Do Ceará três Santos do Nordeste - Parte I Por:Luitgarde Oliveira Barros


Estudando-se a religiosidade popular do Nordeste, chama a atenção uma singularidade: as três principais figuras míticas da crença do povo - o Padre Ibiapina, Antônio Conselheiro e Padre Cícero são filhos do Ceará. Além dessa origem, elementos históricos e sociológicos em diferentes níveis constituem-se pontos coincidentes na trajetória de vida desses homens que têm também como fator de identidade serem objeto do imaginário das mais pobres camadas sociais da população nordestina. Em nossa perspectiva, o que determina a importância do estudo desses personagens é sua pertinência a uma cultura singular, tipicamente plasmada a partir da ideologia católica, trabalhada, vivida e transfigurada pelos setores mais distantes na hierarquia social, dos grupos dirigentes, tanto a nível de Estado quanto ao de Igreja.

Padre Ibiapina

Sem significar um privilegiamento de enfoque, refletiremos inicialmente sobre a coincidência da situação geográfica e temporal de suas existências. No parágrafo introdutório desse trabalho poderíamos ter usado a expressão - "nasceram no Ceará". Mas diríamos pouco em relação à perspectiva pela qual analisamos suas personalidades, marcadas todas elas por traços comuns de convivência com o lado violento da natureza regional - (a seca), por um sentimento telúrico revelado nos menores gestos, nas lembranças de um andejar pelos verdejantes Cariris Novos, no sofrimento da vida na sociedade nordestina da segunda metade do século XIX.

A longa agonia da crise econômica do Nordeste que se arrastava desde o início do Século XVIII, vai eclodir ao nível do social, na primeira metade do século XIX, nos vários levantes armados dos quais os mais importantes, segundo a historiografia oficial, foram 1817 e 1824. Foram as últimas tentativas de as camadas econômica e intelectualmente privilegiadas da região impedirem o total deslocamento dos pólos decisórios da economia e da administração para o Centro-Sul. Sufocados os levantes, a partir de então se passa às tentativas de estabelecimento de um pacto entre senhores, concertando o novo modus-vivendi entre as regiões econômicas.

As baixas camadas sociais, homens livres e semi-livres, à margem do processo principal escravista, deslocam-se tendo sua vida, como desde o início da colonização, dependente dos grandes senhores. Despossuídos da terra, trabalhadores do alugado, só são necessários no momento das safras, filiando-se aos grandes clâs parentais (expressão de Oliveira Viana) através do compadrio, numa submissão centenária que os leva muitas vezes à morte, na fidelidade aos senhores em luta contínua por terras ou por posições de mando.

Antônio Conselheiro nas telas do Cinema

Essa situação gera para essas camadas constituídas também pelos artesãos, pequenos proprietários, comerciantes mais pobres (bodegueiros e mascates) e todos os mestres de oficio uma situação de "deprivation" agravada pelas epidemias que grassam no sertão, além do flagelo da seca, quase cíclico naquela região. À pobreza material soma-se a angústia da guerra e da doença, a repressão pela guerra do "Quebra Quilo".

Esse o cenário geográfico, econômico e social palco da vida de Ibiapina, Conselheiro e Cícero.

Os estudiosos de Antônio Conselheiro se referem todos a sua passagem pelo Cariri ao tempo em que a palavra de Ibiapina missionava o povo do Ceará que para aí acorria. As páginas mais comoventes dos escritos de Ibiapina são as escritas despedindo-se dessas plagas, que mantiveram o Pe. Cícero prisioneiro pelo sentimento de ligação à terra e ao povo, até o enfrentamento com as altas autoridades da hierarquia católica.

Tomando como ponto de reflexão as cartas de despedida de sua gente, escritas por eles, estudaremos os elementos que os identificaram, no ideário popular nordestino, como os melhores entre seu povo - os santos do Nordeste.

Transcrevendo as três despedidas - a de Ibiapina, de 16 de setembro de 1872, a de Conselheiro, só conhecida na década de 70 deste século, embora escrita em 12 de janeiro de 1897 e o testamento do Pe. Cícero, datado de 1934, é possível detectar-se alguns vetores comuns que orientaram a vida desses homens. Desses, destacam-se a relação íntima com seu povo, apego à terra, a preocupação com a eternidade e a salvação dos homens, a saudade de sua gente, a tentativa de permanência no seu mundo sertanejo, o amor aos humildes, o privilegiamento de certos caracteres da formação cultural de seu grupo, o respeito à Igreja Católica como a força original para a qual retornam pelas orações, pela ética.

