Baile Perfumado Revisita Lampião Parte 1 Por: Veronica Daniel Kobs

Verônica Daniel Kobs

Em 1997, veio a público o filme Baile perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. A produção foi a grande vencedora do Festival de Cinema de Brasília, conquistando, inclusive, o prêmio de melhor filme. A história contada não é a de Lampião, mas a de Benjamin Abrahão Botto, libanês que se naturalizou brasileiro, depois de mudar-se definitivamente para cá, para fugir da convocação para lutar na Primeira Guerra Mundial. No entanto, na trajetória desse personagem, havia vários pontos que o relacionavam a Lampião e a seu bando, além de constituírem um rico material para um roteiro cinematográfico. A escolha do personagem central do filme é particularmente interessante e acertada, porque sai do lugar comum, já que o roteiro propõe muito mais do que outro filme sobre o rei do cangaço, e porque, dessa forma, multiplica os tópicos que vão se cruzando, para consolidar a importância do filme. Muitas coisas são trazidas à tona, em Baile perfumado. O resgate do cangaço é apenas um viés que resulta em mais uma das muitas leituras que existem desse movimento polêmico, que ganhou fama internacional e dominou o Norte e o Nordeste do país, por mais de um século. A vantagem é que, dentro do filme, e, portanto, associado a diversos fatores que tinham de ser citados, para contar parte da vida de Benjamin Abrahão, o cangaço é analisado sob outra perspectiva.

O fotógrafo sírio-libanês-brasileiro relacionava-se a pessoas que também eram importantes para Lampião e seu bando, embora de modos diferentes. Então, vejamos. O primeiro ponto de contato entre os dois é padre Cícero, de quem Abrahão foi secretário. Foi por intermédio do padre que ele conheceu Lampião, em 1926, em Juazeiro do Norte. A segunda pessoa importante para o fotógrafo e para o cangaceiro é Ademar Bezerra de Albuquerque, dono da ABAFILM e quem cede os equipamentos de foto e filmagem para que Benjamin documente as atividades do bando de Lampião. Não há registro de que Lampião tenha conhecido Ademar, mas a cessão dos equipamentos a Abrahão atendia também a um desejo do rei do cangaço, de ser fotografado, por pura vaidade, e, evidentemente, para usar as imagens em favor de uma maior repercussão à sua causa.

Ambos já tinham a Igreja e, de certo modo, a imprensa como aliadas. A palavra de padre Cícero era lei, em toda a região, e Ademar cedia filmes e
imagens aos principais jornais do Estado. Faltava contar com a proteção de uma autoridade oficial, papel que coube ao Coronel João Libório. Representante do poder oficial, mas, ao mesmo tempo, exemplo de corrupção, o coronel teve fundamental participação, no acordo firmado entre Lampião e Abrahão e, depois, entre Abrahão e Ademar. Graças à influência do Coronel Libório, o fotógrafo conseguiu: acesso livre ao bando de Lampião; proteção política, para evitar represálias, depois da veiculação das imagens dos cangaceiros na imprensa; e vida longa ao rei do cangaço, já que, enquanto todos continuassem lucrando, com o esquema que tinha sido meticulosamente armado, não havia razão para que Lampião fosse morto ou capturado. Em Bandoleiros das catingas, Melchiades da Rocha comenta a permanência dos cangaceiros em Angicos: “Era notório que Lampião e seu bando ali viveram para mais de cinco anos, sem que os molestassem.” (ROCHA, 1988, p. 70). 

A citação ajuda a comprovar a reciprocidade entre as autoridades e o cangaço, mas essa relação é afetada, a partir do momento em que Lampião aumenta o seu poder de ameaça à polícia. Como era de se imaginar, as imagens do bando liderado por ele caem como uma bomba sobre governantes, militares e policiais e começa a pressão política sobre Libório, Ademar e Abrahão. Obviamente, com isso, Lampião também fica em desvantagem, porque Libório tem o controle da situação. Bastaria uma ordem dele para a festa acabar, o que de fato acontece, no final da história. Lampião era um bandido procurado pela polícia e, com suas fotos publicadas, em jornais de renome, um questionamento foi inevitável: como Abrahão tinha acesso ao bando e as volantes não? Não demorou muito e a repressão deu o ar da graça. Todo o material iconográfico produzido por Benjamin Abrahão foi apreendido e ele foi acusado de estar agindo “contra o regime”. 


Com a interferência do Governo, ainda mais que a época era de ditadura, a proteção e os favores cessam e dão lugar à atitude que se esperava dos representantes da lei. O coronel Libório recusa-se a usar sua influência, para liberar o material apreendido, permite que o tenente Lindalvo Rosa continue sua caçada a Lampião e seu bando e torna-se suspeito da morte de Benjamin Abrahão, assassinado com 42 facadas, em circunstâncias que até hoje não foram bem explicadas. Aliás, como a participação de Lindalvo Rosa está totalmente atrelada ao personagem do coronel, o tenente é mais uma peça-chave, no jogo de poder armado por Libório, Ademar e Abrahão, mas que acaba por ganhar uma dimensão muito maior do que a esperada, porque, através das imagens e dos filmes, que mostram Lampião e seus seguidores, detona-se a guerra entre o poder oficial e o poder paralelo.

