Conselheiro Cariri Cangaço, Raul Meneleu Mascarenhas
Os poetas, escritores, cineastas profissionais ou amadores, exercendo atividades criativas e técnicas, podem tudo. Podem contar a história como foi e é, mas também podem viajar na ficção, deixando que suas mentes vagueiem na criação de situações que nunca ocorreram, ou enfeitarem a narrativa e o visual, com a percepção ficcional.
Já os historiadores e pesquisadores, ao fornecerem material colhido, devem ser isentos e registrarem literalmente o que ocorreu, deixando tudo como aconteceu, fazendo apenas a narrativa que encontraram, sem envolvimento emocional de pender para quaisquer lado. Apenas a realidade do passado e presente interessa para tais.
Muitos livros trazem como objetivo principal trazer esclarecimentos considerados extremamente valiosos no que se refere à história. E na história do cangaço na época de Virgulino Ferreira da Silva, o célebre "Lampião", não pode ser diferente. Os historiadores e pesquisadores, de posse desse material, e que também se tornam escritores, devem mostrar o real papel de homens e mulheres envolvidos na saga, como bem o diz Manoel de Souza Ferraz, o Manoel Flor, um dos principais combatentes de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião; quando mostra que o cangaço "foi exaltado pela literatura popular sertaneja, mormente em sua forma mais difundida, a poesia. Nela, até os criminosos reconhecidamente empedernidos podiam ser glorificados nas ilusões do cancioneiro." - (1) ***
Trago aqui para os amigos, que não tiveram ainda a oportunidade de ler esse relato, desse bravo filho de Nazaré, que em seu depoimento referindo-se a essa veia poética que praticamente endeusava os criminosos, sabendo que o sertanejo tem uma grande simpatia por homens e mulheres valentes, chama-nos a atenção para a correção dessas narrativas desviadas da realidade. Vamos ao relato, retirado de suas memórias, pela professora, jornalista e escritora Marilourdes Ferraz em seu livro O Canto do Acauã - 2ª Edição:
Marilourdes Ferraz
"O trabalho aqui exposto revela a necessidade em trazer a público um depoimento que mude os conceitos, quase sempre distorcidos, impostos e disseminados sobre a era do cangaço no sertão do Nordeste. Esta urgência é justificada porque são poucos os sobreviventes que maior participação tiveram nos acontecimentos e os quais se ressentem da deturpação dos fatos que viveram e presenciaram. Nosso objetivo é o de expor um relato, autêntico e verídico, daquele tempo conturbado, centralizando-o na região do rio Pajeú, em Pernambuco. O termo cangaceiro descreve um personagem de determinadas características que atuou no Nordeste; o termo engloba tanto o bandoleiro que formasse um grupo armado como o fazendeiro que possuísse a mesma atividade ou o simples agregado que defendesse os interesses do patrão por meio das armas. Sua principal característica era a valentia; era relevante que fosse ousado e mesmo insensato nos seus feitos. Os aspectos de valentia e coragem pertencem à admiração popular nas diversas culturas e épocas; também o cangaço foi exaltado pela literatura popular sertaneja, mormente em sua forma mais difundida, a poesia.
Nela, até os criminosos reconhecidamente empedernidos podiam ser glorificados nas ilusões do cancioneiro. Nas porfias entre grupos rivais o povo tomava partido como atualmente nos esportes e os entusiastas comentavam os últimos combates e defendiam com ardor apaixonado a facção que lhes parecia mais simpática. No sertão, naqueles tempos de enorme carência de apoio à população, principalmente no setor educacional e na estrutura jurídica que coibisse os abusos de poder do homem para com o seu semelhante, a criminalidade proliferou.
Os habitantes dependiam do próprio valor pessoal para manter a sua integridade física e moral, e o uso amplo da força em seu pleno sentido já era estimulado na luta pela sobrevivência com a Natureza agressiva em tempo de estiagem. O grupo etário mais vulnerável a esse conjunto do influências era exatamente a infância, seguindo-se-lhe a adolescência. Dependendo da intensidade dos diversos fatores e da orientação familiar poderia haver conseqüências desastrosas ou benéficas á vida dos moços. A estrutura básica para o fortalecimento do caráter e a formação da personalidade estava no lar, secundada pela orientação dos poucos mestres-escola e dos religiosos que assistiam a população. isso se tornou ainda mais notável na citada região do Pajeú, onde cresceram os irmãos Ferreira e os homens que os combateriam até o fim do ciclo.
Manoel de Souza Ferraz
Os futuros grupos conflitantes, cangaceiros e policiais, receberam a mesma carga de influências culturais e do meio ambiente, frequentaram as mesmas escolas improvisadas ao ar livre e tiveram dificuldades como todos os sertanejos. Lampião conviveu e recebeu a mesma educação de muitos conterrâneos, mas com a vantagem de possuir sua família uma situação financeira bem melhor que a de inúmeros sertanejos. Assim, no estudo de sua adesão ao banditismo, é importante que haja uma análise dentro do contexto da época, da região e de sua conjuntura sócio-cultural.
A personalidade agressiva e contraditória do famoso cangaceiro foi alimentada pelas variadas influências que também agiram sobre os seus contemporâneos. No decorrer dos anos a versão dos acontecimentos da época foi de tal modo deturpada, principalmente por motivos políticos e ideológicos, que se tornou comum atualmente uma profusão de mitos e inverdades, acarretando equívocas tentativas de explicar o personagem Virgulino Ferreira da Silva, em particular, e o contexto histórico-social que, indiretamente, representava.
