Benjamim Abrahão
Matéria publicada no Jornal O Povo, de Fortaleza,
edição de 21 de dezembro de 1999
Quase todas as
datas referentes a ele são meio incertas. Para o jornal, porém, as datas são
memoráveis entre dezembro de 1937 e janeiro de 37. Um dia, 29, a publicação,
"em primeira mão", da clássica foto do cangaceiro. Depois, dia 31,
Maria Bonita faz pose em 1ª Página. Até que, em 12 de janeiro de 37, O POVO
enfim ouviu o já então "ex-secretário do Padre Cícero". Na
entrevista, Benjamim conta como conseguiu apanhar Virgolino Ferreira e outras
coisas mais. Curioso é que, em nenhum momento, seu discurso é reproduzido, num
recurso bastante utilizado pelo jornalismo da época. No entanto, o relato vai
sendo detalhado pelo repórter (não identificado na matéria), como se apenas
mudasse da primeira para a terceira pessoa. A partir dali, porém, este relato
entrava definitivamente para a mitologia do sertão e do cangaço nordestinos.
Regressou a
Fortaleza o Ex-Secretário do Padre Cícero - Uma Entrevista a O POVO sobre
os seus Encontros com o famoso Cangaceiro.
Causou grande sensação entre os nossos leitores a reportagem fotográfica sobre
o grupo de Lampeão, publicada há poucos dias pelo O POVO, de par com a notícia,
veiculada em primeira mão, segundo a qual estava em preparos, na "Aba
Filme", uma película cinematográfica em torno do temível cangaceiro e seus
asseclas.
Tratando-se, conforme e assinalamos, de um filme apanhado ao natural, na própria zona onde opera o rei dos bandidos nordestinos, boa parte das atenções se voltaram, de logo, para o "reporter" audacioso e inteligente que conseguira levar adiante a arrojada iniciativa.
Com efeito, embrenhar-se pelos sertões requeimados do nordeste à procura do
herói de tantos crimes de tantas mortes, encontrá-lo no "habitat" de
suas façanhas, entrar em contacto com o bandido, entrevistá-lo, fotografá-lo e
filmá-lo mais de uma vez, tudo isso o só auxílio do sangue frio
e da sagacidade pessoal, foi uma empresa digna de realce nas colunas da
imprensa, justificando plenamente a curiosidade publica em torno de seu autor.
Desta
sorte, ficamos à espera de que retornasse a esta capital o sr. Benjamin
Abraão - pois é este o seu nome - afim de ouvir de seus próprios lábios a
narrativa detalhada de seus encontros com Virgolino Ferreira,
transmitindo a aos leitores do O POVO como complemento de nossas
anteriores publicações a respeito do assunto.
Ontem à tarde, chegou ao nosso conhecimento que o ex-secretário do Padre
Cícero, viajando no "horário" da R.V.C., deveria desembarcar nesta
capital à noite. Efetivamente, cerca de 20 horas, a nossa reportagem foi encontrá-lo na Central,
acertando com o mesmo uma entrevista para hoje.
O sr. Benjamin Abraão, que aparece na fotografia ao lado juntamente com Lampeão e sua mulher, é um rapaz forte, de origem síria, possuindo, porém, palestra fácil e agradável em nossa língua.
Desta maneira, partido à sua procura, em 1935, com a idéia de filmá-lo, não
levava qualquer credencial para Lampeão.
O sr. Benjamin Abraão, que aparece na fotografia ao lado juntamente com Lampeão e sua mulher, é um rapaz forte, de origem síria, possuindo, porém, palestra fácil e agradável em nossa língua.
Abordado pelo nosso companheiro, disse-nos, de início, que, embora se
encontrasse no Joazeiro quando Lampeão ali esteve, em 1924, não travou
conhecimento com o bandido naquela época.
O primeiro
encontro com o grupo
Tendo seguido desta capital a trem, o sr. Benjamin Abrahão penetrou na Paraíba, de onde seguiu para Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, em cujos sertões se encontrava Virgolino Ferreira.
Depois de onze meses de tentativa para abordá-lo, durante os quais andou quasi
sempre a pé ou a cavalo, numa região extremíssima, visitando inúmeras
localidades, conseguiu afinal o seu intento, graças a um golpe de sorte.
