Urbano Silva, Oleone Fontes, Heitor Macedo, Manoel Severo e Geraldo Ferraz
Grosso modo, pode-se dizer que
toda a sociedade da época, estabelecida naqueles rincões, vivia a era do
cangaço, à guisa de uma verdadeira instituição social, onde não havia margem
para escolhas dentro daquele tempo e espaço.
Assim, apesar do preconceito e das
agruras que ainda causam repulsa (tendo em vista o cometimento de furtos,
roubos, estupros, assassinatos, mutilações, etc.) a imagem do cangaceiro que
nos foi relegada coincide apenas com um de seus tipos, exatamente no que se
enquadrava o famanaz Lampião (Virgulino Ferreira da Silva), caracterizado não
só por crimes e pela estrambótica estética, mas, principalmente, pelo lado em
que estava entrincheirado, oposto à oficialidade, isto é, contra o Estado. Fato
que poderia ser facilmente modificado pela oportunidade e conveniência dos
governos e de seus gestores, que não eram menos cangaceiros que os primeiros.
Desprezar esses acontecimentos é a
mesma coisa que renegar a própria história, seja ela política, social ou
antropológica. Afinal, fomos agentes (ativos e/ou passivos) dessas práticas e
não é exagero dizer que também somos, em parte, o resultado delas.
Voldi Ribeiro e Heitor Macedo
Durante os quatro dias de reuniões
protagonizadas pelo Cariri Cangaço, muita coisa pôde ser discutida, apesar do
tempo exíguo para as conversas de tantos espíritos apaixonados. Contudo, farei
um resumo apenas de alguns dos encontros nos quais estive presente, destacando
o que mais me chamou a atenção.
Na noite do dia 23, na cidade do
Crato/CE, foi exibida a película do longa metragem que conta a redescoberta de
um casal de cangaceiros do grupo de Lampião, Moreno e sua esposa Durvinha, os
quais no começo do século XXI ainda eram vivos, residindo em Minas Gerais,
décadas depois de terem abandonado a vida bandoleira.
A tez acobreada, os olhos amendoados
e os cabelos linheiros como setas acusam a possível origem cromossômica do
casal de cangaceiros, certamente, mamelucos e/ou cafuzos, como a maioria dos
caboclos do interior do Nordeste.A saga de um indivíduo que entrou para a vida
do crime depois de ter sido violentamente surrado pela polícia, sob a acusação
der ser o autor do furto de um bode, e que durante o suplício, ao ser chamado
de ladrão, retrucava, insistentemente, sou um cidadão, ajuda a
reconstituir um quadro comum no passado do Nordeste, onde a falsa imputação de
um crime e a arbitrariedade das autoridades tinha o condão de lançar indivíduos
na vida do crime, sendo estes motivados, algumas vezes, pelo sentimento de justiça
e vingança.
Filme de Wolney Oliveira, "Os últimos cangaceiros".
O logística usada pelos cangaceiros e
pela polícia-volante (não menos cangaceira) remontam ao tempo das expedições
bandeirantes, quando as guerrilhas demandavam estratégias mistas, cooptadas nos
embates indígenas e nas antigas técnicas militares portuguesas, como
emboscadas; perseguição a partir de rastros; armas de fogo usadas por
combatentes em constantes deslocamentos; etc.
Porém, no vídeo, o ex-cangaceiro
Moreno demonstra, com originalíssimos trejeitos, parte da movimentação rápida
utilizada para se livrar dos projéteis, cabendo destacar a posição de tiro com
fuzil, em pé, acomodando-se lateralmente, a fim de reduzir a superfície de
contato do corpo, e, consequentemente, diminuir a probabilidade de ser alvejado
na região ventral.É curioso ver que, mesmo tendo residido tantos anos em uma
região cuja cultura é relativamente diversa, o casal manteve a tradição da sua
terra natal, como, por exemplo, o sotaque carregado, pronunciando os
fonemas ti edi linguodentais, falando com som
arrastado, entre outras características do português arcaico que os habitantes
do sertão do Nordeste ainda mantêm.
No meio de tudo isso, a
interessantíssima história desses dois ex-cangaceiros é regada por um romance
mal sucedido, pois Durvinha, quando entrou para o dito bando, o fez apaixonada
por um cangaceiro bem-apessoado, chamado Virgíneo, contudo, foi após a morte
deste que se uniu a Moreno. Sem papas na língua e na presença do esposo,
confessa, sem o menor receio, que o seu grande amor ainda era Virgíneo.
Ademais, cabe salientar que ela nunca atirou em ninguém, pois tinha medo de
pegar em armas, evidenciando comportamentos, admiravelmente, antagônicos dentro
do cangaço.
Heitor Macedo e Manoel Severo
Na tarde do dia 24, na cidade de
Lavras da Mangabeira/CE, houve uma conversa entre os
pesquisadores/historiadores, sendo assistida por vários estudantes do distrito
de Quitaiús, tendo como tema o Pacto dos Coronéis em Juazeiro do Norte, datado
de 1911.O assunto tratado girava em torno do uso do cangaço pra fazer política
regional, isto porque no dia 04 de outubro de 1911, ano da inauguração da
cidade de Juazeiro do Norte, alguns coronéis do sul cearense, intendentes
municipais (espécie de prefeitos ‒ chefe do poder executivo), se reuniram nesta
localidade para firmarem publicamente um acordo mútuo, sob a direção do padre
Cícero Romão Batista, comandante supremo do município recém-inaugurado.
