"O Acaso é o Deus dos Tolos" Por: Carlos Elydio Corrêa de Araújo

Antônio Amaury Correa de Araújo

Recordo nitidamente o dia em que o pai me convidou a acompanhá-lo em um evento que viria a acontecer no Juazeiro do Norte - CE, nos idos de 2009. Na época, ele começava a pagar os tributos que o Tempo impõe e eu, que então começava a segui-lo em suas jornadas, criei expectativas, empolgado em rever o cenário que marcara meus olhos de criança durante a mais longa viagem que fizemos em família em 1976. Tantas recordações queridas me assaltaram naquele momento, que num átimo respondi que sim. 

Veio à memória a cidade do Crato, o agradável "Oasis do Sertão"  e sua situação privilegiada junto ao pé da Chapada do Araripe. A bucólica cidade de Barbalha, com sua colina encimada por belos edifícios históricos, os jardins da casa de doutor Napoleão Tavares, e as fantásticas águas do Balneário, onde eventualmente os cangaceiros descansaram, e nós também. Me veio ao coração a presença de minha avó Ditinha e minha tia avó Neusa; ambas admiráveis contadoras das histórias de nossa família e dos causos que acompanharam sua saga desde os anos de 1800, sempre tão bem temperadas pelo refinamento dos caipiras. Meu tio Baptista já havia nos apresentado a Terra da Felicidade, a Salvador de então, cheia das reminiscências de seu avô, Rui Barbosa e onde havíamos reencontrado Dadá que, anos antes, convivera conosco em nossa casa. 

Antônio Amaury e as fortes ligações com o Cariri Cangaço

Aí, em meio a essas paisagens tão cheias de contrastes, no próprio Juazeiro, embalado que estava pelas conversas dos adultos, apaixonados por esse país tão belo e rico, eu conheci a alma sertaneja, plena de devoção e resiliência. Onde pude conhecer esse monumento à fé sertaneja; o Padre Cìcero. A subida para o Horto ficou gravada na minha memória com aquela multidão de beatos e penitentes, repleto de pedintes e necessitados. Impressionante o rosto famélico de então. 

Não sabia que naquele 2009, começaria uma jornada guiada por Manoel Severo, zeloso curador do "Cariri Cangaço". Um evento que já nasceu grandioso, tanto pelo cenário, palco de marcantes momentos de nossa história, quanto pela  presença de pesquisadores, historiadores e aficionados pelas temáticas do cangaço, messianismo e cultura nordestina.

Pude rever então a exuberância que tomava conta do sertão, apagando parte do passado sofrido e miserável que havia testemunhado nos anos de chumbo. Vi um evento festivo robustecendo as memórias e o conhecimento de fatos que deram contornos à nossa sociedade. 

Carlos Elydio e Antônio Amaury em uma das agendas Cariri Cangaço

O pai,  dentre tantos grandes que ali estavam, notadamente era festejado, e tido como um farol. Despertando admiração e discussões que sempre resultavam em debates, que por si só já eram sempre longos, intensos e tidos e guardados como extremamente valiosos. Era riqueza para todos. As pessoas o rodeavam e reclamavam sua atenção onde quer que passasse. E ele, solicito e atento, conforme podia ia satisfazendo as demandas. Ele tinha orgulho disso, e confessava seu desejo de que eu herdasse esse seu legado. 

Confidenciava comigo; “Sabe quem é esse senhor? Sabe quem é aquela pessoa?” comentando sobre os grandes nomes que encontrava, da gente graúda e bem colocada na sociedade, bem como o povo comum e  até alguns remanescentes do cangaço. Dizia “Isso tudo, o que me permitiu tantas e boas relações, foi o Cangaço”.

"Doutor Amaury sempre teve muito carinho e atenção com o Cariri Cangaço, seu entusiasmo era contagiante, chegávamos a ver seu olho brilhar a cada agenda, a cada visita, a cada encontro. Tê-lo conosco nesse último adeus foi um dos maiores presentes que poderíamos receber"
Manoel Severo - Curador do Cariri Cangaço

Quando, agora em 2022 compareço ao Cariri Cangaço, trazendo em meu colo  suas cinzas um ano e meio após seu passamento, me vi impactado com comparações involuntárias e inevitáveis nessa nova dimensão de espaço e tempo, pensamentos ternos e outros tantos dolorosos. Lembranças dos tempos em que ele me apresentava o mundo; seguindo sua perspectiva tão humana e sensível, e imagens dos últimos três anos; limitado que estava pela  decadência física, quando passei a carrega-lo nos braços.