O caso é que, estando, como de hábito, pelas "caatingas", a ver se
dava com o grupo, encontrou-se com dois cangaceiros, Juriti e Marreca,
devidamente armados e municiados, os quais o abordaram imediatamente,
apontando-lhe os fusis.
Lampeão e seus sequazes já sabiam que o nosso entrevistado andava a sua
procura, com o objetivo de fotografá-lo. Mas desconfiavam da
"historia", supondo que se tratasse de algum enviado da polícia.
Nestas condições, quando os dois bandidos deram com o mesmo, o identificaram de
pronto e trataram de levá-lo à presença do chefe, que estava acampado a meia
légua de distância.
Frente a frente com Lampeão
O grupo de Lampeão mantém invariavelmente um sentinela, a duzentos metros distantes do ponto onde se localiza.
Desta maneira, antes de chegar à presença de Virgolino, teve o sr. Benjamin
Abrahão de prestar suas homenagens ao bandido "Sabonete", depois do
que foi conduzido até o acampamento.
Ao vê-lo, a primeira pergunta de Lampeão foi a seguinte:
- Como é que você chegou aqui com vida, cabra velho?
O sr. Benjamin deu as explicações cabíveis no momento e disse-lhe de seus
propósitos.
Depois de inteiramente revistado, e de haver constatado o bandoleiro que eram
pacíficas as intenções do rapaz, tanto assim que em matéria de arma só conduzia
um facão para cortar mato - o sr. Abrahão começou a grangear familiaridade
entre o grupo, com o qual esteve cerca de cinco dias, observando-lhe os hábitos
e apanhando diversos flagrantes fotográficos.
O bando era
composto de doze homens e duas mulheres: Lampeão, Juriti, Sabonete, Cacheado,
Marreca, Moderno, Gorgulho, Barra Nova, Elétrico, Vila Nova, Luiz Pedro,
Pitombeira, Maria Oliveira (mulher de Lampeão) e dona Nenen (mulher de Luiz
Pedro).
Todos estavam armados de fusis, cada um com 300 cartuchos, no mínimo, parabelum
é cinta, bornais, cartilho dagua - um equipamento, enfim, de quinze a vinte
quilos.
Espalhadas pelo local, umas perto das outras, várias empanadas, sob as quais
dormiam os cangaceiros, aos grupos de dois e três.
Era quase meio dia quando ali chegou o sr. Benjamin Abrahão. Os bandoleiros
estavam almoçando e convidaram-no para fazer o mesmo, com o que concordou de
boa vontade o nosso entrevistado.
A mulher de Lampeão
A mulher de Lampeão, ao contrário do que fôra noticiado por um cronista
cearense, não se chama Maria da Gloria nem é natural de Joazeiro.
Seu
nome, como dissemos, é Maria de Oliveira, sendo tratada pelos companheiros por
dona Maria ou a "mulher do capitão".
É branca, bem parecida, com pele conservada, apesar de viver ao sol. Nasceu na Bahia, município de Sto. Antonio da Gloria, tendo ingressado no grupo quando o mesmo se internou nos sertões bahianos, em 1929, por sua livre e espontânea vontade.
Vive maritalmente com Virgolino, tudo indicando que reina a melhor harmonia entre o casal.
Ela tem no maximo 25 anos, enquanto ele já atingiu 37.
Depois de alguns dias de contacto com o grupo, o sr. Benjamin Abrahão fotografou e filmou várias vezes, realizando, em parte, os seus objetivos.
Virgolino Ferreira, segundo nos declarou o sr. Benjamin Abrahão, é um camarada desconfiado, qualidade essa que revala a cada momento e a propósito de tudo.
Quando a maquina cinematografica estava preparada para focalizá-lo, pela primeira vez, antes de deixar-se fotografar mandou o bandido que o ex-secretario do Padre Cícero ficasse em seu lugar e passou para a posição do mesmo. Bancou, assim, o operador, apertando com todo o cuidado o botão do aparelho, pois ainda estava pensando tratar-se de alguma arma de guerra, preparada para matá-lo...
Só depois dessa experiência é que o sr. Benjamin poude filmá-lo desembaraçadamente.
Lampeão não é um neofito em matéria de cinema, como poderia parecer à primeira vista, pois já teve ocasião de assistir à exibição inteira de uma película cinematográfica, na cidade de Capela, no Estado de Sergipe.