Neste dia, Juazeiro deixava de ser
uma mera vila para passar à capital do cangaceirismo regional, e o padre Cícero
o coronel dos coronéis.O encontro destes chefes políticos no Cariri
cearense resultou numa espécie de tratado de paz, sendo batizado pelo padre
Cícero de artigos de fé política. Porém, existem outras
denominações para este mesmo fato, como pacto de paz, pacto de
harmonia política, aliança política, conferência
política, e, mais usualmente, pacto dos coronéis.
O fato é que o pacto pretendia por
fim à série de deposições municipais (sendo o cargo de prefeito disputado
à bala), bem como firmar o compromisso de apoio ao velho babaquara então
presidente do Estado do Ceará, Antonio Pinto Nogueira Acióli. Porém, o artigo
sétimo mencionava a condição de abrir mão dos cangaceiros, o que tornava tudo
aquilo uma utopia, afinal, o coronel só existia em função destes bandidos e
vice-versa.
Dos 19 líderes convocados para a
sessão, apenas 17 deles ou seus representantes compareceram e assinaram a ata.
Os pactuantes eram chefes das cidades de: Missão Velha, Crato, Juazeiro do
Norte, Araripe, Jardim, Santana do Cariri, Assaré, Várzea Alegre, Campos Sales,
São Pedro do Cariri, Aurora, Milagres, Porteiras, Lavras, Barbalha, Quixadá
(Farias Brito) e Brejo dos Santos.
Por fim, das nove cláusulas
estabelecidas, pouco foi cumprido, como, por exemplo, o apoio ao presidente
estadual, que, inclusive, veio a ser reconduzido ao dito cargo, em 1914, pelas
armas, principalmente, dos cangaceiros, chefiados por seus respectivos coronéis
sul cearenses. Isto prova a existência da simbiose entre o coronelismo e o
cangaço.
A medida tinha vários propósitos,
dentre eles o fim das deposições municipais que estavam ocorrendo na região,
pois os chefes políticos se aboletavam neste cargo usando da força. Para tanto,
faziam uso de verdadeiros exércitos privados, compostos por capangas e
cangaceiros.
Apesar da farta bibliografia que
existe em torno do tema, alguns pontos permanecem sem solução, como afirmou
Joaryvar Macedo, ao dizer que este: “tem sido um dos assuntos controvertidos
da crônica política do Cariri, inclusive quanto a quem o concebeu. A sua
ideação já foi atribuída por estudiosos ao Padre Cícero, ao doutor Floro, ao
coronel Antônio Luís Alves Pequeno, ao presidente Nogueira Acióli, ao doutor
Arnulfo Lins e Silva, então juiz de Barbalha” (Império do Bacamarte, p.
139).
Assim, já tendo sido o pacto em
comento algo bastante explorado pelos estudiosos, coube aos painelistas fazerem
digressões em outros aspectos, como apontar algumas origens remotas do
coronelismo, do tempo da ocupação sesmarial, bem como abordar a influência
psíquica da figura mística do padre Cícero sobre os coronéis, cangaceiros,
jagunços, capangas e o povo.
Calixto Junior e o percurso de Quinco Vasques
Ao final da tarde, o grupo fez
excursão pela cidade de Lavras da Mangabeira, conhecendo os pontos principais
que envolveram a invasão cangaceira da dita urbe no começo do século XX, isto
por ensejo do resgate histórico feito por João Calixto e publicado em livro.
Em que pese ser a bibliografia sobre
o padre Cícero bastante extensa, ainda restam pontos a serem revelados, e foi
com esse mesmo mote que houve a reunião na noite do dia 25 de setembro de 2015,
em Juazeiro do Norte. Os palestrantes discorreram sobre
aspectos místicos e genealógicos do Santo Padre, enveredando tanto pela psique
quanto pela árvore de costados de Cícero Romão Batista, apresentando uma ótica
singular sobre o poder da crença no catolicismo popular e a possível influência
que os ancestrais do dito sacerdote exerceram sobre o seu comportamento.
Emerson Monteiro, Ângelo Osmiro e Laílson Feitosa
Este é apenas um breve resumo do que
pude acompanhar nas poucas horas em que estive acompanhando o referido evento.
Confesso que tive que provar uma moderada dose de convivência para afastar o
preconceito que o título por si impõe, Cariri Cangaço,
pois, como ficou dito, o compromisso deste sodalício não é enaltecer tal
espécie de banditismo, mas poder compreender melhor os fatos que envolvem a
sociedade nordestina, principalmente, a sertaneja.
Com a expansão deste
movimento para outros estados e regiões do País, ocorrendo a inserção de mais
estudiosos sobre o cangaço e temas correlatos, estes encontros constituirão uma
importante ferramenta para a elucidação histórica de uma sociedade encravada há
séculos nos antigos sertões do Norte.
Talvez não seja exagero, mas acredito
que esse sinergismo poderá oferecer algumas respostas ou orientações para
aqueles que estudam a história, a sociologia, a antropologia e o direito (principalmente
no ramo da criminologia) concernente à civilização do couro,
sociedade esta formada por gente interiorana, do semiárido nordestino, que
ainda existe e, por isso, precisa ser vista e escutada não como vítimas, mas
como sujeitos de sua própria história.
Heitor Feitosa Macedo
Pesquisador e Escritor
Crato, Ceará
Fonte:http://estoriasehistoria-heitor.blogspot.com.br/
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