Causos e Casos Por:José Cícero

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Além de um bom prosador à moda antiga dos sertões do Cariri, o Sr. Zamora Taveres do Tipi de Aurora tem muitas estórias e histórias pra contar. Todas elas guardadas no fundo da memória. Fresquinhas como se tivessem ocorrido ontem. Talvez uma herança atávica dos seus ancestrais – os Tavares das ribeiras aurorenses. Antigos desbravadores e proprietários de terras naquele fértil e aprazível riacho.

Como é possível perceber, boa parte das narrativas de Zamora foram lhe contadas pelo próprio pai Miguel Tavares recentemente falecido. Famoso vaqueiro-agricultor, proprietário e criador de gado na região do Tipi. Uma figura bastante conhecida, cuja oralidade era, por assim dizer, um rico e imenso palimpsesto recheado de fatos, exemplos, contos e causos dos mais antigos. Na sua grande maioria acontecimentos idos das quebradas dos sertões do Ceará a Paraíba.

Uma dessas narrativas me fora contada recentemente, ocasião em que eu pesquisava a passagem de Lampião por Aurora. Tal história nos remete inapelavelmente, às primeiras investidas do rei do cangaço ao lado de Massilon Leite, sob os auspícios do coronel Izaías Arruda e seus jagunços na região fronteiriça de Aurora e o estado paraibano. 
Provavelmente na mesma época em que se deram as primeiras incursões dos temíveis cangaceiros de Virgolino aos municípios de Cajazeiras, Canto do Feijão(atual Santa Helena), Belém do Rio do Peixe(Uiraúna), Apodi, dentre outros.

Como protagonista, a figura de um simples agricultor que conseguiu ficar “podre de rico”, como se diz por estas bandas, ‘da noite para o dia’. Tanto que, mesmo após 84 anos do ocorrido, aqui acolá ainda se ouve falar sobre este interessante episódio. Seu nome: Antonio Dias das Braúnas, cuja propriedade localiza-se entre os limites de Aurora(Tipi) com a Paraíba(Cachoeira dos Índios). Um nome que ainda figura entre os mais ricos e afamados proprietários de terras e gado de toda esta região naquele tempo.

Vamos aos fatos:Na segunda metade dos anos 20, auge do cangaceirismo nordestino o Sr. Antonio Dias(das Braúnas) era praticamente um desconhecido. Levava sua vidazinha simples de agregado-agricultor trabalhando pesado no eito de sol a sol, para conseguir tirar da terra o sagrado pão, para o sustento da sua prole. Num tempo em que o sertão estava infestado de cangaceiros e jagunços, não apenas do famoso bando de Lampião, como também dos conhecidos subgrupos sustentados pelos potentados coronéis de engenhos.

Certa noite, quando já se preparava para o recolhimento, o Sr. Antonio Dias ouviu um barulho junto a porteira que dava para o curral ao lado da casa. Noite bela e enluarada, conseguiu avistar de onde estava, por cima da porta, um animal estranho. Resolveu se aproximar para ver de perto do que se tratava. Era uma burra cardan, completamente arriada como se diz no sertão. Sob a sela, corona e embornais avolumados deixavam transparecer que continha no seu interior alguma mercadoria fina. Completamente cheios. Sinal de que traziam algo, mas que ele, até então não havia se certificado do que realmente era.



Homem experiente de boa visão noturna esquadrinhou de relance todo o ambiente. Nem um sinal de uma alma viva, com exceção dele próprio e o animal que parecia assustado. Agarrou o muare pelas rédeas e após alguns passos, amarrou-o numa outra estaca da velha cerca, desta feita, pela parte interna do cercado. Afrouxou a sia da sela tirando em seguida a corona e os alforjes. Estavam pesados. Arriou o animal ali mesmo. Num caco de barro improvisado, ainda com água, colocou bem ao lado da burra. Comida mesmo, ele só daria no outro dia no baixio. até que o dono aparecesse. Deixou-a ali presa a estaca pelo cabresto.

