de Félix ter dito ao seu patrão e compadre Manuel Chicote, irmão do primeiro denunciado, que este havia pegado dolosamente uns bois de propriedade do referido Manuel Chicote; que dias depois José Chicote, também irmão do referido denunciado, fez público que o fato fora levado ao conhecimento de Manoel Chicote, por Félix; que inconformado [?] com a denúncia de Félix, Chico Chicote prometeu que tomaria uma vingança, seria logo que se encontrasse com o mesmo Félix; que este sendo avisado do sinistro que contra si se tramava, resolveu mudar-se para Mameluco deste termo (...)


b) 2ª TESTEMUNHA
De...do Ribeiro de Melo:

(…) Que estava em sua casa no lugar Mameluco deste termo, por volta de quatro horas da tarde do dia doze de agosto de mil novecentos e seis, quando aí chegou José Feijó de Medeiros, e lhe disse que a curta distância dali e num açude em que estavam trabalhando Félix de Tal e outros trabalhadores, com uma garruncha, dela não se serviu, que além desta arma Félix tinha no rancho em que costumava descansar, e ali também situado, um rifle que os criminosos após o delito carregaram; que o motivo do fato delituoso referido é público e notório, foi ter Félix, quando morava no Cariri, denunciado de Chico Chicote ao patrão dele Félix, Manuel Chicote, irmão do denunciado, por ter este pegado uns bois do irmão com dolo; que sabedor desta denúncia Chico Chicote ficou seriamente [ilegível] com Félix, prometendo que desforraria do seu atrevimento na primeira ocasião em que o encontrasse. Que devido a este incidente, Félix deixou a companhia de seu patrão e veio para Mameluco, onde há apenas um mês se achava trabalhando no aludido açude; que Chicote e os seus companheiros sabendo o paradeiro de Félix vieram a seu encontro (...); que incontinente ela testemunha saiu de casa em demanda do açude ali encontrando Félix banhado de sangue e apresentando um ferimento produzido por bala de rifle, a qual penetrando na região lombar esquerda e atravessando os intestinos veio sair na região abdominal correspondente próximo ao umbigo; que dirigindo-se a Félix perguntou-lhe como se dera aquele fato, ao que este respondeu que estando no seu trabalho foi de surpresa acometido por Chico Chicote e mais três indivíduos (...) que sobre a conduta do primeiro denunciado, ela testemunha tem ouvido dizer ser muito irregular por se ele homem perverso e dado ao cangaço; que dos outros denunciados nada sabe por não ouvir dizer, nem conhece-os; que o morto era homem trabalhador e de bons costumes. E por mais não dizer nem lhe ser perguntado, deu-se por findo este depoimento, que lido e conforme assina a rogo da testemunha.

c) 3ª Testemunha
Antônio Feijó de Medeiros

(...) que conhece desde menino Chico Chicote, e faz do mesmo péssimo juízo, pois sempre o conheceu como turbulento e dado ao cangaço, sabendo igualmente que ele é autor de outros crimes além deste, no Estado do Ceará, embora lhe conste não estar sujeito a processo naquele Estado; que o seus corréus, segundo consta, são cangaceiros de profissão, mas ela testemunha nada sabe de positivo a respeito da conduta dos mesmos; que relativamente a Félix o conhecia de pouco tempo, mas sempre o viu proceder com correção, mostrando-se trabalhador e honesto.

) 4ª Testemunha
José Pedro Celestino, conhecido por José Dutra, com cinquenta e oito ano de idade, casado, agricultor, natural do Estado da Paraíba, residente em Porteiras, Estado do Ceará, não sabe ler nem escrever, aos costumes disse nada, testemunha jurada na forma legal, prometeu dizer a verdade do que soubesse e lhe fosse perguntado.

