A Sedição, Zé Pinheiro e Floro... Por:José Mauricio Machado Lima

Raimundo de Oliveira Borges

Esta é uma história que Raimundo de Oliveira Borges (Tio Mundinho), conta, numa das dezenas e dezenas de livros que escreveu; este chamado “O Padre Cícero e a Educação em Juazeiro”, ABC Editora, 2004. O cenário era a revolução de 1914, assim sumariamente descrita, conforme aconteceu na região do Cariri, situada no sul do Ceará, fazendo fronteira com o noroeste de Pernambuco: 

“Em 4 de outubro de 1911, Padre Cícero e outros dezesseis líderes políticos da região firmaram um acordo de cooperação entre si e apoio ao governador Antônio Pinto Nogueira Accioli. Tal evento ficou conhecido como Pacto dos Coronéis e representa um marco na história do coronelismo brasileiro.

No ano seguinte, o então presidente da República Hermes da Fonseca depôs o governador Nogueira Accioli e nomeou o coronel Marcos Franco Rabelo como interventor do Ceará. Houve eleição apenas para vice-governador onde o Padre Cícero foi o escolhido. Depois de assumir o posto, Franco Rabelo rompe com o Partido Republicano Conservador (PRC) e passa a perseguir Padre Cícero, chegando a destituí-lo da prefeitura de Juazeiro e a mandar um batalhão da Polícia estadual prender o padre. Então, o médico Floro Bartolomeu (braço direito do padre) reuniu jagunços e romeiros para proteger Padre Cícero. Em apenas uma semana, os romeiros cavaram um valado de nove quilômetros de extensão cercando toda a cidade e ergueram uma muralha de pedra na colina do Horto; a fortificação recebeu o nome de "Círculo da Mãe de Deus". O batalhão, ao ver que seria impossível romper o círculo, recuou e pediu reforços.

Franco Rabelo

Um contingente muito maior foi enviado a Juazeiro, levando consigo um canhão para derrubar a muralha que protegia a cidade, porém, o canhão falhou e os romeiros armados apenas com algumas espingardas, facas, foices e muita fé venceram os invasores. O canhão foi tomado e está exposto até hoje no "Memorial Padre Cícero". Floro Bartolomeu consegue então o apoio do Presidente Hermes da Fonseca e do Senador Pinheiro Machado, e parte para Fortaleza com o intuito de derrubar o governador. No caminho, os romeiros tomam o poder no Crato, Barbalha, Estação Afonso Pena (próxima a Iguatu), Messejana, Maracanaú e Maranguape, fechando todas as entradas da capital, enquanto uma esquadrilha da Marinha de Guerra capitaneada pelo Cruzador Barroso impõe um bloqueio marítimo à cidade. Franco Rabelo é deposto e eleições são convocadas, onde Benjamim Liberato Barroso é eleito governador e Padre Cícero mais uma vez eleito vice. Vitoriosos, os romeiros retornam a Juazeiro desarmados e desocupam as cidades tomadas durante a sedição.”

Agora, eu: No resumo, dois grupos disputaram o poder: o de Franco Rabello e o de Floro Bartolomeu, que seguia apoiando o Padre Cícero. E Franco Rabello perdeu, assumindo o controle político o Floro Bartolomeu. A minha família, que morava em São Pedro do Caririaçu (hoje apenas Caririaçu), cidade serrana situada acima de Juazeiro do Norte, era toda rabelista, cujo insucesso a condenou ao ostracismo e determinou perseguições por parte dos jagunços contratados pelo Floro Bartolomeu, dentre os quais se incluíam, mais tarde, alguns elementos do bando de Virgulino Lampião, que adentrou no cangaço a partir de 1919. Essa nossa história aconteceu cerca de 1913 e é narrada pelo Tio Mundinho, em seu livro já citado. Um dos cangaceiros, jagunço violento, era José Pinheiro, mau como o diabo pode ser. Naquela ocasião (1914) ele, indo do Crato para Lavras,

Padre Cícero e Floro Bartolomeu (Museu Vivo - Horto, Juazeiro)


“três léguas abaixo de Caririaçu, ribeira do Riacho do Rosário, no Serrote, teve um desentendimento com a mulher que lhe servia de companheira e a enterrou, dizia-se, viva, quase à beira do caminho, um pouco para dentro do mato. Desapareceu. Dias depois, vaqueiros ou caçadores que ali andavam, sentiram mau cheiro e, notando urubus pousados em árvores próximas, para lá se dirigiram, encontrando a sepultura meio aberta e o cadáver já em parte destruído pelos animais. As diligências e investigações levadas a efeito pela polícia conseguiram identificar sem maior tardança o criminoso.


Descoberto seu paradeiro, ele foi preso e recolhido à cadeia de São Pedro (Caririaçu) e enviado depois para a do Crato, por medida de segurança. Meu pai (Clemente Ferreira Borges), a esse tempo, exercia ali, no testemunho de meus familiares, as funções de juiz suplente, leigo. Foi justamente nessa qualidade que se dirigiu ele à cadeia local para conhecer de perto o criminoso, tendo exprobado, na ocasião o facínora pelo seu bárbaro procedimento, matando indefesa mulher, sem motivo justo. Não seria preciso mais para que a fera em forma humana que era José Pinheiro guardasse na memória a atitude de meu pai, aguardando, qual cascavel, o momento azado para um dostorço pessoal.


Jagunços com Floro Bartolomeu (Arquivo Renato Casimiro)


Com a derrota das forças legalistas nos ataques à cidade dos insurretos e a invasão em seguida do Crato e de outras cidades da região pelas hordas desenfreadas, abriram-se as portas das prisões, pondo-se consequentemente, em liberdade, todos os sentenciados que passaram, então, a engrossar as fileiras dos rebeldes. Contava-se nesse número o famigerado José Pinheiro, a quem foi confiada a chefia de um grupo, dada a sua valentia e a energia de que era dotado para o comando dos capangas como ele afeitos à criminalidade."


