A Derradeira Gesta Por:Rodrigo Fonseca


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Uma nova versão sobre a origem e as atividades de Virgulino Ferreira, o Lampião, destrói o mito do cangaceiro como expressão da miséria social e transforma o mais importante símbolo do banditismo rural do país em um braço direito dos coronéis. Resultado de uma pesquisa de 30 anos feita pela antropóloga e professora da Uerj , Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, o livro A derradeira gesta: Lampião e nazarenos guerreando no sertão (editora Mauad), apresenta a tese de que Virgulino Ferreira não só foi culpado pela morte do pai como estava vinculado aos grandes proprietários do Nordeste. Uma teoria que contesta a versão corrente de que a vingança e a falta de leis no sertão o teriam conduzido às armas. A pesquisadora também defende que seu assassinato, em 1938, foi motivado por questões econômicas que envolviam a transferência das verbas de combate ao cangaço para a indústria açucareira do Nordeste.

Apoiada na literatura antropológica sobre o cangaço, em acervos de documentos e entrevistas, Luitgarde Barros conta que Lampião era membro de uma família de pequenos proprietários e que entrou na vida do crime ainda na adolescência. "O cangaço não é de origem pobre, mas nasce de proprietários remediados, comerciantes e donos de tropas de cavalos e burros. O próprio Virgulino Ferreira, antes de tornar-se Lampião, possuía terras e animais. Mas ainda jovem, em 1916, começou a agir como cangaceiro, sendo cabra dos Porcino, uma família criminosa  que agia em Alagoas", afirma, referindo-se ao grupo dos irmãos Pedro, Antonio e Manuel Porcino.

Em A derradeira gesta (que recebeu uma indicação para o prêmio Jabuti deste ano), Luitgarde reúne todos os detalhes para desmistificar Lampião. Envolvida com o tema do cangaço por razões pessoais - em 1927, antes de seu nascimento, sua mãe foi feita refém do cangaceiro no município de Santana do Ipanema, Alagoas - ela levanta dados em sua pesquisa que negam a versão até hoje cultivada em universidades brasileiras. Nega, portanto, que o assassinato do pai de Lampião, José Ferreira, em 1921, pelas mãos do coronel (então tenente) Lucena, teria sido o motivo que conduziu Virgulino ao cangaço. "Tenho documentos de cartório mostrando a perseguição de Lampião quando ele ainda era membro do grupo dos Porcino, ainda nos anos 10." Segundo a professora, Virgulino Ferreira vivia uma vida dupla, antes de se entregar definitivamente ao cangaço, em 1922. "Em Pernambuco, ele era um proprietário, com sua tropa de burro, e fazia comércio com a vizinhança. Mas como era exímio cavaleiro, percorria as regiões próximas e chegava em Sergipe e na Bahia praticando crimes. Aí Virgulino dava lugar ao cangaceiro", afirma. 

De acordo com Luitgarde, essa série de crimes em que Lampião se envolve, como invasões a cidades e troca de tiros, é o caminho que conduz seu pai à morte. "Em 1921, Lampião vai com os Porcino para um lugarejo em Alagoas chamado Mariconha e lá eles matam um rapaz cego de 15 anos e promovem uma série de roubos. Depois, escondem o dinheiro roubado em uma pequena fazenda próxima onde o pai dele estava vivendo, o que atrai o coronel Lucena ao local", explica. "Como entrou atirando, esperando surpreender Lampião, Lucena acabou matando seu pai." Com a morte do pai, Luitgarde defende que Lampião apelou para o código sertanejo de vingança para justificar suas ações. "Essa legitimação dos próprios atos utilizando elementos da cultura sertaneja, como valentia e obrigação de vingança, para limpar manchas desonrosas ou corrigir injustiças, foi amplamente utilizada por todos  os cangaceiros, principalmente Lampião."

 Tenente Lucena, acima a esquerda, vendo ainda outros destacados comandantes de Volantes; João Bezerra e Ferreira de Melo

A partir de 1922, já com seu próprio bando, ele passa a envolver os coronéis em sua atividade pelo sertão. "Os grandes protetores dele são desembargadores, juízes de direito e altos industriais." Luitgarde destaca também a corrupção na polícia. "Quando um destacamento policial ia perseguir os cangaceiros, eles eram avisados por membros corruptos." Luitgarde registra no texto nomes de juízes e políticos que recebiam o cangaceiro em suas residências e o apoiavam para que suas terras fossem poupadas. Alguns, como o governador de Sergipe, Eronildes de Carvalho, chegaram a lhe fornecer armas. "Existem entrevistas em que Eronildes afirma ter dado uma pistola para ele, negando ter lhe vendido armamentos. Ele foi o principal coiteiro de Lampião", denuncia. A relação de "amizade" entre Virgulino Ferreira e os grandes proprietários de terra é explicada por Luitgarde como um jogo de interesses. O esquema fazia com que Lampião atacasse apenas os adversários de seus padrinhos. "Depois os grandes proprietários compravam por quase nada as terras dos concorrentes arrasadas por ele. Assim, eles refazem o latifúndio do Nordeste". Para Luitgarde, esse sistema de favores não beneficiava Lampião, apenas alimentava a "indústria do cangaço". "Ele assaltava os pequenos e médios proprietários e esse dinheiro era usado para comprar armas, munição e polícia corrupta. Mas quem poderia vender armamento para ele sem ser punido? Só pessoas muito importantes tinham o monopólio do comércio com o cangaço. E como Lampião não poderia regatear preço com o governador, já que só este lhe poderia vender armas, era obrigado a continuar a vida de crimes para pagar os altos preços cobrados."

