Memórias Sangradas Por: Ricardo Beliel


Bom de prosa, Zé de Olindo nos diz "Zé Sereno e Sila se casaram na Serra Negra e depois se entregaram apoiados por meu pai Antonio Olindo. Corisco quis se entregar para meu tio João Maria, mas preferiu fugir e Zé Rufino, que era da Serra Negra saiu na perseguição. Os cangaceiros aqui não ficaram na cadeia. Foram para a casa de Chico Capitão, que era comerciante de peles, porque tinham medo de vingança, mas viviam nas ruas. Soltos. Era muita curiosidade da gente. Todo mundo queria ver como eles eram. Curiosidade e um pouquinho de medo. Mas Cajazeira e Diferente fugiram. O Cajazeira, que era filho de um coiteiro, o Julião, depois foi candidato a prefeito de Poço Redondo, apoiado por meu tio, mas perdeu e depois roubou as urnas. Para se vingar do prefeito, o Artur, contratou dois pistoleiros, mas quando ele tratou com os dois, o Eron e o Alfredão, eles já estavam entabulados com o outro lado e mataram ele. Cajazeira tinha sobrevivido ao Angico e era casado com Enedina, que morreu no cerco. Depois ele se casou com a irmã dela".

João Capoeira, irmão de Enedina e de Estela, a segunda mulher de Cajazeira, tinha agrado por Zé de Julião, como era conhecido Cajazeira entre os seus, e nos conta em sua pequena casa de dois cômodos em Poço Redondo, amparando seus 106 anos num pau de muleta, que "todo mundo aqui queria que ele fosse prefeito, mas o governo não aceitou não. O Eronides, que foi governador lá na capital, queria outro. Ele pelejou, mas não teve jeito". Julião, um bem sucedido dono de fazendas e pai de seu cunhado, tentou de tudo para tirar da cabeça do filho, Zé, o desejo de se aventurar na companhia dos cangaceiros. "Minha família era pobre e o Zé era fazendeiro. Nós morava na fazenda deles, de nome Jiquiri. O pai dele dava tudo para o filho não entrar nessa vida de bandido, pediu para ele escolher uma das quatro fazendas e até uma casa em Aracaju, em todo canto, mas não teve jeito. Terminou de fazer o casamento com minha irmã e os dois foram pros lados dos cangaceiros. Ela morreu no fogo, mais Lampeão. Lampeão não era conforme o povo dizia. Era um hominho, respeitador de todo mundo". Seu João Capoeira não seguiu os passos e percalços de Enedina, ainda muito jovem preferiu dar ouvidos às palavras de sua irmã mais velha, "não caia nisso não. É só pra nós que já estamos perdidos, pois que cangaceiro é comida de bala".

"Depoimentos de Zé de Olindo, em Jeremoabo, e João Capoeira, em Poço Redondo, Sergipe" Trecho do livro Memórias Sangradas, a ser lançado, sobre a saga dos cangaceiros nos anos 20 e 30.Foto e texto de Ricardo Beliel.



Comentários do Conselheiro Cariri Cangaço, pesquisador e escritor de Poço Redondo, Sergipe, Rangel Alves da Costa:"Alguns equívocos cometidos por Seu Zé de Olindo. Julião de Nascimento, o pai de Zé de Julião (Cajazeira), não pode ser visto propriamente como coiteiro. Ele era fazendeiro, proprietário de muitas terras, e mais voltado para os seus negócios do que para o cangaço. Aliás, seu filho Zé entrou para o cangaço exatamente pelas extorsões feitas pela volante contra seu pai, bem como todos os tipos de agressões praticadas contra os humildes sertanejos. Como não podia revidar ou vingar as barbaridades da volante, então resolveu se juntar ao bando de Lampião. Outro erro também com relação ao roubo das urnas. Numa eleição fraudulenta, Zé de Julião perdeu a primeira eleição que disputou (também a primeira de Poço Redondo). Mas na segunda, ante as falcatruas eleitoreiras já planejadas em seu desfavor, então roubou as urnas pouco após o início da votação. Daí ser errôneo afirmar que perdeu também essa segunda eleição disputada. O candidato opositor foi proclamado vencedor tempos após e sem que nenhum voto tivesse sido contado. Esse foi o único episódio que levou Zé de Julião à penitenciária. Não foi preso após o fim do cangaço, ainda que tivesse sido duramente perseguido (era protegido pelo Coronel João Maria de Carvalho, da Serra Negra), mas pelo roubo das urnas. Tem-se, assim, meu caro Beliel, que tal registro possui alguns testemunhos que necessitam de outro olhar à realidade histórica. Abraço e obrigado pela lembrança em me marcar. Aguardando o amigo em Poço Redondo, no Memorial Alcino Alves Costa.