Carlos Elydio, Archimedes Marques, Manoel Severo, Elane Marques e Aninha

Cheguei em Piranhas com o querido casal Archimedes e Elane Marques, e a afável Aninha. Dai em diante os sentimentos se impuseram. Sem que tivéssemos combinado, encontramos Severo em nossa primeira parada. Foi a chave das emoções. Quando Celsinho e Jaqueline Rodrigues me abraçaram, irmanados em nossas perdas, desatei em lágrimas intermitentes. E assim seguiu a cada rosto amigo que se aproximava. E era um carinho na alma e uma jornada para o passado que insistia em se fazer presente, que tudo se traduzia em gratidão à vida. Celinha de Quirino, junto com o amigo Kydelmir Dantas, quando apresentaram-me o cordel biográfico, uma homenagem que, por ser didática e carregada de emoções, me deixaram sem palavras. Ao ler, conclui que o pai estava em "boas linhas" nesse memorial. O sorriso luminoso dessa mulher não resistiu à densidade do momento. Ela também chorou o pranto dos gratos. E a família adotada, de Dr. Leandro Cardoso e Dra. Raissa, irmãos que conosco conviveram por dez anos, foram meu apoio emocional na distância da família carnal. Não tinha como ser diferente.

Pouco antes de embarcar para o porto de Angico, o companheiro cordelista Jurivaldo Alves, até então por mim desconhecido, entregou-me uma missiva pesarosa de Franklin Maxado. Meu peito transbordou de emoção ao ver o eloquente e animado amigo que, insistiu, junto com o cordelista e animador cultural Zacarias José dos Santos, já falecido, para que o pai escrevesse e expusesse  tudo que havia aprendido e compreendido sobre o fenômeno do cangaço. A esses dois, devemos a publicação da primeira obra de Antônio Amaury Corrêa de Araújo; “Assim Morreu Lampião” que foi base do programa televisivo Globo Aventura, da Rede Globo nos anos setenta.

Padre Agostinho, capelão do Cariri Cangaço, e as benções sobre as cinzas do Mestre

No momento em que conduzimos suas cinzas, meu marido, Rafael Ramos, também se fez presente pelos traços que desenhou na urna branca. O pai, vendo o interesse dele pela estética do cangaço, teria instigado, com gosto, mais um a entrar nessa seara. Quando se conheceram, já não tinha mais energia para tanto, mas seu legado teve esse poder. 

E ali, sentado no catamarã, com ele junto a mim, os amigos e admiradores iam se achegando e fazendo suas despedidas. Segurei-o no colo pela última vez, sobre as águas verdes do Velho Chico. Abraçando corações e terras dessa gente forte e admirável, dei por cumprida minha primeira missão com o que restava de meu pai. 
Após a solenidade, abençoada pelo padre Agostinho e acalantada pelo Ciço do Pife, interpretando "El Condor Pasa"
Doutor Amaury se une ao Velho Chico... Um Momento cheio de força, significado, admiração, respeito e lembranças...

Após a solenidade, abençoada pelo padre Agostinho e acalantada pelo Ciço do Pife, interpretando "El Condor Pasa", subimos à Grota do Angico onde pude observar os amigos Dr Leandro, Dr Ivanildo, Kyldemir e Kiko Monteiro explanando sobre o massacre de Angico “in loco”. Por vezes contestando pontos da obra de meu pai, o que confirmava assim a continuidade da vida através de seu pensamento crítico que deu um lugar digno às memórias daqueles considerados vencidos. Vendo os que beberam em suas generosas fontes de conhecimento, compreendo a magnitude do ato de oferecer oportunidade de diálogo com vozes resgatadas de seu silêncio. Só uma pessoa consciente de seu papel e de sua classe social teria essa capacidade. Mais uma vez senti, para além da multidão ali presente e respeitosamente silente, a presença do passado, nas figuras que frequentaram nossa casa anos a fio. Era Dadá, Zé Sereno, Sila, Balão, Criança, dentre tantos. 

Já no fim da trilha, paramos para o almoço à beira do rio, acompanhado por um grupo que agora tocava animados baiões e xaxados, encabeçado pelo Ciço do Pife, junto com o querido Gilmar, Pedro Poppof, Beto Patriota e Valdir Nogueira.

Festa sertaneja em memória de Antônio Amaury

Mais tarde, durante uma mesa dedicada a falar sobre Amaury, para além das pesquisas, junto do comandante Manoel Severo, Dr. Leandro e Ângelo Osmiro, tive o prazer de reencontrar o grande Vilson da Piçarra. Hoje um homem de sorriso franco e espírito leve, cumprimentou-me e, novamente me vi naquela mesma viagem em 1976, quando adentramos as terras de seu pai, Antônio da Piçarra. Os adultos conversavam na varanda da casa. O pai, com seu novo gravador, entrevistava essa personalidade histórica e as crianças estavam brincando no terreiro junto aos cabritos e galinhas. A prosa já ia avançada quando notei, para desgosto do pai, que um cabrito estava mastigando o fio do microfone. E devia estar fazendo isso há um tempo, posto que se perdeu grande parte do depoimento. Essa passagem Wilson ainda recorda sorrindo, e seu sorriso não mudou nada da memória que tenho de infância.