E sendo inquirida a denúncia de folhas, que lhe foi lida, respondeu: que no dia em que se passou o fato criminoso, ela testemunha achava-se no lugar, digo, no local em que o mesmo fato se passou, num açude em que com Félix estava trabalhando; que ela testemunha achava-se em cima da barreira do açude e Félix embaixo marcando a parede do mesmo açude, quando de repente ouviram o estampido de sucessivos tiros e a voz do denunciado Chico Chicote chamar - "Morreste, negro', que Félix, implorando em gritos a proteção divina procurou fugir à sanha dos seus agressores, correndo de riacho acima, ao passo que o tiroteio continuava; que ao saltar uma cerca recebeu uma bala, que penetrando na região lombar direita, perfurou os intestinos vindo sair na região umbilical produzindo grande derramamento de sangue acompanhado da expulsão de uma parte do tecido adiposo da aludida região; que do grupo criminoso ela testemunha conheceu bem aos denunciados Francisco Pereira de Lucena, vulgo Chico Chicote, e José Luiz, vindo a saber depois de fonte insuspeita que os outros eram Antônio de Lyra e Laurentino e de Tal; que Félix estava na ocasião armado de uma pistola pequena, mas dela não se serviu, tendo a fora dessa arma e num rancho ali também situado um rifle que os criminosos carregaram; que depois de praticado o crime o denunciado José Luiz quis obrigar a ela testemunha a entregar o aludido rifle que depois eles encontraram no aludido rancho; que o denunciado Chico Chicote disse a ela testemunha tempos depois que não tinha dado esse conhecimento no dia em que atiraram em Félix, porque então não estava ainda bem informado dos precedentes dela testemunha a respeito dele denunciado, aludindo assim a informações caluniosas que pessoas suas desafetas haviam dado a seu respeito ao mesmo Chicote; que o fato criminoso originou-se de uma denúncia que dizem Félix ter dado contra Chico Chicote aos irmãos deste, denúncia que se baseava no fato de ter Chico Chicote ilicitamente pegado uns bois de seus irmão; que divulgado esse fato, Chicote entrou a perseguir Félix, de modo tão tenaz que obrigou este a retirar-se da companhia de seu patrão no Cariri para vir trabalhar no Mameluco, deste município; que aí chegando não suspeitava sequer dos planos criminosos do seu desafeto por estar longe de suas vistas quando de chofre foi atacado pelo mesmo do modo já referido, o qual teve como companheiros os demais denunciados

INTERROGATÓRIO

Interrogatório do réu Francisco Pereira de Lucena, vulgo Chico Chicote.
Perguntado qual o seu nome, naturalidade, estado, idade e residência?
Respondeu chamar-se Francisco Pereira de Lucena, conhecido por Chico Chicote, natural do Estado do Ceará, com trinta e quatro anos de idade, casado, residente no município de Porteiras, do Estado do Ceará.
Perguntado qual o tempo de sua residência no lugar declinado?
Respondeu que há cerca de cinco anos.
Perguntado quais seus meios de vida e profissão?
Respondeu que agricultor e criador.
Perguntado se sabia ler e escrever?
Respondeu que sim.
Perguntado se sabia o motivo pelo qual era acusado e se precisava de algum esclarecimento a esse respeito?
Respondeu que sabe por ter recebido cópia do libelo.
Perguntado se conhece as testemunhas que juraram neste processo e se tinha alguma causa a opôr contra elas?
Respondeu que conhece a(ilegível) a de nome José Dutra, que é parente do morto, sendo as demais suas desafetas.
Perguntado se tinha algum motivo particular a que atribua a acusação?
Respondeu que não.
Perguntado se tinha fatos ou provas que justificassem ou mostrassem sua inocência?
Respondeu que tem e o seu advogado oportunamente dirá.
Perguntado se tinha mais alguma causa a declarar ou esclarecer?
Respondeu que não.


O júri depois de haver nomeado dentre si por escrutínio secreto e por maioria absoluta de votos, o seu presidente e secretário da leitura recomendada pela lei e mais formalidades desta, respondeu aos quesitos pela maneira seguinte:

Ao 1º quesito:
Não, por nove votos
O réu Francisco Pereira de Lucena, vulgo Chico Chicote, de 3 para as 4 horas da tarde, do dia 12 de Agosto de 1906, no lugar Mameluco deste Município de Belmonte não desfechou tiros de rifle em Félix de Tal produzindo-lhe o ferimento descrito no corpo de delito [ilegível] deste sumário.

O júri deixa de responder aos demais quesitos por se achar prejudicado com a resposta do primeiro.

Sala secreta do Júri de Belmonte, 26 de Novembro de 1913.