O nosso entrevistado, ao passar por essa localidade, apanhou ótimas fotografias do cinema visitado pelo invencível bandoleiro.
O estilo quase apocalíptico desta "impressionante entrevista com o jaguar bravio do nordeste", Virgulino Ferreira, vulgo Lampeão (1897-1938), denota o mito que o rei do cangaço gozava entre jornalistas e leitores. Um "prazer curioso", no entender do autor do texto a seguir. De fato, a justaposição do caráter de bandido e de herói de Lampeão é um dos aspectos mais instigantes para historiadores e curiosos. Foi sob essa fusão de imagens que esta entrevista acabou publicada, em junho de 1928, simultaneamente com um jornal de Recife chamado "A Noite". A opção de publicá-la juntamente com a entrevista com o mascate Benjamim Abrahão tem um motivo básico: Abrahão foi o único repórter fotográfico a conseguir registros de Lampeão e seu bando. E O POVO, nesse aspecto, foi veículo privilegiado na divulgação das notícias que chegavam do cangaço. No caso de Lampeão, é interessante perceber as revelações do cangaceiro. Na entrevista, ele conta que, se pudesse, abandonaria o cangaço e que mata para vingar a morte de seus pais. "Era meninote quando os mataram. Bebi o sangue que jorrava do peito da minha mãe e, beijando-lhe a boca fria e morta, jurei vingá-la...", diz ele. E ainda afirma: "Gosto dos oficiais e odeio os chefes de polícia". A conversa é curta, mas não se imaginaria diferente, em se tratando de um "selvagem dos sertões". É o suficiente, no entanto, para se ter uma idéia da ascensão do mito e da crueldade do mundo do cangaço.
Os dados e as informações sobre que escrevemos esta reportagem foram colhidos do próprio Lampeão pelo sr. José Alves Feitosa, que há semanas, no alto sertão, com elle conversou demoradamente.
Offerecendo à A Noite essas notas interessantíssimas, o sr. Feitosa, offertamo-la, nós, aos nossos gentilíssimos leitores, a quem não queremos mais poupar o prazer curioso de sentir um bocado da psychologia pittoresca e da vida romanesca do jaguar terrivel dos sertões.
Cabia o crepusculo sobre o escampado arido e esbrazeado daquelle recanto sertanejo do Estado do Ceará, no pé da serra do Araripe: o engenho de rapadura Boa-Vista, a cinco léguas da cidade de Missão Velha, quando o sr. José Alves Feitosa ali chegou.
Um crepusculo doloroso, sertanejo, manchando a paisagem de sombras e difundindo uma melancolia por tudo...
Gentis e acolhedores, os senhores de engenho o receberam, prodigalisando-lhe o conforto de uma hospedagem, onde elle repousaria da viagem exaustiva.
Ahi, foi que se aproximou de Lampeão.
Este assomara à porta, desarmado, fitando o recem-chegado, que o interpellou logo:
- É o capitão Virgulino Ferreira?
- Às suas ordens.
- Já o conhecia através de photographias.
- Ah? Foram esses retratos, de que o sr. fala, que me inutilisaram. Si não tivesse deixado phopographar-me, seria desconhecido e já poderia ter desaparecido, sumindo-me no mundo, indo para longe, ganhar a vida tranquilamente, sem attribulação dessa angustia constante de ser perseguido.
- E o sr. é perseguido? Dizem na capital que a polícia...
- ... não persegue, porque sou amigo dos officiais. É verdade, mas, ainda assim, as trahições, o sr. comprehende.
No anno passado, Isaias Arruda, meu grande amigo, chefe politico cearense, surpreendeu-me numa localidade deste Estado com um cerco policial terrivel, de que me livrei não sei como.
Estas cousas são que magoam...
Uma trahição, o diabo!
Gosto dos officiaes e odeio os chefes de policia.
Não é verdade que eu haja emboscado, para matar ao dr. Eurico Souza Leão. Ignorava que esse chefe de policia viajava, naquelle tempo, pelo sertão...
Se soubesse, com franqueza, eu teria aventurado...
- Como foi assassinado seu irmão?
- É invenção. Elle não foi morto. Está são, vivo e bolindo.
Aquillo foi brincadeira "só para atrapalhar"...
- E Sabino?
- A mesma coisa.
