O Massacre Indígena da Serra da Canabravinha Por: Herlon Fernandes

Serra da Canabravinha

De qualquer ponto da Brejo Santo, no Ceará, observa-se, a leste, as imensas serras da Canabravinha e do Poço, como um gigantesco cágado - casco e cabeça, por trás de onde o sol nasce, trazendo os primeiros raios de sol para as planícies alagadas. 

Região remota e envolta em mistérios, a Serra da Canabravinha é um local marcado por histórias que transitam entre o real e o lendário. O relevo acidentado, coberto por uma vegetação densa e cortado por trilhas sinuosas, abriga segredos há muito esquecidos. Seus caminhos foram percorridos por tropeiros, fugitivos e aventureiros, todos em busca de um destino que, muitas vezes, se perdia na imensidão da paisagem.

A vegetação típica da caatinga, com suas canabravas esguias e resistentes, empresta seu nome ao lugar. A flora e a fauna da região resistem bravamente ao tempo e às transformações impostas pelo homem. Há quem acredite que a serra esconde grutas e cavernas onde foram guardados segredos dos tempos coloniais, talvez até mesmo tesouros que nunca foram encontrados.

Nas noites de lua cheia, dizem os mais antigos que é possível ouvir ecos de vozes vindas das profundezas da serra. Alguns juram serem espíritos errantes dos Calangros e Quirinos, bandidos cangaceiros que fizeram fama ali, durante o Império. A verdade, essa senhora virtuosa, se esconde nas brumas que pairam sobre aquelas montanhas ao amanhecer.

Entre os relatos populares, destaca-se a história de um grupo de vaqueiros que teria desaparecido ao tentar atravessar a serra em busca de reses desgarradas. Seus cavalos foram encontrados dias depois, exaustos e sem sinais do dono.

Nesse tempo, diversos grupos indígenas habitavam o sertão nordestino. Entre eles, os índios Kariri e os Tarairiú (ou Tarairiús). Os Tarairiú, em particular, eram compostos por várias tribos nômades conhecidas por sua resistência à colonização e por práticas culturais que, aos olhos dos colonizadores, eram consideradas violentas. Relatos históricos mencionam que algumas dessas tribos praticavam o canibalismo ritualístico, o que contribuiu para sua reputação de ferocidade.​

Acredita-se que esses indígenas viviam isolados do restante do mundo e realizavam rituais macabros, caçando e devorando aqueles que ousavam invadir seu território. Exploradores e caçadores que se aventuraram por essas terras juram ter encontrado vestígios de fogueiras rodeadas por ossadas humanas e símbolos desconhecidos esculpidos nas pedras.

Dança dos Tarairiú, por Albert Eckhout (séc. XVII)

ouve, portanto, um tempo em que a Serra da Canabravinha escondia mais do que seus segredos geológicos e suas formações rochosas misteriosas. Entre suas fendas e veredas, histórias de sangue e resistência estão gravadas no solo seco e castigado pelo sol inclemente. 

O padre João Alboíno Pequeno que andara por aquelas bandas de Brejo Santo, abrigando-se sob o pseudônimo de Abelardo Parreira reuniu diversas histórias sobre esse tempo, intitulando o livro de Sertanejos e Cangaceiros. Nele, há o registro de um dos mais violentos confrontos entre brancos e indígenas naquela terra de extremos.

Tudo começou com o desaparecimento de alguns vaqueiros, fiéis servidores do temido coronel Manoel Gomes Pereira. No distante ano de 1833, os homens sumiram sem deixar rastros enquanto tocavam o gado pelas encostas da serra. As suspeitas recaíram de imediato sobre os Tarairiú, os donos primordiais daquelas terras, cuja fama os precedia: eram bravos, ferozes e, segundo os relatos de viajantes amedrontados, praticavam ritos de antropofagia. O desaparecimento dos vaqueiros foi o estopim de um conflito que já fervilhava.

Sertanejos e Cangaceiros - Abelardo Parreira - 2ª Edição.
Organização: Adriano de Carvalho Duarte

O coronel, homem forjado no calor do sertão e no gosto pelo domínio, não tardou em agir. Reuniu uma bandeira de homens, sertanejos calejados e pistoleiros de confiança, armados até os dentes com seus bacamartes, facões afiados e pólvora suficiente para uma guerra. O objetivo era claro: varrer os Tarairiú da face da terra.

A batalha se deu entre os recortes pedregosos da serra, onde o eco dos estampidos misturava-se aos gritos de dor e fúria. Os indígenas, mesmo em desvantagem numérica e bélica, não cederam sem resistência. Vinham das sombras, rápidos como o vento que cortava as grotas, disparando suas flechas certeiras e envenenadas, manejando zarabatanas que lançavam dardos silenciosos, letais. De corpos pintados para a guerra, olhos flamejantes e lanças afiadas, embrenhavam-se entre a vegetação, aparecendo e desaparecendo como fantasmas da terra.

Do outro lado, os homens do coronel disparavam sem hesitação, cada tiro um trovão no meio da serra, cada chumbo ceifando vidas indígenas. O chão, antes seco, agora bebia o sangue dos combatentes, formando poças escarlates entre as pedras e os galhos quebrados. O ar cheirava a pólvora e carne queimada.

A luta se arrastou por dias, o massacre desenhando-se inevitável. Por mais que resistissem, os Tarairiú foram sendo abatidos um a um, até que, enfim, restavam apenas corpos espalhados pelo campo de batalha. Desde o ancião pajé até a mais tenra criança. O derradeiro golpe da guerra foi impiedoso: um extermínio, uma chacina. Quando o silêncio enfim se fez, o vento soprou pelas fendas da serra como um lamento de almas inquietas.

O coronel Manoel Gomes Pereira sobreviveu por um fio. Durante o combate, uma flecha atravessou-lhe o tronco, deixando-o à beira da morte. Diz-se que o ferimento o acompanhou pelo resto da vida, como uma lembrança indelével da carnificina que ele mesmo orquestrara. Mas ele viveria, para contar a história a seu modo, a dos vencedores, enquanto os Tarairiú, vencidos, tinham sua história dissolvida na poeira do tempo e no esquecimento cruel do sertão.

Hérlon Fernandes Gomes

Brejo Santo-CE, 19 de Março de 2025.

Fonte:https: amunganga.blogspot.com


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