Virgulino Cartografado, de Guerhansberger Tayllow Por:Yuri Sousa


Existem diferentes concepções de História, dentre às quais muito me agrada a ideia de História como "a arte de inventar o passado", reflexão desenvolvida por Durval Muniz. Essa concepção nos distancia do ideal positivista, da construção de uma narrativa histórica objetiva, que reconstitua o passado tal como ele foi. Ao historiador, cabe a construção de uma narrativa; de um enredo erigido sob o diálogo de suas fontes documentais, com as mais variadas bases teóricas, como descreveu Durval: Nós, historiadores, podemos fazer disso a delimitação de nosso espaço, tomarmos a História como uma proto-arte próxima da Ciência e da Filosofia, podendo manter, com estas áreas do conhecimento, diálogo permanente, enfatizando, conforme as problemáticas e temáticas a serem estudadas em cada momento, um destes seus aspectos. 

Quanto a esta construção "artística", em diálogo principalmente com a Geografia e em certa medida com a Filosofia Foucaultiana e Deleuziana, Virgulino Cartografado se apresenta como um livro instigante, por sua beleza e por sua assertividade científica; com tal assertividade científica não quero me referir ao alcance de um conhecimento concluído e objetivo, e sim ao fato de que o aporte teórico da pesquisa, parece ter sido feito especialmente para embasar esta construção. 


Virgulino Cartografado, certamente causará um desafio aos seus leitores, considerando principalmente, aqueles que já possuem uma iniciação nos estudos do cangaço, ao acolher a recomendação que faz Durval Muniz logo no prefácio, a de que abandonemos nossa zona de conforto e nos disponhamos a colocar nossos pensamentos em movimento, principalmente nós, que estamos acostumados com toda a literatura referente ao cangaço(e possuímos certo apego a ela), em sua busca por construção de identidades, sejam elas de heróis ou de bandidos(dicotomia identitária que inclusive permeia livros como "A derradeira gesta", livro de cunho acadêmico e "O canto do acauã", livro de cunho memorialista), com sua vontade de verdade, buscando a perfeita reconstituição do passado, a tão famosa "verdade dos fatos ou verdade histórica"; sem falar em nosso apego a certos autores como Frederico Pernambucano e Gustavo Barroso; nos deparamos ao longo de boa parte do texto com críticas frontais às ideias esboçadas nos livros destes escritores, especialmente à ideia de isolamento, o que certamente causa um desconforto inicial nos leitores(grupo este, em que me incluo). 

A obra é também permeada por um espírito desconstrucionista, com ressonâncias de "A invenção do Nordeste e outras artes", que é uma ideia que não me agrada tanto(deixo claro que compreendo as intenções da tese do professor Durval, tendo em vista que nossa cultura em si e simultaneamente as representações que são construídas a seu respeito, sobretudo por e para aqueles que estão fora dos limites geográficos e ideológicos de nossa região, possui vários problemas, tais como a ideia de que vivemos em uma eterna seca e o da virilidade/masculinidade, que como percebemos na história do cangaço, causou destruição de vidas e de famílias, tendo como exemplo bem próximo, a da família de nosso protagonista. No entanto, acredito que esta identidade cultural, que não deve ser é claro, uma imposição ontológica, e desde que não corrobore com a violência e a vitimização, seja importante), o que tem influência direta na linguagem usada nas críticas, que não são agressivas, mas que em dados momentos soam pejorativas. Todavia, abro um parêntesis para ressaltar que o autor é um experiente estudante do tema, e em termos de publicação, este não se trata de seu primeiro trabalho, tendo estabelecido contato com uma grande bibliografia a seu respeito, conhecendo bem os problemas destes escritos; conhecendo sua qualidade ou falta de qualidade; tendo adquirido por este percurso, autoridade para nos oferecer seu julgamento, refletido na linguagem usada em suas considerações.