Está vivo, no Riacho do Navio, à frente de alguns homens. Vou encontrar-me, agora, com elle.
- Disse-me, ha pouco, que se pudesse abandonaria o cangaço...
- Sim. Por porque eu não vivo a vida do cangaço, por maldade minha.
É pela maldade dos outros. Dos homens que não têm a coragem de lutar corpo a corpo como eu e vão matando a gente na sombra, nas tocaias covardes.
Tenho que vingar a morte dos meus paes. Era meninote quando os mataram. Bebi o sangue que jorrava da pelle de minha mãe, e beijando-lhe a boca fria e morta, jurei vinga-la...
É por isso, que de rifle de costas, cruzando as estradas do sertão, deixo um rastro sangrento a procura dos assassinos de meus paes.
(...)
É por isso que eu sou cangaceiro.
Não sei quando hei de deixar os horrores desta vida, onde o maior encanto, a maior belleza seria extinguir a maldade daquelles que roubaram a vida de minha mãe e de meu pae a de minhas irmãs.
Dizendo isto, Lampeão ergueu-se, tomando o chapéo.
Despediu-se do nosso informante.
À porta um seu companheiro o "arreou", isto é, entregou-lhe as cartucheiras e o mosquetão, um fuzil Mouser cortado na extremidade do cano.
Apertando as mãos hospitaleiras de Rosendo, o dono da rustica engenhosa, o monarcha sanguinolento dos sertões tomou a estrada poeirenta para as incertezas do seu destino.
Deante da maravilha da vida de Lampeão cheia de episodios romanescos e impressionantes como aquelle em que ha a scena commovente e soberba do juramento sobre a bocca hirta de uma mãe, quem ousará atirar a primeira pedra sobre o quadrilheiro immortalisado nas chronicas sangrentas do sertão?
Os dados biográficos do mascate sírio-libanês são incertos e confusos. As referências em livros e jornais sobre datas relacionadas à vida de Abrahão são desencontradas. Uma das poucas certezas é a data de sua morte - ele foi assassinado em maio de 1938. Dois meses depois, o bando Lampeão foi massacrado em Angicos. Há diferentes explicações sobre os motivos e a maneira como Abrahão morreu.
Benjamim teria chegado ao Brasil durante a segunda década deste século (há informações também de que isso teria ocorrido em 1908 ou 1916). Nômade por natureza e carregando consigo um equipamento de cinema e fotografia, Abrahão se internou na caatinga, percorrendo o Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, a fim de registrar as imagens de Lampeão.
Antes de sair pelas caatingas filmando e fotografando Virgolino Ferreira, Abrahão foi fotógrafo oficial de Padre Cícero. Chegou a morar na casa do Vigário, de quem ganhou de presente uma máquina fotográfica e uma datilográfica. Foi como secretário de Padre Cícero que Abrahão ganhou popularidade e prestígio na pequena Juazeiro do Norte dos anos 20 e 30.
Benjamim Abrahão é constantemente lembrado no cinema, em filmes sobre o cangaço. Imagens feitas por ele, ou sobre ele, podem ser vistas, por exemplo, em O Baile Perfumado, dos pernambucanos Paulo Caldas e Lírio Ferreira, e em Corisco e Dadá, de Rosemberg Cariry.
A Aba Filme, empresa fotográfica cearense, financiou a aventura de Benjamin Abrahão. No filme com Lampeão, o cangaceiro e seu bando aparecem em atividades bem prosaicas. Uma leitura de jornal, uma "exibição"para a câmara, um "em nome do Padre". Quanto às fotos, desde que a Aba Filme revelou os primeiros negativos, os registros foram se espalhando e se formando de domínio público.
No Sertão do Nordeste, de Sergipe ao Ceará, os anos de 1925 a 1938 marcam o apogeu do cangaço, dos bandos errantes organizados, que não conheciam outra lei senão a de seus próprios chefes. É o tempo de Lampeão, Corisco, Zé Baiano, Volta Seca. Havia lutas entre jagunços (cangaceiros) e macacos( policiais). Roubo de terras, assassinato de parentes, violação de mulheres, abusos de poder obrigam sertanejos a se embrenhar na caatinga e a se juntar a um bando para sobreviver.
