Durante toda a minha infância passei as férias escolares na fazenda de meu querido e saudoso avô materno, o Sr. Aurelino “Toquinho” Avelino de Carvalho, na divisa BA/MG. Ouvia extasiado as estórias que ele, os amigos dele e os agregados da fazenda contavam. Inclusive as maravilhosas estórias das noites em que “seu” Anísio (um bisneto de escravos) ia à sede da fazenda contar. Ainda sinto o cheiro saboroso do café fresco no fogão a lenha (acompanhado de certa dose de fumaça é claro), ouvindo com os olhos esbugalhados de menino curioso mais uma história de assombração (as macabras estórias sobre as “visagens da estrada”, dos defuntos que vinham dar botijas de ouro, sobre os espectros dos pistoleiros arrependidos ou não, e das suas vítimas chorosas ou furiosas, dos lobisomens, mulas-sem-cabeça,caiporas & cia.) e de depois ir dormir quase se borrando de medo, se “ribuçando” (cobrindo) da cabeça aos pés, enquanto ouvia os ruídos da natureza e das criaturas da noite, iluminando as trevas do quarto com a luz bruxuleante do candeeiro a querosene (objeto hoje quase em extinção)... Estórias coloridas de tempos passados, da época que os bichos falavam, das aventuras de Pedro Malasarte (um personagem de histórias folclóricas populares que era um renomado e sagaz picareta, que sempre se dava bem), de caçadas memoráveis, e é óbvio que também estórias dos tempos dos coronéis, jagunços e pistoleiros, tanto os de Minas como os da Bahia (dos quais falarei com mais detalhes por ser meu estado natal).
Estórias cheias de violência, de folclore e misticismo como o “corpo fechado”, dos pactos com o demônio para obter riqueza, das vinganças cruéis, das tocaias, dos casarões mal assombrados e cheios de projéteis incrustados nas paredes de quase 1 m de largura feitas com tijolos de “adobão” cozido. Lembro-me de fragmentos das histórias contadas sobre o Coronel Marcionílio Antônio de Souza, que foi compadre de meu bisavô Teófilo Carvalho (fazendeiro na região de Maracás/Ba), como por exemplo, as que diziam que quando Marcionílio ia visitar meu bisavô, seus capangas ficavam na porteira da fazenda, e quando entravam na propriedade “tinham de abaixar as carabinas” em sinal de respeito. Ou uma que é de uma malvadeza que poderia ser imputada a qualquer um deles: o coronel recebeu um recado na sua fazenda. Convidou o mensageiro a ficar para o almoço, e no meio deste, notou que enquanto todos comiam (naquelas mesas antigas e maravilhosas, feitas com imensa pranchas de madeira sem emendas de 3/4 m) o convidado não parava de olhar pra os lados e procurar alguma coisa. A um gesto do “home” todos pararam de comer (além da família, uma pá de jagunços estava numa sala contígua).
- Tá lhe faltando alguma coisa?A comida não está boa?
-- Ah seu Coronel , tá tudo
muito bom mas falta o “mió"...
-- “De maneiras” que, o que
seria o “mió” pro senhô?-
- Ah seu Coronel, era bom uma pimentinha...
Coronel Marcionílio Antônio de Souza,
foto : tabernadahistoriavc.com.br
O “homem” calmamente mandou retirar a mesa inteira, e mandou trazer uma gamela
de jabá bem salgado, um litro de farinha e um de pimenta bem vermelha e
curtida!!! - Pode comer agora sua pimenta a vontade!!O Infeliz ainda
tentou abrir a boca para argumentar, mas dois jagunços se chegaram para perto
engatilhando as suas carabinas papo-amarelo 44. O camarada comeu o jabá
entupido de sal, com bastante pimenta e farinha, e quando já estava revirando
os olhos, o coronel mandou parar.
- Isso é pra o sinhô não ser mal-educado e não exigir nada
na casa dos outros quando é convidado. Suma de minha frente enquanto
pode!
Diz o povo que o camarada saiu voando ladeira abaixo, chegou ao açude no pé
da ladeira, abaixou a cabeça e bebeu como um boi. Dizem que morreu algum
tempo depois com os intestinos cortados pelo sal... Ou as histórias
do Cel. Clemente da Vazante que tinha a seu serviço mais de 100 homens, que
moravam em casinhas espalhadas numa serra, e quando era necessário reunir toda
a “tropa” era usado um búzio marinho de grandes proporções soprado a guisa de
trompa. Eu mesmo cheguei a conhecer um Coronel, ele já estava no fim da
vida, enfermo numa cama, a barba absolutamente grisalha lhe descia até o peito,
lhe dando aparência de “santo”, prometeu a mim e ao meu irmão uma “repetição de
papo amarelo” (carabina Winchester 1873), das muitas que devia ter tido...