Hérlon Fernandes Gomes, Munganga Cultural
Porto Velho, Rondônia, 11 de Outubro de 2021
Fonte:https://amunganga.blogspot.com/2021/10/o-tribunal-do-juri-de-villa-bella.html?fbclid=IwAR3--YAFDYKtY7lQg7vOq8OnD37GcEfKHOSRQfoelidiLfQmxqPSkuCzkBY

O Tiro no Pé nos Grandes Encontros Cariri Cangaço

 

Frondosa e ainda existente, a árvore do tipo “pau-ferro”, localizada bem às margens da lendária Lagoa do Vieira, a pouca distância da Pedra do Reino, testemunhou o combate travado no dia 23 de março de 1924, com uma volante comandada pelo major da polícia de Pernambuco Theophanes Ferraz, onde o cangaceiro Lampião foi seriamente atingido no pé e morta sua montaria, tombando o animal sobre sua perna. Tendo se livrado do peso do animal morto e mesmo ferido, o cangaceiro consegue reagir à altura da situação. Na gruta conhecida como Casa de Pedra, na Serra do Catolé município de São José do Belmonte, Lampião se refugiou e iniciou sua recuperação.

Interessante apontar que da Casa de Pedra onde se refugiou Lampião, tem-se uma magnífica visão do vale onde fica a famosa área histórica conhecida como Pedra do Reino, retratada no romance de Ariano Suassuna – O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. A Lagoa do Vieira também é citada nesse famoso romance através de uma explicação dada pelo personagem Luís do Triângulo:

“Naquele momento, chegávamos a uma Lagoa rasa, situada à direita da estrada, Luís do Triângulo explicou: - Essa é a Lagoa do Vieira! Os Vieiras eram parentes do Rei João Ferreira e estiveram, também, metidos na “Guerra do Reino”! Diziam eles que esta Lagoa era encantada e que, aqui, Dom Sebastião tinha uma mina de ouro para os pobres!”. A famosa notícia do tiro no pé de Lampião ensejou inúmeros escritos jornalísticos e literários. O cronista José Carvalho, carioca da gema, sob o título “Lampião, o tiro no pé” publicou no “Correio da Manhã (RJ)” no ano de 1932, edição 11386, pág. 17:
“Lampião, um dia, numa refrega com a polícia levou uma bala no pé. E com ele sangrando correu a presença de um médico que sabia estacionar perto do lugar em que achava em fuga. Enquanto o médico examinava o ferimento, Virgulino agita-se impaciente, com esse preventimento instintivo que caracteriza e protege certos criminosos.
Mas o doutor queria puxar pela língua do bandido, prelibando, sem dúvida, o gozo de uma entrevista aos jornais. A impaciência de Virgulino aumenta. Não quer conversa.
- Seu dotô, acabe com isto!
- Se é preciso cortar o diabo deste pé, corte logo! Me despache que a poliça não deve tardá por aqui!
Mas o médico ia, calculadamente prolongando o exame e a conversa.
E a outra rogativa inquieta do ferido, obtemperou:
- Ora, deixe de pressa!
- A polícia não vem agora por aqui. Você tem muitos amigos?
E Virgulino:
- Eu me admiro um doutor formado como o senhor dizer uma coisa destas!
E concluiu; conciso, alto, vibrante:
- Bandido não tem amigo!


Para entendermos esse episódio que poderia ter mudado a historia do Cangaço, Manoel Severo, Curador do Cariri Cangaço recebe os pesquisadores Clênio Novaes de São José de Belmonte e Geraldo Ferraz de Recife para mais um AO VIVO sensacional no Canal do YouTube do Cariri Cangaço, neste quarta, 13 de outubro as 19h30.


"A Santa do Joazeiro" Por Fátima Pinho


O título acima foi a manchete de uma notícia publicada no jornal O Libertador, de Fortaleza, em 19 de maio de 1890. Naquela data, os fatos extraordinários que vinham sucedendo em torno de uma jovem moça do povoado do Juazeiro, termo do Crato, já tinham tomado um considerável espaço na imprensa de todo o território brasileiro e em alguns jornais de Portugal, França, dentre outros países.

A trama, que teve como protagonistas Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, popularmente conhecida como “beata Maria de Araújo” e o padre Cícero e que, além dos dois, contou com muitos outros personagens, mudou a história e o contexto do sertão brasileiro, consistindo no encontro entre uma menina de família humilde e numerosa, de cor negra e um homem devotado à Igreja do seu tempo.

O primeiro encontro do padre Cícero com a então menina Maria Magdalena do Espírito Santo ocorreu no início de 1872, ano em que fixou residência no povoado do Juazeiro como sexto capelão.