Em abril de 1926, o cidadão Virgulino Ferreira da Silva é nomeado capitão, por influência e indicação de Padre Cícero. Lampeão recebeu alguns fuzis e 300 cartuchos para cada um de seus homens. Objetivo: combater a Coluna Prestes, que levava a guerrilha para o interior cearense.
Lampeão só morreria dez anos depois de publicada esta entrevista no O POVO. Ele, Maria Bonita e mais nove companheiros foram mortos numa madrugada de julho de 1938 pelo grupo comandado pelo tenente João Bezerra, da Força Pública Alagoana. Na época, o casal já estava cansado do cangaço. Tinham já uma filha, Maria Expedita, que haviam deixado com amigos no interior de Sergipe. Como se sabe, os onze cangaceiros mortos tiveram suas cabeças expostas nas escadarias da igreja matriz de Santana de Ipanema, cidade próxima. Depois, conduzidas a Maceió e, em seguida, Salvador. Fora-da-lei?
Texto da socióloga Maria Christina Motta Machado: "Os cangaceiros nunca foram entendidos (...) passam por simples criminosos e ladrões quando, na realidade, eram homens que lutavam porque não conheceram a justiça. Fizeram, então, a justiça com as próprias mãos. Eram os fora-da-lei'? Mas onde estava realmente a lei? No bolso dos ricos ou no porrete do coronel?"
É branca, bem parecida, com pele conservada, apesar de viver ao sol. Nasceu na Bahia, município de Sto. Antonio da Gloria, tendo ingressado no grupo quando o mesmo se internou nos sertões bahianos, em 1929, por sua livre e espontânea vontade.
Vive maritalmente com Virgolino, tudo indicando que reina a melhor harmonia entre o casal.
Ela tem no maximo 25 anos, enquanto ele já atingiu 37.
Fotografando o grupo
Depois de alguns dias de contacto com o grupo, o sr. Benjamin Abrahão fotografou e filmou várias vezes, realizando, em parte, os seus objetivos.
As precauções do bandido
Virgolino Ferreira, segundo nos declarou o sr. Benjamin Abrahão, é um camarada desconfiado, qualidade essa que revala a cada momento e a propósito de tudo.
Quando a maquina cinematografica estava preparada para focalizá-lo, pela primeira vez, antes de deixar-se fotografar mandou o bandido que o ex-secretario do Padre Cícero ficasse em seu lugar e passou para a posição do mesmo. Bancou, assim, o operador, apertando com todo o cuidado o botão do aparelho, pois ainda estava pensando tratar-se de alguma arma de guerra, preparada para matá-lo...
Só depois dessa experiência é que o sr. Benjamin poude filmá-lo desembaraçadamente.
Lampeão conhece o Cinema
Lampeão não é um neofito em matéria de cinema, como poderia parecer à primeira vista, pois já teve ocasião de assistir à exibição inteira de uma película cinematográfica, na cidade de Capela, no Estado de Sergipe.
O nosso entrevistado, ao passar por essa localidade, apanhou ótimas fotografias do cinema visitado pelo invencível bandoleiro.
O estilo quase apocalíptico desta "impressionante entrevista com o jaguar bravio do nordeste", Virgulino Ferreira, vulgo Lampeão (1897-1938), denota o mito que o rei do cangaço gozava entre jornalistas e leitores. Um "prazer curioso", no entender do autor do texto a seguir. De fato, a justaposição do caráter de bandido e de herói de Lampeão é um dos aspectos mais instigantes para historiadores e curiosos. Foi sob essa fusão de imagens que esta entrevista acabou publicada, em junho de 1928, simultaneamente com um jornal de Recife chamado "A Noite". A opção de publicá-la juntamente com a entrevista com o mascate Benjamim Abrahão tem um motivo básico: Abrahão foi o único repórter fotográfico a conseguir registros de Lampeão e seu bando. E O POVO, nesse aspecto, foi veículo privilegiado na divulgação das notícias que chegavam do cangaço. No caso de Lampeão, é interessante perceber as revelações do cangaceiro. Na entrevista, ele conta que, se pudesse, abandonaria o cangaço e que mata para vingar a morte de seus pais. "Era meninote quando os mataram. Bebi o sangue que jorrava do peito da minha mãe e, beijando-lhe a boca fria e morta, jurei vingá-la...", diz ele. E ainda afirma: "Gosto dos oficiais e odeio os chefes de polícia". A conversa é curta, mas não se imaginaria diferente, em se tratando de um "selvagem dos sertões". É o suficiente, no entanto, para se ter uma idéia da ascensão do mito e da crueldade do mundo do cangaço.