Nessa mesma noite de homenagens, a querida e meiga Dra. Raissa fez uma observação acerca de conversas que mantinha com minha mãe, Rene Maria Tavares de Araújo, tida e havida como grande cozinheira por todos que tiveram o privilégio de serem recebidos em nosso lar. Comentava a difícil missão que tiveram as companheiras desses apaixonados pesquisadores, e foi extraordinário ouvir sobre os bastidores dessa jornada que exigiu tanto foco, desprendimento e empenho para ser construída. Pude assim ter noção da abnegação, companheirismo e sacrifício dessas devotadas mulheres que propiciaram um ambiente saudável e tranquilo, sendo ambas trabalhadoras que, para além de suas atividades profissionais, ainda apoiavam e apoiam os companheiros na construção de suas obras. Sem elas estaríamos fadados a ignorância e à parcialidade dos registros oficiais e jornalísticos da época. 

Ângelo Osmiro, Carlos Elydio, Manoel Severo, Celsinho Rodrigues e Dr Leandro
Noite solene no Cariri Cangaço Piranhas 2022: Noite de Amaury !
Kydelmir Dantas, Carlos Elydio, Célia Maria e Quirino
Secretário de Cultura e Turismo de Piranhas, Eduardo Clemente, recebe de Carlos Elydio a "Urna" que trouxe as cinzas de Amaury para o Sertão: "É com muita honra que manteremos em nosso Museu a urna que trouxe Amaury de volta ao sertão"
Doutor Amaury: "Personalidade Eterna do Sertão"!

No domingo de despedidas; os últimos abraços, os até logo e votos de boa viagem durante o café da manhã farto da pousada O Canto. E nesse burburinho matinal, pude conversar um pouco mais com o afável casal Ricardo Beliel e Luciana Nabuco, que fizeram uma tocante apresentação de sua bem cuidada e bela publicação, “Memórias Sangradas”, durante o evento. Ricardo contou, de maneira envolvente, que havia conhecido meu pai de maneira muito similar a que me conheceu... Puxando assunto com o desconhecido sentado ao seu lado. Foi durante a posse dos novos membros da ABLAC - Academia Brasileira de Artes e Literatura do Cangaço. Cerimônia na qual fui agraciado com o apadrinhamento do notável e admirável casal Archimedes e Elane Marques, de quem testemunhei e atesto a competência, transparência e dedicação para o bom andamento dessa brilhante e promissora agremiação. Ali reencontrei após anos, por um desses acasos da vida, o cantor Sérgio Bianchi acompanhando o querido Jadilson. 

Carlos Elydio, Celsinho Rodrigues, Eduardo Clemente e Manoel Severo

A eloquência de Bezerra Irmão falando sobre o pai ficará na memória, bem como os cumprimentos sinceros de Paulo Britto e Ane Ranzan, os agradecimentos do Camilo, a filmagem do Helynho Santos, o abraço festivo do Beto Patriota, o cuidado de Luma Holanda e o encontro com Lucy e Sergio Araújo... Tudo isso eu devo a meu pai.  Lembro-me de ouvir o Dr. Leandro Cardoso dizer, numa citação, cuja autoria desconheço: “O acaso é o Deus dos tolos”. E de fato, esse Deus foi generoso para comigo, providenciando esses encontros em torno da herança cangaceira.

E é assim que vejo essa história de rusgas e contendas, marcada pelo sangue e pela discórdia, ser transformada num catalisador de reflexões, estudos, composições musicais, danças, performances, literatura, artesanato e turismo. De uma pujança que impressiona a tantos quantos se aventuram por esses reinos da nobreza sertaneja, tão admirada e louvada pelo homenageado, especialmente por conta do caráter, honradez, coragem, bravura e lealdade presente na cultura desses fidalgos de alpercatas e gibões, que atualmente tem abrigo nos encontros desse "Cariri Cangaço". Encontros que, para mim, permitem tangenciar a imortalidade de meu pai através de tantos irmãos em conhecimento, apaixonados por esse universo fantástico. 

Perdão por ser prolixo...  Essa experiência foi uma torrente de saberes, sabores e afetos!  Ainda acho que falei pouco. Mas tenho de dizer algo mais e agradecer ao mentor dessa experiência, que permitiu que esse processo todo fluísse com respeito, beleza e brilho que teve, Manoel Severo, a quem, em nome de minha família, agradeço do fundo de meu coração! 

Carlos Elydio Corrêa de Araújo, psicólogo, pesquisador
04 de setembro de 2022 São Paulo, SP

Cariri Cangaço Piranhas, aconteceu na cidade de Piranhas, sertão de Alagoas no baixo São Francisco, no Nordeste do Brasil, entre os dias 28 e 31 de julho de 2022; no dia 30, solenemente, as 9h30 as cinzas do Mestre Antônio Amaury eram depositadas no leito do Velho Chico e assim, seguiu ... para mais uma extraordinária jornada, avante Amaury, sempre !!!

2 comentários:

Anônimo disse...

Elydio, meu caro. Seu texto é um sopro de vida em nossas vidas. Seu pai viverá sempre em todos nós, assim como você em nossas amizades. Foi um prazer muito grande ter conhecido você em situação quase semelhante a que me encontrei a primeira vez com o querido Antonio Amaury. Um grande abraço

Anônimo disse...

Que texto lindo Carlos! Só uma alma tão sensível como você, pra uma captação desse momento e, de pessoas que estiveram ao seu lado. Gratidão por ter conhecido uma pessoa maravilhosa como você!