Professora Doutora, Fátima Pinho, da URCA

Segundo o padre Cícero, em documento intitulado “Exposição dos fatos extraordinários ocorridos com a beata Maria de Araújo”, escrito do próprio punho a pedido do bispo Dom Joaquim, conheceu a menina Maria quando ela tinha entre 8 e 10 anos ao confessá-la em preparação para a primeira comunhão, percebendo, já naquele momento, que se diferenciava de outras crianças da mesma idade. Nesse tocante, afirma o sacerdote que nela encontrou “[…] as melhores disposições […] para a vida interior”, aconselhando-a, portanto, “[…] a se consagrar a Nosso Senhor; o que ela executou do modo o mais íntimo e perfeito, considerando-se desde aquela data como uma verdadeira esposa de Jesus Cristo.”

Ao confessar que reconheceu na menina “disposições para a vida interior”, aconselhando-a a consagrar-se à vida religiosa, incentivando-a a viver e portar-se moderadamente como “esposa de Cristo”, impõe-se, por assim dizer, como o responsável pela descoberta da vocação para a santidade daquela que será, anos depois, a protagonista dos fatos que mudarão completamente a vida do povoado, de seus habitantes e, sobretudo, do próprio sacerdote, estabelecendo entre os dois uma relação de cumplicidade que irá permear a convivência de ambos até a morte da beata em 1914, cabendo ao padre Cícero o papel de mentor e orientador espiritual.

Ainda nesse documento, padre Cícero relata outros momentos em que Maria de Araújo teria desenvolvido a habilidade de se conectar ao sobrenatural. Segundo ele, em 1880 se deu uma aparição da Virgem Santíssima e, a partir de então, encontros com Cristo. Em 1883/84, ao assistir uma missa, afirma que Maria recebeu um “[…] amplexo, ficando impressa no peito uma cruz a deitar sangue”, do qual ele mesmo foi testemunha.

Imagens de programa Ao Vivo, Cariri Cangaço Grandes Encontros: O Milagre da Hóstia, com Manoel Severo, Fatima Pinho, Urbano Silva e Renato Dantas

Os fatos sobrenaturais que envolviam Maria de Araújo desde a sua infância – mas que eram mantidos em segredo -, passam a ser testemunhados pela população local a partir de 1885, quando começam a acontecer em atos públicos.

Em 1887, com a manchete UMA SANTA NO CEARÁ oriundos de dois jornais de Fortaleza – A Constituição e O Libertador – e replicados em periódicos de sete províncias do Brasil e um jornal de Portugal, circula uma matéria tratando do assunto: “[…] Todo o povo do Crato acha-se alarmado com a notícia de uma virgem piedosa residente no Juazeiro e confessada do padre Cícero. Diz o rumor público que ela é santa em carne viva e que tem como Anna Catharina de Emmerich, visíveis em seu corpo todos os estigmas da paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Durante dois anos, após a publicação desta notícia os fatos relativos à santidade da beata ficaram restritos à oralidade, discutidos em rodas de conversa, nas residências, igrejas, etc., até por que o padre Cícero não concordava com a divulgação de tais acontecimentos antes de um posicionamento oficial da Igreja Católica.

Contudo, em 1° de março de 1889, na sexta-feira que antecede o Carnaval, após uma noite de vigília e penitência para que houvesse inverno, a jovem Maria de Araújo, ao receber a comunhão das mãos do padre Cícero percebeu que a hóstia consagrada havia se transformado em sangue. Era a primeira das mais de centenas de vezes que o fato viria a acontecer.

Entendido como uma manifestação divina e um milagre, o fato chegou à imprensa em 19 de julho de 1889. O jornal cearense Pedro II publica uma carta enviada do Crato com a pergunta: SERÁ MILAGRE?

A notícia dizia que “[…] na povoação do Joazeiro, termo do Crato, existe uma mulher moça, de reconhecidas virtudes. Desde algum tempo, a datar de sexta-feira santa do corrente ano, que nas confissões que faz, por ocasião de commungar, a partícula sagrada desfaz-se em sangue, de modo que a toalha da mesa de comunhão está completamente manchada de sangue […]. O Rvd. Padre Cícero Romão Baptista, que é o coonfessor de Maria de Araújo (assim se chama a virtuosa moça) afirma o fato já descrito, que ainda ontem, antes da missa cantada e sermão, reproduziu-se, de modo que o sangue estava visivelmente novo.”