A palavra de Lampeão, o monarcha selvagem dos sertões
Os dados e as informações sobre que escrevemos esta reportagem foram colhidos do próprio Lampeão pelo sr. José Alves Feitosa, que há semanas, no alto sertão, com elle conversou demoradamente.
Offerecendo à A Noite essas notas interessantíssimas, o sr. Feitosa, offertamo-la, nós, aos nossos gentilíssimos leitores, a quem não queremos mais poupar o prazer curioso de sentir um bocado da psychologia pittoresca e da vida romanesca do jaguar terrivel dos sertões.
NO PÉ DA SERRA
Cabia o crepusculo sobre o escampado arido e esbrazeado daquelle recanto sertanejo do Estado do Ceará, no pé da serra do Araripe: o engenho de rapadura Boa-Vista, a cinco léguas da cidade de Missão Velha, quando o sr. José Alves Feitosa ali chegou.
Um crepusculo doloroso, sertanejo, manchando a paisagem de sombras e difundindo uma melancolia por tudo...
Gentis e acolhedores, os senhores de engenho o receberam, prodigalisando-lhe o conforto de uma hospedagem, onde elle repousaria da viagem exaustiva.
Ahi, foi que se aproximou de Lampeão.
Este assomara à porta, desarmado, fitando o recem-chegado, que o interpellou logo:
- É o capitão Virgulino Ferreira?
- Às suas ordens.
- Já o conhecia através de photographias.
- Ah? Foram esses retratos, de que o sr. fala, que me inutilisaram. Si não tivesse deixado phopographar-me, seria desconhecido e já poderia ter desaparecido, sumindo-me no mundo, indo para longe, ganhar a vida tranquilamente, sem attribulação dessa angustia constante de ser perseguido.
- E o sr. é perseguido? Dizem na capital que a polícia...
- ... não persegue, porque sou amigo dos officiais. É verdade, mas, ainda assim, as trahições, o sr. comprehende.
No anno passado, Isaias Arruda, meu grande amigo, chefe politico cearense, surpreendeu-me numa localidade deste Estado com um cerco policial terrivel, de que me livrei não sei como.
Estas cousas são que magoam...
Uma trahição, o diabo!
Gosto dos officiaes e odeio os chefes de policia.
Não é verdade que eu haja emboscado, para matar ao dr. Eurico Souza Leão. Ignorava que esse chefe de policia viajava, naquelle tempo, pelo sertão...
Se soubesse, com franqueza, eu teria aventurado...
- Como foi assassinado seu irmão?
- É invenção. Elle não foi morto. Está são, vivo e bolindo.
Aquillo foi brincadeira "só para atrapalhar"...
- E Sabino?
- A mesma coisa.
Está vivo, no Riacho do Navio, à frente de alguns homens. Vou encontrar-me, agora, com elle.
- Disse-me, ha pouco, que se pudesse abandonaria o cangaço...
- Sim. Por porque eu não vivo a vida do cangaço, por maldade minha.
É pela maldade dos outros. Dos homens que não têm a coragem de lutar corpo a corpo como eu e vão matando a gente na sombra, nas tocaias covardes.
Tenho que vingar a morte dos meus paes. Era meninote quando os mataram. Bebi o sangue que jorrava da pelle de minha mãe, e beijando-lhe a boca fria e morta, jurei vinga-la...
É por isso, que de rifle de costas, cruzando as estradas do sertão, deixo um rastro sangrento a procura dos assassinos de meus paes.
(...)
É por isso que eu sou cangaceiro.
Não sei quando hei de deixar os horrores desta vida, onde o maior encanto, a maior belleza seria extinguir a maldade daquelles que roubaram a vida de minha mãe e de meu pae a de minhas irmãs.
Dizendo isto, Lampeão ergueu-se, tomando o chapéo.
Despediu-se do nosso informante.
À porta um seu companheiro o "arreou", isto é, entregou-lhe as cartucheiras e o mosquetão, um fuzil Mouser cortado na extremidade do cano.
Apertando as mãos hospitaleiras de Rosendo, o dono da rustica engenhosa, o monarcha sanguinolento dos sertões tomou a estrada poeirenta para as incertezas do seu destino.