Embora naquela altura, das centenas de alqueires que ele possuíra, só restava
mesmo a outrora majestosa fazenda que possuía ainda as 4 casas, e uma “venda”
(armazém onde os empregados certamente se endividavam) reunidas em torno de uma
praça central. Curioso citar que uma destas casas estava vazia e diziam que era
mal-assombrada, se escutando a noite gritos, gemidos, e disparos de armas de
fogo. Ela possuía um porão aterrado (me disseram que era um arsenal, será?)
Contava o velho Cel. Horácio Machado em suas lembranças que viu nos bons tempos
os “turcos” passar com as bruacas (bolsas de couro cru para levar cargas em
lombo de burro) cheias de pedras preciosas retiradas dos garimpos das velhas
Minas Gerais.
Reminiscências de menino a parte, historicamente o período
do coronelismo se inicia no Brasil no século XIX ainda no período do império
com a criação da Guarda Nacional em 1831, prosseguindo no período da república
velha (1889 – 1930), perdendo força depois da revolução de 1930. Sua principal
função seria a manutenção da ordem pública, contando para isso com
(teoricamente) frações de tropa em cada município. O coronelismo se constituía
em ricos fazendeiros, ou políticos influentes que compravam ou recebiam o
título da mão do governo (a carta-patente da Guarda Nacional), ao qual eram dados
diversos privilégios e status social, sendo que em certa época a sociedade
civil se encheu de capitães, majores e coronéis, como no império foi cheia de
marqueses, condes, e barões falidos.
Como nota meritória deve-se destacar que os batalhões da Guarda também participaram da Guerra do Paraguai. O “Batalhão Patriótico Lavras Diamantinas” comandado por Horácio de Matos de Lençóis, ainda participou em 1926 dos episódios da caça aos “revoltosos” da Coluna Prestes na região. Havia também os coronéis com título sem valor militar de fato. Por fim depois da extinção da Guarda nacional logo após a proclamação da República, “coronel” passou a ser sinônimo de qualquer fazendeiro rico. Os coronéis rurais (e depois os urbanos, estes geralmente capitães de indústria) são uma verdadeira lenda social brasileira, e embora se associe imediatamente sua imagem com o nordeste brasileiro, se espalharam de norte a sul do Brasil (é só se lembrar da política do café com leite, dos coronéis paulistas e mineiros que dominaram a política nacional por anos). Eram latifundiários, oligarcas, patriarcais, violentos e arrogantes. Pode-se dizer que a sede da fazenda, o tradicional casarão com 6 a 8 janelas frontais (diziam que a quantidade de janelas indicava a riqueza do dono) com até 2 pavimentos, sótão (por vezes com janelas para atiradores) e porões, substituía a casa grande do engenho, pois tinha a mesma função opressora.
Pode-se dizer, guardadas as devidas proporções,
que continuavam com a mesma função do donatário da capitania hereditária no
período colonial: auxiliavam, substituíam e faziam as vezes do poder central,
que era fraco e vacilante, na administração regional e na manutenção da lei e
da ordem vigente em seus domínios. A riqueza e a opulência da extensão de
terras era conseguida, via de regra, pela grilagem de mais terras ou por
herança; haviam coronéis que eram “ex-pobres” mas era raríssimo, pois era uma
época de pouca mobilidade social, a maioria mesmo já era de família rica ou
tradicional As esposas dos coronéis eram outro capítulo a parte. Ora eram
submissas (a maioria), ora arrogantes, vingativas e algumas quase tão violentas
quanto os esposos, verdadeiros “coronéis de saia”. Conheço inclusive o caso de
uma delas que mandou aplicar um “clister” (lavagem intestinal, que antigamente
era feita toscamente com um chifre de boi limpo e polido, com a ponta serrada
que servia de funil) a base de pimenta malagueta numa das raparigas (amante) do
seu marido.
Algumas inclusive assumiam o lugar do Coronel como chefe do clã político quando este falecia, mas foram poucos casos. Com o tempo a elite agrária começou a se refinar e enviar seus filhos a Europa e aos grandes centros para estudar. Assim quando voltavam para a casa paterna os recém formados “Doutores”, engenheiros, médicos e advogados. Criava-se então, desde o fim do Séc. XIX, uma sociedade que endeusava os títulos acadêmicos (herdamos isso ainda hoje), algo compreensível numa época onde cultura era raro, fazer faculdade então era um artigo extraterrestre de tão difícil. As grandes casas rústicas ou não, no meio do sertão, do seringal ou do cafezal, eram repletas de boa louça, tecidos e mobiliário fino, embora nem sempre os proprietários tivessem o necessário refinamento para apreciá-los.
