As Mulheres e Divisor de Águas...

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Olho no Olho !
por Juliana Ischiara...

Juliana Ischiara em noite de Cariri Cangaço, ao lado de Kiko Monteiro, Wescley Rodrigues e Narciso Dias

Sem sobra de dúvida a entrada das mulheres no universo cangaceiro foi um divisor de águas, tanto para o cangaço, exclusivamente masculino, quanto para tudo o que diz respeito à mulher nordestina, que embora vista como uma mulher forte, guerreira e trabalhadora, era essencialmente do lar, uma mulher criada para casar e cuidar do marido e dos filhos, bem como dos afazeres domésticos.

Sem querer forçar um anacronismo, pode se dizer que houve uma espécie de retrocesso em relação ao que se entende por salutar rotina familiar. Sabemos que nossos antepassados eram nômades e a fixação em um lugar para formar uma família, conforme os padrões sociais vigentes, foi uma grande conquista e um grande avanço, posto que o homem tornou-se gregário, iniciando-se uma vida social mais intensa.

Viver no cangaço era deixar de ser gregário e passar a ser nômade e, se para um homem era difícil, imagine para mulheres que dependem ou têm necessidades maiores de uma intimidade especial como tomar banho, fazer asseios, trocar de roupas, dentre muitos outros momentos, que para mulher é mais complicado que para o homem, imagine fazer grandes caminhadas nos períodos menstruais, durante a gravidez e depois dos partos.

Em sendo assim, entrar para o cangaço, com certeza, era uma decisão bem mais difícil para a mulher que para o homem. Os motivos foram os mais diversos e cada uma tinha seu motivo particular. Moviam-se por amor, por encanto, pela aventura, pela força, enfim, eram inúmeros. O fato é que não se pode dizer que a mulher era uma figura descartada nas fases anteriores à sua entrada no cangaço e, tanto é verdade, que muitos homens que entraram para essa vida, tinham mulheres e filhos, mas por pensarem na proteção e comodidade deles não os levavam junto. Evidente que a presença das mulheres e de crianças dificultaria a vida bandoleira, pois nos momentos de combates, além de terem que se preocupar com sua própria segurança, teriam que se preocupar, também, com a segurança de sua família, o que lhes deixariam em desvantagem em relação à força coercitiva do Estado.

Mulher Cangaço, de Marcus Plech

Acredito que a entrada das mulheres para o cangaço é fruto da necessidade humana de querer viver em família, antes de serem embrutecidos e ferozes, acostumados com as incertezas entre a vida e a morte. Eram homens que sentiam a necessidade de ter uma família, de viverem em um núcleo familiar, mesmo em meio à caatinga e aos perigos comuns de suas rotinas.

Para alguns cangaceiros, a entrada das mulheres significava a decadência, a desgraça e a fraqueza do cangaço, enquanto para outros, a entrada destas mulheres seria uma forma de humanizar mais o bando, uma forma de diminuir os muitos acessos libidinosos e desenfreados que alguns tinham, diminuindo a grande ocorrência de estupros. Para ser mais precisa, quero falar de duas mulheres em particular, mulheres estas que tiveram entradas distintas, uma por amor, outra pela força.

A primeira mulher, Maria Gomes de Oliveira, então Maria de Déa, entrou para o cangaço por livre e espontânea vontade, embora tenha se enamorado do mais temido dos cangaceiros, Lampião. Este segundo consta na literatura cangaceira, não a forçou, mas sim, convidou-a. Maria, que vivera um casamento mal sucedido, era inquieta e sentia falta de uma vida mais emocionante, onde a paixão fosse condutora de seu destino. Em sendo assim, ao se apaixonar por Lampião e ser correspondida, não teve dúvidas ao se entregar e optar pela vida no cangaço. A Maria de Déa se entregou ao amor e à vida que seu amado lhe oferecera. Uma vida de perigos, dificuldades, aventuras, emoções e paixão, morreu como uma rainha ao lado de seu rei.


Já Dadá, embora tenha se apaixonado por Curisco, acredito que ela tenha sido vítima da Síndrome de Estocolmo, um estado psicológico desenvolvido por pessoas que são vítimas de seqüestros, raptos. Este estado se desenvolve a partir de tentativas da vítima de se identificar com seu captor ou de conquistar a simpatia do seqüestrador. As vítimas começam por identificar-se emocionalmente com os sequestradores, a princípio como mecanismo de defesa, por medo de retaliação e/ou violência. Esta relação de amor e ódio em relação ao seu algoz é considerado uma estratégia de sobrevivência por parte das vítimas. A identificação afetiva e emocional com o seqüestrador acontece para proporcionar afastamento emocional da realidade perigosa e violenta a qual a pessoa está sendo submetida. Entretanto, a vítima não se torna totalmente alheia à sua própria situação, pois parte de sua mente conserva-se alerta ao perigo e é isso que faz com que a maioria das vítimas tente escapar do seqüestrador em algum momento, mesmo em casos de cativeiro prolongado.