Comentário de Ricardo Beliel: "Oi querido Rangel Alves da Costa. Minha admiração por você e seu trabalho aí em Poço Redondo em manter viva essa memória da época do cangaço e da região. Por esse motivo o marquei para que pudesse acrescentar seu conhecimento à esses depoimentos. O senhor Zé de Olindo é sobrinho do coronel João Maria e do Liberato de Carvalho. Como ele diz, a eleição em Poço Redondo tinha interesses da família Carvalho, que apoiaram Zé de Julião. Nesse depoimento ele não menciona se houve uma ou duas eleições, apenas que "foi candidato a prefeito de Poço Redondo, apoiado por meu tio, mas perdeu e depois roubou as urnas". Um fato verídico. Mas é curioso como se refere a esse episódio, principalmente sobre a contratação dos pistoleiros. Você tem como confirmar essa informação? Na época em que foram presos os cangaceiros em Jeremoabo ele já tinha idade para ser um bom testemunho. Principalmente porque os cangaceiros ficaram na cidade em contato com a população. Alguns deles se entregaram na região de Serra Negra onde era a base da família Carvalho. Sobre a entrada de Zé de Julião no cangaço, as palavras são do senhor João Capoeira, você o conhece, que era irmão de Enedina e cunhado do Zé. Ele não dá os motivos sociais dessa decisão, apenas que o pai tentou convence-lo a não entrar no bando de Lampião. Seu João deveria ter a mesma idade de Zé, seu cunhado, e conviveu bem com todos eles. Ao chamar o fazendeiro Julião de "coiteiro" o senhor Zé de Olindo pode estar apenas adjetivando o personagem em vez de afirmar que isso era verdade. Veja que essa declaração está nas aspas da fala dele, não me cabe censurá-lo ou corrigi-lo, pois é assim que ele vê e se expressa sobre esse assunto. Eu apenas evito incluir no texto absurdos e mentiras descaradas dadas em minhas entrevistas. Quanto às interpretações dos personagens, tenho que respeitá-los. No livro há bastante texto com a contextualização histórica e por essas informações eu me responsabilizo, quanto aos depoimentos, há algumas contradições, pequenas, mas que revelam um pouco mais sobre eles próprios que estão falando. A História é sempre contraditória, mas a experiência humana é única e é disso que trato no livro. Aproveito para sugerir que eu possa enviar trechos do texto que se referem à sua região e possamos trocar informações para enriquecê-lo. O que acha?

Fonte:Facebook Ricardo Beliel

3 comentários:

Unknown disse...

Achei interessante ele se referir a Lampião como um "hominho", Não pode ser literalmente porque Lampião era mais alto que a média dos nordestinos.Seria uma brincadeira? Porque também não pode ser uma crítica ao caráter de Lampião. Que pode ser chamado de tudo menos de "hominho".

BORBA disse...

Esse "hominho" a mim soa mais como carinho, admiraçao a Lampião.

Ricardo Beliel disse...

Boa observação, mas talvez ele tenha se expressado assim de forma carinhosa. Afinal, ele admira Lampião. Como gravei a conversa, essas são de fato as palavras dele. Mas seu comentário tem sentido. Obrigado.