Alimentada por verbas do Governo Federal, essa "indústria" do banditismo chega ao fim em 1938, por questões econômicas, conforme afirma a professora. "Naquele ano, o presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool, o pernambucano Barbosa Lima Sobrinho, informa aos governadores de Alagoas e Pernambuco que a verba para o subsídio da produção açucareira vinha sendo destinada ao combate ao cangaço. E que isso ia acabar." Depois dessa notícia, o governador de Alagoas, Osman Loureiro, incumbe o coronel Lucena de comandar o extermínio do bando de Lampião em um período de um mês. "Lucena convocou seus homens e afirmou que se eles não cumprissem a tarefa no prazo seriam demitidos. Em 30 dias acabou o cangaço", lembra, referindo-se ao massacre contra o grupo do cangaceiro ocorrido em julho de 1938, na Grota de Angicos, Sergipe. Sem piedade na análise do cangaceiro, Luitgarde confessa a necessidade de se corrigir um erro histórico. "Ao contrário do que se acredita, no período de Lampião as populações pobres são as mais atingidas por seus atos, enquanto as classes que o protegiam ficavam cada vez mais ricas. Esses fatos ficaram obscuros porque quando se cria um mito a primeira coisa que a imprensa faz é esconder a verdade  sobre sua vida."

Renato Cassimiro, Manoel Severo, Melquiades Pinto e Luitgarde Barros

Mas análises como as de Luitgarde ainda não compõem a maioria dos estudos sobre Lampião e o banditismo rural nordestino, conforme comprova o sociólogo César Barreira, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência. "Na academia, a interpretação da história de Lampião que ainda predomina é a do bandido social motivado pelo assassinato do pai e produto de uma sociedade com dificuldade de trabalho. O que ainda se discute é se a sua violência teve mesmo a natureza de atrocidade que lhe é atribuída e qual a participação da força policial na formação do cangaço", explica. Barreira lembra que a maioria das pesquisas ainda vê ações positivas no cangaço. "Há um aspecto positivo nas ações de Lampião no momento em que sua violência representa a negação das condições sociais em que vivia. A idéia é que ele tenha tomado a orientação do banditismo porque a Justiça não agiu como devia na morte de seu pai. O que temos relacionada a ele é a construção de uma nova lei. A lei do cangaço", afirma. Recentes pesquisas, contudo, apontam para a pluralidade de olhares.

Andarilhos e Cangaceiros

O antropólogo e pesquisador Jorge Luiz Mattar Villela, co-autor de Andarilhos e cangaceiros - A arte de produzir território em movimento (ed. Univali), desenvolve atualmente uma tese de doutorado pelo Museu Nacional, no Rio de Janeiro, onde analisa a formação do cangaço a partir da relação entre as famílias locais e a violência. "Analisando os exércitos privados formados no interior de Pernambuco, encontrei evidências de que eles são na verdade grupos de origem familiar que em função de terem cometido algum crime ou afronta caem na ilegalidade, podendo migrar ou se transformar em cangaceiros, entregando-se então ao uso das armas", explica Villela. Sem se preocupar em estabelecer opiniões definitivas, Villela admite que a imagem do principal membro do cangaço ainda está sujeita a interpretações. "Os povos vitimados pelo cangaço vêem Lampião como qualquer inimigo dele veria. Alguém sem qualidades, cruel e impiedoso. Há análises dele como independente dos coronéis. O ponto de vista muda. O que não se pode negar é o valor que a vida possui no sertão, já que alguém é capaz de arriscar seus bens para vingar um aliado morto", aponta.

RODRIGO FONSECA, JBOnline
Matéria nos enviada gentilmente por Alfredo Bonessi
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Um comentário:

Yuri Luna disse...

Amigos do Cariri Cangaço, sobre a Derradeira Gesta, gostaria de comentar a minha concordancia quanto a colocação de dra. Luitgarde quando diz que na verdade essa versão que Lampião nunca foi movido pela vingança, inclusive ressaltando que seu próprio pai é que foi vitima de sua ação fora da lei e lá em Juazeiro, quando de sua famosa entrevista ele diz: "Estou me dando bem na profissão!!!!"; entretanto quanto às motivações de sua morte, gostaria de mais esclarecimentos sobre essa versão de dra. Luitgarde, que tece considerações sobre situãções economicas e coronéis do açucar teriam ligações diretas com a morte do cangaceiro cego.
Abraço a todos.

YURI