"A Vila de São Pedro (hoje Caririaçu) amanheceu num claro dia de domingo repleta de cangaceiros sob suas ordens. Precisamente à hora da missa, meu pai, incautamente, dirigia-se para a igreja, quando, ao penetrar na praça, foi chamado pelo truculento chefe que bebia cachaça com seus cabras numa bodega da esquina. Pressentindo que iria ser agredido, respondeu que poderia servir-se na mercearia com seu grupo do que quisesse, que depois da missa pagaria a despesa. Não foi, porém, atendido e a sua presença foi imposta sob ameaça de morte com os rifles apontados em posição de descarga. Disposto ao sacrifício, meu pai penetrou, cabisbaixo, no estabelecimento e fez-se logo em torno dele um círculo de malfeitores, cada qual mais sedento de sangue e de rapina. 


José Pinheiro puxou do bolso um maço de bigodes e disse em rictus de fera satisfeita que aquilo era o troféu, a lembrança que trazia dos chefes rabelistas (partidários de Franco Rabelo, correligionários da minha família) encontrada no caminho de Fortaleza e que os bigodes de meu pai iriam também para ali, dentro em pouco. Começou o martírio. Humilhações, ameaças com exibição de armas, a toda sorte de angústia foi submetido o velho. A certa altura José Pinheiro sacou de um afiado e comprido punhal e ia vibra-lo certeiro, quando meu irmão José de Oliveira Borges interveio corajosa e oportunamente, rogando ao algoz que não matasse o pai, conseguindo assim, demover o monstro no lance extremo de consumar o seu funesto intento. 

Caririaçu, no cariri do Ceará

José Borges tinha a esse tempo cerca de 14 anos de idade mas já era manifesto seu cuidado; e o cangaceiro parece que sentiu aquela autoridade e refugou, naquele momento, aguardando os novos acontecimentos. O Padre Augusto Barbosa de Menezes, vigário daquela freguesia, celebrava, no momento, a missa dominical. Toda a família, em prantos, sentindo iminente a morte do chefe da família querido, corria para a igreja pedindo socorro ao celebrante. Este, sem mais delonga, partiu apressadamente para o local da cena triste, arrancou meu pai das garras do criminoso e o conduziu são e salvo para sua residência, conservando-o ali sob a sua guarda até quando o perigoso bandido abandonou a vila sobressaltada. 

Adversário politico de minha família, chefe local do partido marreta (designação dada a antigo partido político do Ceará), prefeito do município mais de uma vez, e correligionário decidido do Padre Cícero, junto ao qual gozava de absoluta confiança, o Padre Augusto, não obstante, era antes de tudo amigo de seus paroquianos, com a particularidade, no caso, de ser compadre de meu pai, padrinho de batizado que era de minha irmã Rosinha".

"O facínora José Pinheiro pagou caro as atrocidades que praticou. Teve fim trágico, horripilante. Aumentara o seu rosário de crimes matando, em Juazeiro, em pleno dia, Quintino Feitosa, cercando-lhe a casa com seu famigerado grupo de bandidos. Quintino resistiu horas ao nutrido tiroteio, mas, sem mais munição, teve a casa invadida pelo grupo. José Pinheiro abateu-o a punhaladas, decepou-lhe o bigode (seria mais um sinistro troféu), espremeu-o num copo de cachaça e sorveu a bebida asquerosa a longos tragos. 

Alguns anos depois transferiu a residência para o Estado de Alagoas. Lá moravam alguns parentes de Quintino. Localizaram o criminoso, mataram-no e o esfolaram como se fosse um bode. A cena é descrita assim pelo historiador Joaryvar Macedo: 


´Pavorosa e horripilante a morte de Zé Pinheiro, uma das mais temíveis feras que produziram os nossos sertões. Vítimas de sua perversidade crucificaram-no numa catingueira e o esfolaram vivo, em Alagoas´. (In Irineu Pinheiro – O Juazeiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914, pág. 145 e o Império do Bacamarte, mesmo autor, pág. 172). “.


Floro Bartolomeu e Padre Cícero

Meus amigos, eu sei que o texto ficou longo, mas eu achei muito interessante essa história contada por uma – digamos – testemunha ocular da história. O Tio Mundinho, com seu estilo todo característico, é sempre uma figura muito bem lembrada por toda a família, como exemplo de pessoa que fez da sua vida o melhor que poderia fazer. Ele era meu tio-avô. E essa passagem serve para ilustrar bem como era a vida no alvorecer do século XX, lá na região de origem da minha família. 

Os fatos da vida, naquela época, eram por demais dramáticos, muitas vezes. Tal era o peso da dramaticidade que minha bisavó, a velha Mãe-Dois, dona Maria Machado, sogra do meu avô, vivia com a memória dos sobressaltos vividos naquela época de política perigosa. Por volta de 1960, vindo do Crato para o Rio de Janeiro a passeio, ela fez questão de ir ao Cemitério de São João Batista, em Botafogo, onde está enterrado aquele Deputado Floro Bartolomeu, braço direito do Padim Ciço, inimigo político de minha família e causa dos terrores por lá vividos pelos meus parentes e disse, na beira do seu túmulo:


´Ah, seu cabra, eu vim ver se você estaria mesmo aí...´ e cuspiu no chão, junto ao túmulo...

José Mauricio Machado Lima

Fonte:http://www.cofamep76.med.br/index.php?pg=artigos2&id=24

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