Os chamados “Milagres do Juazeiro” passaram a ser noticiados pela imprensa nacional e até por periódicos de outros países que publicavam cartas, artigos e testemunhos de pessoas que vinham ver in loco Jesus se manifestando na “santa beata do Juazeiro”

Somente no ano de 1889, 16 jornais dentro e fora do Brasil reverberaram os “milagres do Juazeiro”. Até 1898, ano em que o padre Cícero vai a Roma em busca do reconhecimento da Igreja Católica de que os fatos eram manifestações divinas, centenas de notícias circulavam em periódicos, folhetos e cordéis instaurando o debate sobre a veracidade dos fatos e colocando o padre, a beata e o povoado no cerne da discussão, transformando-os, respectivamente, em santo e santa e o povoado, na “Nova Jerusalém”.

Ainda no final do século XIX, a Igreja Católica, ao não reconhecer os fatos do Juazeiro como milagre, condenando-os como “prodígios vãos e supersticiosos”, cassou as ordens sacerdotais do padre Cícero e proibiu os fiéis de falarem sobre a beata e os ditos acontecimentos sob pena de excomunhão.

Instaura-se aí a chamada “Questão religiosa do Juazeiro”, começando uma devoção popular que, à margem do consentimento eclesiástico que só crescia ao longo dos anos.

Na atualidade, o lugar foi transformado na “capital da fé nordestina”, recebendo, em tempos normais, mais de 2 milhões de romeiros por ano. Padre Cícero e Maria de Araújo, igualmente, ganharam visibilidade e projeção através da imprensa, de livros e de centenas de estudos realizados nas mais diversas áreas do conhecimento ao longo dos anos.

No entanto, tamanha visibilidade não ocorreu de forma igual para os protagonistas dos fatos do Juazeiro. Enquanto o padre Cícero foi transformado numa das personalidades mais conhecidas do Brasil, cuja biografia é descrita em centenas de livros, objeto de milhares de reportagens, julgado, defendido, analisado, polemizado, estudado, etc., coube à beata Maria de Araújo apenas o papel de coadjuvante.

A beata Maria Araújo, que antes da condenação da Igreja foi tratada na imprensa como a protagonista dos chamados “milagres”, descrita comumente com adjetivos elogiosos – virtuosa moça, devota de reconhecidas virtudes, santa, virgem, sendo em muitas matérias apresentada como a “A beata Maria do Crato”, “A beata Maria do Juazeiro”, “A beata Maria de Araújo e os fatos do Juazeiro”, “A santa do Juazeiro”, “pobre e humilde serva de Deus” – passou, sobretudo a partir de 1897, a ser descrita como “cavilosa”, “embusteira”, “celebre impostora”, “a grande embusteira do Juazeiro”, “ardilosa embusteira”, “histérica”.

Embora continuasse a ser amada e respeitada por milhares de sertanejos, no transcorrer do século XX Maria de Araújo caiu no ostracismo, no esquecimento, pouco se falando sobre ela e quando o faziam, despontava como coadjuvante do padre Cícero.

Felizmente, na década de 1980, no meio acadêmico, a memória de Maria de Araújo começa a emergir através da bela dissertação de mestrado – depois publicada em livro – de Maria do Carmo Pagan Forti, intitulada “Maria do Juazeiro: a beata do Milagre”. A partir daí as narrativas sobre Maria Magdalena do Espírito Santo, a “santa beata Maria de Araújo do Juazeiro”, ressurgem em livros, monografias, dissertações, teses, artigos científicos, reportagens, ritos, celebrações, devoções.

Hoje existe um grupo constituído por devotos, pesquisadores e religiosos chamado “Movimento pela reabilitação da memória da santa beata Maria de Araújo”, cujo intuito é realizar encontros acadêmicos e religiosos para discutir sua importância nas questões religiosas do Juazeiro e reivindicar dos poderes públicos o seu reconhecimento, como a lei que obriga a colocação do retrato da beata em repartições públicas. Chegou a hora de falar e conhecer a “Santa do Juazeiro”,

Fátima Pinho, Professora Dra do Curso de História da Universidade Regional do Cariri – URCA. Fonte: https://vermelho.org.br/2021/06/03/a-santa-do-joaseiro-narrativas-sobre-a-beata-maria-de-araujo/