Agora, sobre os seus braços as coronas e os embornais à lua da sela... Rumou para casa com celeridade. Sob a luz esmaecida do grande candeeiro já no centro da sala pôs os arreios no chão. Estava curioso para saber o que havia de fato dentro dos compartimentos de couro. Com extremo cuidado, movido pela crescente expectativa aproximou ainda mais a candeia dos alforjes. Tivera um susto com o que realmente seus olhos enxergaram. Num impulso quase incontrolável quis sentir aquele conteúdo com as próprias mãos. Como quem não acreditasse nos seus olhos. Um frio estranho percorreu todo o seu corpo. As suas mãos acostumasa a segurar até serpentes. Agora tremiam diante do que seus olhos lobrigavam. Um tanto esbaforido pela emoção, sentiu por fim, o peso daquela coisa por entre seus dedos cheios de calos.
- Dinheiro! Meu Deus quanto dinheiro...

Ele sussurrou baixinho como quem falasse para dentro de si mesmo. Depois daquele momento, tudo era só solidão e silêncio.
Uma áurea de mistério empalideceu seu rosto de repente. Os outros da casa encontravam-se recolhindos. Dormiam profundamente...Cédulas, moedas e jóias. Grossos cordões de prata e ouro. Assustado, por um momento ficou ali mesmo prostrado perdido em pensamentos. Sentado sozinho sobre a rés do chão da imensa sala fintava sob a luz mórbida da lamparina de azeite aquela fortuna.

Uma vez mais, meteu a mão agora com força no meio das moedas. Sentiu-as com o tato dos dedos mais do que com os olhos, constatando que de fato, eram muitas...
- Uma fortuna! - Exclamou ele exaltado dentro de si mesmo.
– Diacho, quem será seu dono! – disse. Ningém lhe respondera. Pleno silêncio...
Pegou tudo aquilo, inclusive os arreios em seu conjunto, subiu, com a ajuda de uma escada e guardou no fundo do sótão.Passou o resto da noite em claro. Pensativo, tentou ventilar um milhão de possibilidades para aquele fato. Mas nada de objetivo. Nada se sustentava ante seus esforços imaginativos de sertanejo desconfiado. Teve que de novo, agora pela janela, de verificar se a 'burrinha da felcidade' estava lá como deixou. No pátio ao lado da cerca.

Por algum momento, imaginou que tudo aquilo não passara de um sonho. Mas não. Não estava louco nem sonhando. Um vez que, calma, ao contrário dele, a burra da fortuna permanecia lá onde deixou. Quem sabe na certeza que teria finalmente encontrado seu verdadeiro dono.
– Um milagre!... Ele falou quase num suspiro aliviado.

Aquela madrugada passou voando. Passaram-se dias. Passaram-se anos. Décadas e décadas passaram com celeridade, igualmente as aves de arribação da caatinga naquele ano.
Espero. E nada. Nunca ninguém apareceu para reclamar aquela fortuna. A burrinha nunca mais viajou nem trabalhou. Desde então, passou a viver garbosamente pastando longe dos olhos de todo mundo. Dizem que era um animal formoso. Seu novo dono comprara fazendas, gado, bons cavalos. E de vez terminou ficando rico e afamado...Ninguém jamais soube ao certo como esta história veio a tona e se tornou conhecida.

Sem muita explicação dizem até hoje que o animal havia se desgarrado do bando de lampião num possível confronto com as volantes paraibanas. E uma vez perdida pelas matas do sertão adentro, a burrinha, terminou parando nas Braúnas. Na residência do famoso e sortudo Antonio Dias.
Coisas que escrevo porque ouvi falar...

Por José Cícero
In História que ouvi contar
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2 comentários:

José Mendes Pereira disse...

Que felicidade!
Dizem que dinheiro não cai do céu. Mas este caiu nas mãos de seu Antonio através da burrinha, que talvez cansada e faminta, achou um dono para aquela riqueza. E além do mais, ficou o resto de sua vida sem trabalhar.
Parabém ao Secretário de Cultura de Aurora, José Cícero, pela sua excelente história.

José Mendes Pereira - Mossoró-RN.

Anônimo disse...

Grande texto professor José Cícero, parabéns.

Maria Otilia