Além de contar com a proteção de Libório, com a ajuda de Ademar e Abrahão, para difundir sua causa, e com a influência de padre Cícero, o rei do cangaço ia ganhando cada vez mais aliados. Aqueles que tinham suas vidas poupadas pelo líder do bando, por influência de Maria Bonita, ou não, assumiam uma dívida de gratidão. Porém, em outras vezes, os aliados eram conquistados, em troca da garantia de sobrevivência aos ataques frequentes dos cangaceiros. Independente do motivo, o fato é que Lampião tinha boas relações com promotores de justiça e políticos importantes da região. O mais famoso deles foi o coronel Rezende, prefeito de Pão de Açúcar, que, depois de emprestar dinheiro ao líder dos cangaceiros, passou a fornecer ao bando bebidas, charutos e objetos de uso doméstico. Em troca de todos esses favores, Rezende, além de saber-se seguro, conseguiu interferir várias vezes, para salvar pessoas capturadas, nos saques e nas invasões do grupo à cidade, e quase fechou um acordo entre o bandido mais procurado do sertão e os Governos da Bahia e de Pernambuco.


Essa penetração de Lampião, nas esferas oficiais do poder, irritava seus inimigos políticos. Era como se o cerco se fechasse e as autoridades se sentissem mais ameaçadas e vulneráveis à ousadia do cangaço. No filme Baile perfumado, há uma cena em que Virgulino afirma a Abrahão que é o
“governador do sertão” e que não tem outra saída, a não ser a de esgoelar aqueles que lhe desobedecerem. De acordo com a História, o rei do cangaço não apenas se auto-intitulava governador, mas visava a esse cargo. Certa vez, chegou mesmo a escrever uma carta, enviada, depois, por um homem que tinha sido refém do bando, por vários dias, ao Dr. Júlio de Melo, Governador interino. No texto, Lampião fazia a seguinte proposta: ele governaria o Estado até Rio Branco e “a autoridade legal governaria de Rio Branco ao Recife”. (ROCHA, 1988, p. 100). O acordo não foi realizado, mas o fato comprova, mais uma vez, o fácil acesso de Lampião às autoridades e a pretensão do líder do cangaço de sair da marginalidade e oficializar seu poder.

Claro que, para alcançar esse objetivo, permitir que Benjamin Abrahão filmasse e fotografasse sua atividade e a do bando pareceu uma excelente estratégia. Em troca da notoriedade e da repercussão que ganharia, Lampião deu ao fotógrafo total exclusividade, o que fez Abrahão ter seu trabalho disputado pela imprensa da época e ser o responsável por um rico acervo histórico do cangaço. O gosto e o interesse de Lampião pelas imagens são mencionados, em diversos textos históricos, razão pela qual essa característica é extremamente bem aproveitada, no filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. De início, aparece apenas um fascínio pelo cinema, na parte em que Virgulino e Maria vão de barco à cidade, para assistir ao filme A filha do advogado. Isso vem logo depois de Ademar dizer a Abrahão que cederá os equipamentos pedidos por ele e de sublinhar o gosto “da gente de lá” por retratos. Mais tarde, quando Abrahão já está infiltrado no bando, fica claro que o trabalho dele, além de ir ao encontro da vaidade e da fixação do cangaceiro pelas imagens, é visto como um instrumento de peso, na defesa da causa de Lampião. Dinheiro, fama e popularidade interessavam ao chefe do cangaço. 

poder das imagens era tanto que fotos e filmagens passaram a ser utilizadas como moeda corrente. O coronel Libório só avalizou o projeto de Abrahão, em troca de que o libanês filmasse uma vaquejada. O tenente Lindalvo Rosa trocava favores por retratos e pessoas influentes na região posavam para um retrato de família e depois pagavam o preço, oferecendo seus préstimos a Abrahão e ao bando de Lampião, indiretamente. Em meio aos cangaceiros, cada sessão de foto ou de filmagem era uma festa. A cena em que o rei do cangaço concorda em protagonizar seu primeiro filme, mas, antes, resolve conhecer de perto os equipamentos e o processo da filmagem, acentua a fixação de Virgulino pelas máquinas que produziam imagens e também delineia o caráter metalinguístico do filme. A partir do momento em que Abrahão ensina os truques e segredos das artes do cinema e da fotografia ao seu ilustre colaborador, o filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira promove uma ampla reflexão sobre os limites entre realidade e ficção e os conceitos de representação e documentário. Já de início, as filmagens chamam atenção por dois aspectos: a encenação e a revelação do outro lado da vida no cangaço. Os membros do bando são flagrados em atividades que, para eles, até poderiam ser corriqueiras, mas o fato é que elas surpreendem, apenas por mostrarem ao espectador o óbvio, afinal, a rotina dos cangaceiros não se resumia a assassinatos, saques e tiroteios.

