A Cruz e o Rilfe, Padre Cícero, Lampião e o Poder Por:Urbano Silva


Figuras emblemáticas do panorama social do nordeste, personagens envoltos em lendas, misticismos, folclore, fantasias e realidades das mais diversas, Cícero e Virgulino - o padre e o cangaceiro - estão alçados à condição de mitos nordestinos. Há três décadas juntando literatura, imagens e percorrendo cidades, bibliotecas e museus com o tema dos referidos personagens, gostaria de expor nesse artigo um extrato da visão que tenho sobre eles, moldado na imparcialidade, historiografia e vontade de compartilhar pesquisas.

Autores da grandeza de Nertan Macedo, Francisco Nóbrega, Pereira Gondim, Amália Xavier, Luitgarde Cavalcanti, Lira Neto e outros publicaram valiosos trabalhos sobre o tema. E claro, são referências universais de pesquisa. Um dos pontos nevrálgicos da biografia de Cícero, é o cruzamento da sua aura religiosa com a de líder político. Um dos autores atribui a ele a seguinte frase: o que Deus rejeita, o diabo não enjeita. Se a igreja não me quer, a política me convida.


Professor Urbano em participação no Cariri Cangaço em Juazeiro do Norte, 
no Horto do Padre Cícero

A base política do padre é sólida, formatada pela ambição do Floro Bartolomeu, médico e articulador político, que soube como ninguém ler a força do carisma do sacerdote, acrescentado doses de vaidades que os firmariam no poder social.


Em 1911 o padre funda a cidade de Juazeiro, em 1914 derruba o governador do Estado, em 1926 frente a frente estiveram Cícero e Lampião, projeto oriundo do Presidente da República Arthur Bernardes, via deputado federal Floro e o prestígio quase divino do padre, que assinou a convocação. Uma patente que não teve validade, mas rendeu frutos de armas e munições, matéria-prima valiosa para o vaidoso cangaceiro, capitão Virgulino Lampião! A missão? Abater a tiros Carlos Prestes, líder do comunismo que tanto incomoda os latifundiários e mais abastados.


Pesquisadores favorecem a tese de santificação do padre, a partir do robusto trabalho de acolhimento aos menos favorecidos. Mas esses mesmos estudiosos se omitem em aprofundar-se na revelação do perfil sacerdotal que moldou para si um pedestal e o sustentou no poder e suas benesses até os dias de hoje, 85 anos depois do seu falecimento. Política não é lugar para ingênuos, santinhos ou aprendizes de samaritanos. O padre lançou mão de um misticismo, estudioso que era a partir de sua vasta biblioteca, e esse misticismo iluminou a sua face religiosa, que reverberou em votos e força eleitoral. Inteligentíssimo, montou o seu próprio ministério, com pessoas dentro de sua própria residência, para que ele pudesse monitorar cada passo, cada palavra, cada ato dos seus auxiliares.

Floro Bartolomeu e Padre Cícero

Beata Mocinha, sua governanta, criada pelo padre desde os 11 anos de idade. Uma filha adotiva e obediente.
Maria de Araújo, a moça do fenômeno (não vejo como milagre) da hóstia, criada por familiares dele desde a infância, ela mesma se denominando “a noiva de Cristo” e a fantasia que expelia o sangue do próprio Jesus, interpretação sem nenhuma base teológica. Se era sangue humano? Ponto final, nenhuma relação com o Divino ser. Resume-se a um fenômeno biológico do próprio corpo, ou algo mais simplório. Foi espetacularizado e tomou dimensões inimagináveis de popularidade e santificação ou veneração popular. Atingiu plenamente os objetivos. Para a beata, significou sua sentença de polêmicas, castigos e morte. Para o padre, acusações e expulsão de sua própria igreja. Até o Papa soube.

Tereza, ex-escrava, residiu com o padre e foi serviçal até o fim dos dias.
Floro Bartolomeu, único da corte com curso superior, político maquiavélico, vaidoso, sedento de poder, manipulador, usou o carisma do padre e lhe formatou a identidade política. O carisma de um somado com a ambição do outro e ambos se beneficiaram das coisas boas do poder. Não há ingenuidades nessa relação.

Beata Maria de Araujo

Benjamin Abrão, mercenário, ambicioso, vaidoso, namorador, quantos detalhes e segredos da corte levou para a sepultura, e jamais saberemos? Como secretário do padre, falava em nome dele e o cargo lhe abriu todas as portas, até as confidências do destemido Rei do Cangaço, a quem fotografou, filmou e fez marketing de aspirinas e jornal. Ousadia da peste! Apresentado como “conterrâneo de Jesus” o que nunca foi, pois era libanês, território há centenas de quilômetros onde o Cristo nasceu...mas uma mentirinha assim, que mal faz? Impressionar os devotos era a primazia, e ninguém questionaria o padre, sua corte, nem se preocupariam com os detalhes geográficos.

José Teles Marrocos, o primo legítimo do padre, ex-seminarista, filho de um padre com uma beata, homem de uma cultura primorosa, professor, conhecedor de química (tipos sanguíneos, plasmas, glóbulos, hemácias, bicarbonato etc) era seu material de estudo e experimentações. Parente que vivia o dia a dia do primo famoso...e morreu subitamente, quando medicado de um diagnóstico banal, por dr. Floro Bartolomeu!

Lampião visitou o reino encantado do Juazeiro em março de 1926, história cheia de detalhes. E lá reuniu a família, dialogou com o padre (encontro histórico) e seguiu seu destino bandoleiro. Foi essa a única visita? Desconfio que não. Foi a única pública, é possível ter havido outras, afinal, o rei do cangaço tinha uma veneração pelo religioso e um débito de gratidão pelo acolhimento de seus familiares, como Maria Queiroz Ferreira, dona Mocinha, que faleceu aos 102 anos de idade, já no século XXI.

Lampião e a clássica fotografia ao lado da família por ocasião de sua visita 
a Juazeiro do Norte em Março de 1926

A causa política do sacerdote teve seu próprio exército recrutado por aventureiros dos sertões, numa variação de 450 até pouco mais de 1.000 homens. Força paramilitar, um crime aos olhos da lei, que o enquadraria como milícia armada nos dias de hoje. Sem estar em combates por causas políticas, eram esses mesmos homens que soltavam os rifles e punhais e empunhavam a cruz e os rosários, varando madrugadas em preces e ladainhas. Também compunham o exército de agricultores que davam “dias de serviços gratuitos” nas lavouras e engenhos do padre, produtor de excelentes rapaduras, distribuídas em vários estados nordestinos.

Casamentos, só com a análise prévia do sacerdote. Negros com brancos? Negativa na certa. Pobres com ricos? Nenhuma chance. Onde ficava o amor do casal? Embaixo da autoridade de Cícero, senhor absoluto no seu reino cearense.

Por mais impactante que seja, a revelação dos bastidores do poder, seja ele religioso, político, militar etc, é necessária para entendermos a psique que acontece quando vontades se tornam leis, opiniões são irredutíveis, dinheiro é identidade, e dominar vidas de súditos satisfaz tanto quanto se banquetear nas sombras do poder, geradoras de vaidades, autos satisfação e prestígio na forma de respeito, admiração e submissão dos pares que manipulam os destinos sociais.
Quando os súditos os adoram, os personagens transpõem os tempos.
Morre o homem, se eterniza o mito.

Viva a cultura nordestina!
Prof. José Urbano
Caruaru, Pernambuco


E vem aí
Cariri Cangaço
10 Anos
24 a 28 de Julho de 2019
CEARÁ

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