É difundida e alimentada a crença de que a Polícia executou nos sertões apenas o papel de verdugo em sua represália contra o banditismo; seus presumíveis atos de vandalismo teriam estimulado a proliferação de homens que, como Virgulino, se tornavam cangaceiros a fim de praticar justiça com as próprias mãos; por inexplicável ódio, o fazendeiro José Saturnino, pretextando o furto de um simples chocalho pelos jovens Ferreira, perseguiu-os com requintes de crueldade, forçando sua adesão ao mundo do crime como único caminho para a sua sobrevivência; que esses pacatos e ordeiros rapazes foram obrigados a lutas intermináveis contra as injustiças, lembrando Robin Hood a castigar os maus e ajudar os infortunados; e ainda que o povo sertanejo teria depositado enorme confiança naqueles "paladinos" da Justiça.
Tais incorreções foram alimentadas por deficiências na coleta e interpretação dos dados históricos e também por deturpação nos depoimentos fornecidos a alguns escritores que, por exemplo, chegaram a basear seu trabalho exclusivamente em versões de ex-cangaceiros ou de pessoas não possuidoras do necessário conhecimento dos fatos ou que os procuraram alterar em conveniência própria devido a estarem comprometedoramente envolvidos nos episódios da época, em detrimento de uma realidade mais ampla.
Entretanto, não nos arrogamos na posse absoluta da Verdade nem procuramos rotular os cangaceiros de apenas bandoleiros ou transformar os soldados sertanejos que os enfrentaram em heróis isentos de erros; eram todos seres humanos e, como tais, vulneráveis equívocos e às forças que movem os povos e determinam a marcha da História; todos participaram de uma batalha de múltiplas origens e conseqüências, não sendo totalmente vilões ou totalmente santos muitos dos visados por preconceitos.
Podemos, no entanto, afirmar com segurança que Virgulino Ferreira da Silva não foi obrigado por perseguições a adotar uma vida de banditismo; ao contrário, foi combatido por ter-se transformado em temível bandoleiro. Seu pai teve o fim precipitado pela turbulenta vida dos três célebres filhos. Antes que fosse muito tarde, Lampião recebeu conselhos e advertências e, o mais importante, o exemplo de numerosos habitantes da região em que vivia; contudo, fustigou-os de tal forma que os obrigou a se transformar de pessoas reconhecidamente pacíficas em argui-inimigas do cangaço quando perderam a crença em sua sobrevivência sem os recursos da luta armada.
Os irmãos Ferreira assaltavam indiscriminadamente e faziam conluios com pobres ou ricos para os mais diversos fins; os seus prisioneiros eram muitas vezes mortos com requintes de sadismo e a sua fúria não poupava idade ou sexo das vítimas; inúmeras famílias sofreram com a perda de seus haveres e entes queridos. Como Lampião conseguiu atravessar longos anos sem ser detido? Em conseqüência do secular abandono da região sertaneja, as autoridades governamentais não possuíam os meios adequados para encerrar em curto prazo tão calamitosa situação.
A falta de estradas e meios de transporte, o reduzido número de policiais, o deslocamento de tropas de Estado para Estado, o alistamento de pessoas que não se adaptavam aos rigores da luta, foram algumas das dificuldades encontradas. Os sertanejos tiveram que, praticamente sós, iniciar e manter por longo período o combate a mais um dos flagelos que tão frequentemente os assolavam, enfrentando carência de abastecimento, munições e armamentos, às vezes comprados com seus soldos.
As forças que combatiam o cangaço se compunham de unidades móveis denominadas "volantes", as quais realizaram verdadeira epopeia, anos a fio, em esgotantes travessias do sertão de vários Estados nordestinos. Entretanto, são hoje cada vez menos compreendidas em seu papel. Também a opinião popular, que exaltava os feitos de bravura da Polícia, do mesmo modo tendia a depreciá-la, fornecendo errôneas explicações da razão de ser da vida de bandoleiro de Lampião, como nos versos seguintes:
"Assim como sucedeu
Ao grande Antônio Silvino
Sucedeu da mesma forma
Com Lampião Virgulino
Que abraçou o cangaço
Forçado pelo Destino...
Porque no ano de Vinte
Seu pai fora assassinado. . ." (2)
Certamente houve atos impensados por parte de policiais, mas não foram comuns e geralmente ocasionados pelas contingências da luta. A dureza da campanha e as condições em que se desenrolaram os combates podem explicar algumas dessas atitudes. Não se pode esquecer o indescritível desgaste físico provocado pelas marchas prolongadas e pelas emboscadas associadas à sede e à fome no semi-deserto sertanejo.
A enorme dedicação dos soldados visava a que seus contemporâneos um dia usufruíssem da tranqüilidade desejada. Muitos moços perderam a vida, outros a saúde física e mental; os verdes anos da juventude foram irremediavelmente gastos na luta. Apesar de tudo o que se diz, as pessoas de bem tinham confiança na atuação dos policiais. Isso é o que não pode ser omitido. Os erros de poucos não podem turvar a atuação de valorosos combatentes. Os que viveram os dias difíceis daquela época não poderiam mais calar ante as injustiças cometidas pelos que tentaram enlamear o sacrifício dos bravos componentes das Forças Volantes."
Do depoimento de Manoel de Souza Ferraz (Manoel Flor)
Raul Meneleu, pesquisador, escritor
Conselheiro Cariri Cangaço, Aracaju SE
Fonte:http://meneleu.blogspot.com.br/
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