No entanto, era impossível não notar que, apesar de registrar um cotidiano absolutamente comum e avesso ao aspecto lendário e sanguinário dos cangaceiros, as cenas eram excessivamente planejadas. Tudo era cuidadosamente premeditado e ensaiado. Todos posavam, diante da câmera. Naturalidade e artificialidade se confundem, mas esse confronto só é aberto ao público pela presença da metalinguagem no filme: Flagra-se a ficção, o faz de conta que é o cinema — o ato de filmar, até agora invisível torna-se presente e a trama passa a conter outra dimensão — a metalinguagem. Temse um filme dentro de outro filme. O limite entre a ficção e o documentário é colocado em questão, a linha que
separa o real de sua representação se torna tênue.(YAKHNI, 2009, p. 7).


O resultado das cenas que dão início à relação entre ficção e documentário, como a do grupo rezando ou a de Lampião lendo, é controvertido, pois, pensando no filme de Benjamin Abrahão como produto final, a impressão que se tem é a de que havia um homem comum, como outro qualquer, por trás do mito, mas essa conclusão logo cai por terra, depois de se considerar o processo inteiro de filmagem, no qual se destacam a marcação das cenas, o posicionamento dos atores, a escolha do cenário, etc. Porém, a escolha de focalizar o lado humano do cangaceiro foi premeditada. Além disso, pensando que Lampião permitia a realização de fotos e imagens, pensando na autopromoção, nada que ele não aprovasse de antemão seria publicado. Isso atesta a construção por trás das imagens e o poder de quem as produz e de quem se utiliza delas. 

Detendo-se sobre o período em que Abrahão se dedicou ao registro de imagens do bando de Lampião, Baile perfumado coloca em pauta o gênero
documentário. Boa parte do público entende o documentário como apreensão da realidade, como se fosse possível reproduzi-la com fidelidade. No entanto, é preciso levar em conta que, mesmo se atendo a preocupações diferentes daquelas que regem um filme de ficção, há a representação. O filme é um filtro e, assim como qualquer outra expressão artística que busca captar o universo real, ou parte dele, implica seleção e organização próprias. Logo, o processo acaba por construir uma espécie de duplo da realidade, porque o olhar do artista orienta e define a representação e, por consequência, também o olhar do espectador. 

Somadas a isso, as considerações feitas, no parágrafo anterior, remetem a algumas observações importantes que Ana Cristina Cesar enfatiza em Literatura não é documento. Com esse livro, a autora contribuiu para a elucidação do gênero documentário, elencando e descrevendo filmes que, quando a opção do diretor é contar a história de uma pessoa famosa, o caminho escolhido é a apresentação do homem comum, para começar uma espécie de desconstrução do mito. É exatamente isso que é posto em relevo em Baile perfumado, com a inclusão de partes dos filmes feitos por Benjamin Abrahão. 

Paulo Caldas

O resultado provocado pelos filmes que adotam essa ótica é a quebra da expectativa do público, que é obrigado a ver o personagem de outra maneira, desinvestindo-o da fama e do sucesso, que chegam a fazer com que a pessoa retratada no filme seja, muitas vezes, considerada sobre-humana, divina. Interessante também é perceber que, ao mesmo tempo em que esse tipo de filme inaugura um modo de ver o personagem, colabora para a revisão do gênero documentário. A mudança é fácil de ser entendida, afinal, apresentando um lado mais humano do personagem, corrige-se a deformação que a fama impõe e, dessa forma, alcança-se um maior efeito de realidade. Na esteira desse raciocínio, Paulo Caldas e Lírio Ferreira apresentam a história de Benjamin Abrahão e aproveitam para revisitar a História de Lampião, propondo uma releitura do mito. 

Continua...

Verônica Daniel Kobs

Doutora em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2009); Mestre em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2000); Licenciada em Letras Português-Latim pela Universidade Federal do Paraná (1997); Professora do Curso de Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade; Coordenadora do Curso de Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade; Professora do Curso de Graduação de Letras da FACEL; Consultora e língua portuguesa e linguagens da RPC TV e da Ó TV; Membro de grupos de pesquisa credenciados junto ao CNPq; Autora de diversos artigos sobre Literatura e Estudos Interartes; Autora de livros didáticos de Língua Portuguesa publicados pela editora Iesde Brasil S. A.; Atualmente, está desenvolvendo trabalhos que abrangem as áreas de Literatura, Cinema e Pintura, enfocando as relações entre palavra e imagem e as questões de identidade e alteridade.

Fonte:http://www.todasasmusas.org/03Veronica_Daniel.pdf

Um comentário:

sara saraiva disse...

Maravilha!