Guerhansberg Tayllow e Narciso Dias em dia de Cariri Cangaço

Quanto aos pontos específicos desenvolvidos por Guerhansberger, em parceria com o pensamento de Deleuze e Guatarri, destaco a ideia de máquina de guerra nômade, que parece ter sido feita especialmente para o bando de Lampião. Uma máquina que funciona paralelamente à máquina estatal e à margem de seu controle. Aos estudantes do tema, não raro se faz o questionamento maniqueísta: Lampião era herói ou bandido? Por conta do presente livro, em uma próxima oportunidade em que for questionado nestes termos, terei a resposta "na ponta da língua": Lampião era um guerrilheiro, porém, sem uma ideologia política; portanto, as suas "conquistas" serviam unicamente para alimentar a sua existência e a dos componentes de seu bando, se configurando em uma ação egoísta. A abordagem das táticas de guerra de Lampião, também é algo que chama atenção, tratando sobre sua ação "conservadora" e não, covarde, ao fugir de determinados combates; o seu uso do substrato material espacial; o fato de o bandoleiro não possuir um território sedentário para defender; entre outras considerações sobre sua guerrilha. 

Salta aos olhos também, neste estudo, a capacidade política(e micropolítica) de Lampião, que em termos de articulação e construção de alianças, pouco se diferencia de nossos políticos atuais(os do passado também), em suas incontáveis e sujas conexões em rede, se diferenciando apenas em um ponto, que seria no fato de que o Capitão não tinha nenhuma obrigação com a sociedade que o rodeava, uma vez que era um fora da lei, o que não acontece com nossos parlamentares, que sim, possuem tais obrigações, e por esse motivo, vez ou outra aparecem com mínimas benfeitorias. 

Uma vez mais, reitero a beleza teórica que migra pro estético, na obra ora resenhada. Todo o aporte teórico parece ter sido feito especialmente para a construção desta dissertação, tal é a precisão das urdiduras feitas em seu interior. Me recordo de Ariano Suassuna, que ao prefaciar o livro "Estrelas de Couro - a estética do cangaço" de Frederico Pernambucano, diz que fora da literatura, se pudesse ter escolhido uma obra para ter escrito, esta obra seria Estrelas de Couro, que cá entre nós, assim como outros escritos de Frederico, possui uma acentuada beleza literária. Parafraseando-o, eu digo que se pudesse escolher uma obra para ter escrito dentre tantas que li e conheço, esta seria "Virgulino Cartografado"(é claro, estou muito longe de ser um Ariano, mas vale a ideia que esta declaração encerra). 

Yuri Oliveira Sousa - Caxias - MA 
Acadêmico de Pedagogia

5 comentários:

Lúcio disse...

Com relação ao seu comentário sobre virilidade estar associada à destruição de famílias, isso não passa de uma falácia tipo non sequitur. A mesma virilidade também serviu para homens pacíficos como Manoel Neto e os nazarenos reunirem forças do fundo da alma para peitarem Lampião, a fim de proteger as famílias de Nazaré.
Fica uma coisa pela outra. Analisar virilidade fora de um contexto e com o desconstrucionismo típico de Derrida não passa de discurso raso de militante ideológico.

Unknown disse...

É uma boa discussão essa que você levantou. Mas, se acalme meu caro, eu não sou nenhum ideólogo e nem tenho tais pretensões. Estamos debruçados sobre um tema, e como tal, devemos considerar todas as possibilidades interpretativas.

Unknown disse...

Devo falar que não são poucos os casos de vidas acabadas por conta desta dita "machesa" que não permite que se leve "desaforos para casa", e ao invés de optar por uma saída pacífica(que a depender do ponto de vista, poderia ser encara como covarde), usam das vias de fato para resolução de lides. Ao mesmo tempo, ressalto que enquanto pesquisadores, devemos tomar cuidado com o anacronismo nas interpretações(eu me incluo dentre os que devem tomar esse cuidado).

Unknown disse...

O discurso acusatória não é uma boa via para se debater ideias

Anônimo disse...

Eu creio que a boa politica para com a elite sem se importar com os mais pobres é que tem mais motivos para destruir familia do que a propia virilidade. A masculinidade nao é algo que podemos definir como boa ou má, houve homens que usaram para o mau e outros para o bem. claro que no contexto das condições biologicas em que os cangaceiros e os nordestnos viviam mexia com todos para que fossem mais agressivos. Isso nao é culpa da masculinidade.