Padre Cícero Romão Batista

Declaração que faz o Padre Ibiapina aos Irmãos, Beatos e Irmãs das Santas Casas de Caridade do Cariri Novo. Fiz entrega das casas de caridade do Cariri Novo ao Exmº e Revmº Sr. Bispo por segurar-lhes um venturoso futuro, por que debaixo de tão valiosa proteção de um Pai tão habilitado pelas circunstâncias favoráveis que o cercam, não posso deixar de animar a todos os beatos e irmãs de caridade para auxiliarem a permanência das Casas e prosperidade delas. Se, porém, algum Beato, ou irmã de caridade, não puder ou não quiser continuar os seus serviços, pode retirar-se para a sua casa, e se julgar que lhe convém continuar a prestar serviços de Caridade debaixo de minha direção, pode procurar-me que com agrado receberei como o filho espiritual, a quem amo e a quem continuarei a prestar serviços espirituais. Tanto quanto minhas pequenas forças permitirem. Todos sabem que não pode ser obrigado aos fins quem não tem direito aos meios que o habilitam a conseguir os fins. Tendo o Sr. Bispo aceitado as Casas, não está mais sob minha responsabilidade prover os meios de sustentação destas Casas. Não tendo mais a posição moral que me autorizava a pedir esmolas, os que eram os meus esmoleiros não poderão mais em meu nome, porém para a Caridade; esperem as Casas pela deliberação do Sr. Bispo, que não se esquecerá de providenciar quanto antes para que as Casas não se fechem. Estou muito longe, que posso fazer? Entretanto os Beatos e irmãs de Caridade obrem segundo esta instrução que é a minha direção conscienciosa. Digo adeus a todas as Casas, abraçando as minhas queridas filhas órfãs e derramando uma lágrima de ternura paternal. Podem dar publicidade à minha declaração para que se veja que obro com sinceridade e boa fé. Irmãos, eu não procuro honras de Instituidor, quero que se beneficie a humanidade desvalida, como é a orfandade, principalmente na minha terra; portanto sejam todos felizes e eu sou também. Adeus, bom povo do Cariri Novo, eu vos abraço sem excecão porque de todos vós recebi testemunhos de amor e de simpatia que bem se conhecia que o vosso coração era meu, como o meu era e é vosso. Adeus, homens, adeus mulheres, adeus meninos, adeus meninas, adeus moços, adeus velhos, gentes todas dessa terra de onde sou retirado por altos juízos de Deus, para que sofra o coração que gozou as ternuras do amor de pátria e as doces consolações da amizade. Beijo este papel e nele fecho o meu coração para ser visto nestas poucas palavras pelo bom povo do Cariri Novo. Padre Ibiapina. Cravatá, 16 de setembro de 1872 .(PINHEIRO, 1963:161-162).

Continua...

Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros
Dra. em Ciências Sociais,
Professora de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARROS, Luitgarde O. C. A terra da Mãe de Deus -Um estudo do Movimento Religioso de Juazeiro do Norte. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, ed MINC-INL, 1988.
MARIZ, Celso, Ibiapina, um Apóstolo do Nordeste. Paraíba, Publicações Unitas Editora, 1942.
NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. São Paulo; Nacional 1974.
PINHEIRO, Ireneu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1963.
SOBREIRO, Pe. Azarias. O Patriarca do Juazeiro. Petrópolis: Vozes, 1969.
ZAMA, César. Apud. NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. São Paulo: Nacional, 1942.

Fonte:portfoliun laboratório de imagens

Um comentário:

Anônimo disse...

É sempre uma satisfação acompanhar o trabalho da professora Luitgarde Oliveira Cavalcante Barros, uma verdadeira Mestra.

Parabéns pelo belíssimo artigo que inclusive já conhecia, saudações aos organizadores por trazê-lo a este espaço maravilhoso.

Selma Sampaio , São Paulo