Convido-lhes a empreender, comigo, uma ousadia. Para tanto precisamos recordar o que sabemos acerca do feudalismo, esse nicho histórico que começou com a queda de Roma – gosto de imaginar a cena de Hipona, da qual Santo Agostinho era bispo, incendiada pelos bárbaros enquanto ele agonizava, como sendo o verdadeiro marco inicial – e terminou com o início da idade moderna, mais precisamente, segundo vários historiadores, com a descoberta da América por Cristovão Colombo e o início do absolutismo, cujo primeiro momento, e ninguém há de me convencer do contrário, ocorreu quando Felipe, o Belo, criou seu próprio papa, o de Avignon, e dizimou os templários, fortalecendo a instituição do Estado.
O feudalismo – sabemos todos – calcava-se na propriedade da terra e na rígida divisão da Sociedade em nobres, clero e servos das glebas. Os nobres e o clero eram aliados, claro, para espoliar o povo.
O epicentro dessa estrutura de poder era o Barão feudal, latifundiário, em cujo entorno gravitavam seus vassalos, ou seja, proprietários de terra de menor importância, e a nobreza eclesiástica. A ele pertencia o direito de aplicar o baraço e o cutelo – ou seja, de criar, interpretar e aplicar as leis ou costumes. Sua vontade era lei.
A igreja exercia papel fundamental nesse sistema, por vários motivos: em primeiro lugar era detentora de muitas riquezas; em segundo lugar sua nobreza era formada pelos filhos segundos dos senhores feudais – os primeiros seguiam o caminho das armas; e, em terceiro, a ela cabia a formatação ideológica que assegurava o domínio da nobreza e do clero, bem como a fiscalização de possíveis desvios – instrumentalizada por intermédio da confissão e delação – bem como a punição dos recalcitrantes via inquisição.
Brigavam muito entre si, os nobres, disputando terra e prestígio político. Quem tinha terra, tinha Poder; quem tinha Poder, tinha terra. Por exemplo: a primeira cruzada não foi à Terra Santa, como comumente se crê. Foi contra os Cátaros, uma heresia que ameaçava dominar todo o Sul da França, sob o beneplácito do Conde de Toulouse.
Contra os Cátaros levantou-se a Igreja, ameaçada em sua soberania ideológica, e os barões feudais do norte da França, liderados por São Luis, ou Luís XI, como queiram. Na verdade o pano de fundo dessa cruzada foi a disputa pelas ricas terras do sul da França. Nada mais. Para essas brigas mobilizavam os nobres seus vassalos, seus servos, bem como exércitos de mercenários. À toda mobilização acompanhava a Igreja, abençoando ou punindo, conforme o caso. Pois bem, embora ainda haja muito o que se dizer acerca do feudalismo, façamos uma parada estratégica e utilizemos o “desenho” – chamemo-lo assim – de sua estrutura de poder para analisar o nicho histórico brasileiro ao qual denominamos de coronelismo.
Há alguns, para não dizer vários, autores que dizem não ter havido feudalismo no Brasil. Eu, pelo meu lado, com fulcro em Raymundo Faoro, Gustavo Barroso e Câmara Cascudo, penso que tal não procede.
Analisemos. O coronelismo também se calcou na posse da terra e no prestígio político. O coronel – verdadeiro senhor feudal – era o epicentro de uma estrutura de poder. Também ele tinha, enquanto senhor feudal, seus vassalos, os proprietários menores de terra, a si ligados por laços de compadrio e interesses mútuos, que lhe prestava vassalagem.
O coronelismo dependia, ideologicamente, da igreja, que tratava de fiscalizar e punir desvios da ortodoxia, como o demonstra tudo quanto ocorreu com Padre Cícero. E dependia da confissão e delação, principal forma de obtenção de informação por parte da igreja, e sempre à disposição, seus resultados, do coronel que a mantinha.
Quem não lembra da estreita relação do Coronel com o Padre, em o Alto da Compadecida, de Ariano Suassuna? O coronel tinha os seus servos da gleba, empregados que viviam às custas dos sobejos do grão-senhor. E da mesma forma que no feudalismo, a vontade do Coronel era lei. Ele era senhor de baraço e de cutelo.
Claro, brigavam entre si disputando terra e prestígio, briga essa que arrebanhava vassalos – os compadres; servos da gleba, os jagunços; e mercenários, os cangaceiros, como nos demonstra a rica história do Cariri cearense. Agora talvez os senhores estejam se perguntando: e qual a relação entre tudo isso e Chico Pereira?
A relação é a seguinte: Chico Pereira, assim como Jesuíno Brilhante, o mais remoto, passando por Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião, Corisco, e outros menores, tal qual Cassimiro Honório, e por aí segue, não eram servos da gleba. Eram proprietários rurais em maior ou menor escala. Todos ligados a coronéis, todos ligados a alguma estrutura de Poder detendo parcela dele.
Ou seja, os grandes líderes cangaceiros estão mais próximos da nobreza da terra que do proletariado. Em sendo assim, não faz o menor sentido a teoria do banditismo social, de Hobsbawn quanto aos cangaceiros. Pensa assim, por exemplo, aproximadamente, Luiz Bernardo Pericás, em “Os Cangaceiros”, Tampouco faz sentido a teoria que aponta os cangaceiros enquanto desviantes, da qual faz uso Frederico Pernambucano de Mello. Muito menos a teoria marxista da luta de classes, calcada em Althusser, de tantos outros.
Ou seja, os grandes líderes cangaceiros estão mais próximos da nobreza da terra que do proletariado. Em sendo assim, não faz o menor sentido a teoria do banditismo social, de Hobsbawn quanto aos cangaceiros. Pensa assim, por exemplo, aproximadamente, Luiz Bernardo Pericás, em “Os Cangaceiros”, Tampouco faz sentido a teoria que aponta os cangaceiros enquanto desviantes, da qual faz uso Frederico Pernambucano de Mello. Muito menos a teoria marxista da luta de classes, calcada em Althusser, de tantos outros.
O cangaço é resultante de brigas intestinas entre famílias que dispunham de terra e prestígio. A briga era no seio do coronelismo. Era o coronelismo. Todo líder cangaceiro, com raras e honrosas exceções – até mesmo Sabino Gore, por exemplo, está inserido nesse contexto. O referencial teórico aqui talvez seja Gaetano Mosca e sua teoria da classe política, enquanto situação limite em um plano mais complexo, ou seja, a teoria darwiniana.
Nesse sentido concluo propondo o seguinte: 1) que se faça o estudo do cangaço a partir do coronelismo, ambientando o epifenômeno no fenômeno; 2) que se estude Chico Pereira, por exemplo, a partir do panorama político de sua época, no Sertão paraibano.
Chico Pereira não era um bandido social, e embora fosse um desviante, no sentido de que se voltou contra o sistema legal de sua época, essa informação nada acrescenta quanto a entender causa e efeito de sua existência enquanto cangaceiro.
Por fim, lembro uma consequência imediata da assunção desse modelo teórico: a verdeira história do ataque de Lampião a Mossoró é a história da briga entre coronéis paraibanos e coronéis norteriograndenses por prestígio político no Oeste e Alto Oeste potiguar.
Honório de Medeiros
Conselheiro Cariri Cangaço
Fonte:http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/
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