Como nota meritória deve-se destacar que os batalhões da Guarda também participaram da Guerra do Paraguai. O “Batalhão Patriótico Lavras Diamantinas” comandado por Horácio de Matos de Lençóis, ainda participou em 1926 dos episódios da caça aos “revoltosos” da Coluna Prestes na região. Havia também os coronéis com título sem valor militar de fato. Por fim depois da extinção da Guarda nacional logo após a proclamação da República, “coronel” passou a ser sinônimo de qualquer fazendeiro rico. Os coronéis rurais (e depois os urbanos, estes geralmente capitães de indústria) são uma verdadeira lenda social brasileira, e embora se associe imediatamente sua imagem com o nordeste brasileiro, se espalharam de norte a sul do Brasil (é só se lembrar da política do café com leite, dos coronéis paulistas e mineiros que dominaram a política nacional por anos). Eram latifundiários, oligarcas, patriarcais, violentos e arrogantes. Pode-se dizer que a sede da fazenda, o tradicional casarão com 6 a 8 janelas frontais (diziam que a quantidade de janelas indicava a riqueza do dono) com até 2 pavimentos, sótão (por vezes com janelas para atiradores) e porões, substituía a casa grande do engenho, pois tinha a mesma função opressora.
Cel. Horácio de Matos
Algumas inclusive assumiam o lugar do Coronel como chefe do clã político quando este falecia, mas foram poucos casos. Com o tempo a elite agrária começou a se refinar e enviar seus filhos a Europa e aos grandes centros para estudar. Assim quando voltavam para a casa paterna os recém formados “Doutores”, engenheiros, médicos e advogados. Criava-se então, desde o fim do Séc. XIX, uma sociedade que endeusava os títulos acadêmicos (herdamos isso ainda hoje), algo compreensível numa época onde cultura era raro, fazer faculdade então era um artigo extraterrestre de tão difícil. As grandes casas rústicas ou não, no meio do sertão, do seringal ou do cafezal, eram repletas de boa louça, tecidos e mobiliário fino, embora nem sempre os proprietários tivessem o necessário refinamento para apreciá-los.
Os coronéis entraram no imaginário popular como os fazendeiros que se constituíam na riqueza e na força política que como um rolo compressor implacável decidia o destino das eleições e do governo do país. Soberanos em seus currais eleitorais obrigavam os seus empregados e agregados pela coação a fazer o infame e famoso voto de cabresto (voto forçado no candidato do patrão, chegando os coronéis a reter os títulos dos empregados). Ainda haviam as devidas manipulações, associações, fraudes (como a falsificação de documentos de eleitores para permitir o voto de menores, a repetição do voto ou pessoas votarem com nome trocado, o voto “fantasma” - onde o falecido “votava” lá do além, a falsificação de documentos eleitorais públicos, etc.), conchavos políticos, trocas de favores, compra de votos, ou simplesmente pela força das amas, com sedições, golpes violentos, além dos já tradicionais homicídios dos rivais, como diz esta anedota em que o coronel manda chamar o jagunço e diz:
- Você conhece o fulano de tal?
- Conheço não Coroné, mas já tá me dando uma raiva danada desse cabra.
- Deixe de bobagem home, é só pra mandar um recado!
A sua ousadia era tanta que mais de uma vez aconteceram embates contra o
governo e seus representantes, como no caso sedição de Juazeiro/CE em 1914, a
crise foi provocada pela intenção do interventor nomeado pelo Pres. Hermes da
Fonseca, Marcos Franco Rabelo, de destituir e prender o famoso padre Cícero
Romão Batista – que muitos consideram um “coronel sem farda” - dos cargos
políticos que ocupava.
Hermes da Fonseca
O deputado federal Floro Bartolomeu a frente de um
batalhão de jagunços auxiliados pelos romeiros que movidos por intensa fé no “Padim
Ciço”, interviram na contenda batendo as tropas governamentais, que apesar de
usar um canhão, foram rechaçadas. Depois disso os revoltosos seguem para a
capital cearense e depoem o interventor Franco Rabelo, contando inclusive com
auxílio de uma esquadra da Marinha de Guerra do Brasil, pois Floro Bartolomeu
conseguira apoio federal. A cidade de Princesa na Paraíba rebelou-se em
fevereiro de 1930, no episódio conhecido como a “Revolta de Princesa”.
Fábio Costa
Cortesia: Ivanildo Silveira; Conselheiro Cariri Cangaço
Parte de Postagem em:
2 comentários:
EXCELENTE ARTIGO, QUE TRAÇA A FORÇA DO CORONELISMO NA HISTÓRIA BRASILEIRA, SUAS ARMAS, E SUA DERROCADA..
PARABÉNS AO AUTOR, O DR. FÁBIO CARVALHO PELO EXCELENTE ARTIGO..
ABRAÇO A TODOS
IVANILDO SILVEIRA
Conselheiro do Cariri-cangaço
Colecionador do cangaço
NATAL - RN
Dr. Ivanildo Alves Silveira:
Nunca mais consegui acessar o seu site.
Postar um comentário