Deante da maravilha da vida de Lampeão cheia de episodios romanescos e impressionantes como aquelle em que ha a scena commovente e soberba do juramento sobre a bocca hirta de uma mãe, quem ousará atirar a primeira pedra sobre o quadrilheiro immortalisado nas chronicas sangrentas do sertão?
A vida...
Biografia incerta
Os dados biográficos do mascate sírio-libanês são incertos e confusos. As referências em livros e jornais sobre datas relacionadas à vida de Abrahão são desencontradas. Uma das poucas certezas é a data de sua morte - ele foi assassinado em maio de 1938. Dois meses depois, o bando Lampeão foi massacrado em Angicos. Há diferentes explicações sobre os motivos e a maneira como Abrahão morreu.
No Brasil
Benjamim teria chegado ao Brasil durante a segunda década deste século (há informações também de que isso teria ocorrido em 1908 ou 1916). Nômade por natureza e carregando consigo um equipamento de cinema e fotografia, Abrahão se internou na caatinga, percorrendo o Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, a fim de registrar as imagens de Lampeão.
Com Padre Cícero
Antes de sair pelas caatingas filmando e fotografando Virgolino Ferreira, Abrahão foi fotógrafo oficial de Padre Cícero. Chegou a morar na casa do Vigário, de quem ganhou de presente uma máquina fotográfica e uma datilográfica. Foi como secretário de Padre Cícero que Abrahão ganhou popularidade e prestígio na pequena Juazeiro do Norte dos anos 20 e 30.
No cinema
Benjamim Abrahão é constantemente lembrado no cinema, em filmes sobre o cangaço. Imagens feitas por ele, ou sobre ele, podem ser vistas, por exemplo, em O Baile Perfumado, dos pernambucanos Paulo Caldas e Lírio Ferreira, e em Corisco e Dadá, de Rosemberg Cariry.
A Aba Filme, empresa fotográfica cearense, financiou a aventura de Benjamin Abrahão. No filme com Lampeão, o cangaceiro e seu bando aparecem em atividades bem prosaicas. Uma leitura de jornal, uma "exibição"para a câmara, um "em nome do Padre". Quanto às fotos, desde que a Aba Filme revelou os primeiros negativos, os registros foram se espalhando e se formando de domínio público.
Cangaço
No Sertão do Nordeste, de Sergipe ao Ceará, os anos de 1925 a 1938 marcam o apogeu do cangaço, dos bandos errantes organizados, que não conheciam outra lei senão a de seus próprios chefes. É o tempo de Lampeão, Corisco, Zé Baiano, Volta Seca. Havia lutas entre jagunços (cangaceiros) e macacos( policiais). Roubo de terras, assassinato de parentes, violação de mulheres, abusos de poder obrigam sertanejos a se embrenhar na caatinga e a se juntar a um bando para sobreviver.
Contra Prestes
Em abril de 1926, o cidadão Virgulino Ferreira da Silva é nomeado capitão, por influência e indicação de Padre Cícero. Lampeão recebeu alguns fuzis e 300 cartuchos para cada um de seus homens. Objetivo: combater a Coluna Prestes, que levava a guerrilha para o interior cearense.
Cabeças cortadas
Lampeão só morreria dez anos depois de publicada esta entrevista no O POVO. Ele, Maria Bonita e mais nove companheiros foram mortos numa madrugada de julho de 1938 pelo grupo comandado pelo tenente João Bezerra, da Força Pública Alagoana. Na época, o casal já estava cansado do cangaço. Tinham já uma filha, Maria Expedita, que haviam deixado com amigos no interior de Sergipe. Como se sabe, os onze cangaceiros mortos tiveram suas cabeças expostas nas escadarias da igreja matriz de Santana de Ipanema, cidade próxima. Depois, conduzidas a Maceió e, em seguida, Salvador. Fora-da-lei?
Texto da socióloga Maria Christina Motta Machado: "Os cangaceiros nunca foram entendidos (...) passam por simples criminosos e ladrões quando, na realidade, eram homens que lutavam porque não conheceram a justiça. Fizeram, então, a justiça com as próprias mãos. Eram os fora-da-lei'? Mas onde estava realmente a lei? No bolso dos ricos ou no porrete do coronel?"
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