Porém, Dadá ao que parece, tomou gosto pela vida cangaceira e, depois de se apaixonar por seu raptor, a vida não lhe parecia mais difícil, não havia mais uma violência imposta, mas um intenso prazer em viver ao lado de seu amado, aquele que já fora um monstro impiedoso. Assim como Dadá, outras mulheres que entraram para o cangaço por imposição, se apaixonaram e seguiram seus companheiros até o fim, sendo-lhes cúmplices, não só nos momentos ruins, mas, também, nos momentos de prazer.

Eu me pergunto o que podemos pensar sobre essas mulheres, que largaram suas vidas pacatas e tranqüilas, embora muitas destinadas à miséria?

Para mim, são mulheres dignas de admiração, pois a valentia não estava apenas em saber empunhar uma arma, mas na atitude corajosa de seguir seus homens pelas veredas perigosas e cheias de abismos.

Juliana Ischiara
Historiadora e pesquisadora
Quixadá-Ceará
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11 comentários:

José Cícero disse...

Um texto assaz primoroso e denso daqueles que têm a capacidade de elucidar, ao tempo que acrescenta substancialmente algo novo e interessante para a historiografia do cangaço. Numa ótica diferenciada o texto da confreira Juliana consegue dá uma contribuição das mais consistentes ao estudo lampiônicoe como ao cangaço de um modo geral.
Parabéns!!!
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José Cícero
Aurora-CE
www.jcauora.blogspot.com

Narciso disse...

Belíssima postagem Juliana,o reconhecimento da coragem e da fíbra da mulher Cangaceira,tendo que desdobrar-se entre guerreira,
mulher e mãe no ardor dos carrascais nordestino; tem que ser
muito forte. É uma obrigação dos
historiadores enfatizar a coragem
dessas mulheres.Um abraço aos nossos amigos João de Souza,Antonio Amaury,Alcino Costa,dentre outros que já fazem isso a algum tempo e agora você.Nada mais justo do que um toque feminino para dignificar nossas queridas e belas "cangaceiras".

Grande abraço.

Narciso Dias

João Pessoa-PB

João de Sousa Lima disse...

Juliana,
Como Guerreira que és, empunhastes tua bandeira, divinamente percorrestes caminhos tantos ainda obscuros, dignificando uma passagem de nossa memória coletiva, sem pejos, pudores e sem a banal discussão de "bandidas ou heroínas", fostes maior que nosso entendimento e conseguistes pontuar fatos marcantes, sem perder a ternura do ser perfeito e sagrado que é a mulher, principalmente (sem bairrismo) a Mulher Sertaneja.
Parabéns pela construção do artigo e obrigado por ser minha amiga, te desejo ainda, nas pesquisas, muitas andanças nesse longo caminho que é o de desvendar a verdadeira face de nossas Mulheres Caatingueiras.
abraço
João de Sousa Lima

Juliana Ischiara disse...

Caro Cícero,

Grata por suas palavras, elas me soam por demais incentivadoras. Meu muito obrigada!

Caro Narciso,

Também lhe agradeço pelas palavras, você tem toda razão, nossos queridos amigos e mestre João de Sousa Lima, Alcino e Amaury há muito tempo vem trabalhando e nos presenteando com excelentes trabalhos abordando ou dando ênfase a esta temática que em minha opinião é por demais importante, além de complexa. Obrigada meu amigo e confrade.

Amigo João...

Como sempre, escrevendo em forma de poesia, fico deveras lisonjeada e feliz com seu comentário, principalmente por vir de um mestre como você, que em minha opinião é o maior conhecedor do universo feminino no cangaço. Ser sua amiga é um presente, eu que agradeço por merecer tal qualificação.

Saudações Cangaceiras e um forte abraço.

Juliana Ischiara

José Mendes Pereira disse...

Muitas jovens se decidiram acompanhar aqueles ferozes homens simplesmente pela falta de amor que não recebiam dos seus pais. Aqueles tempos, os pais eram grosseiros, não conversavam com as filhas, e não se preocupavam com o bem estar de uma jovem. A única preocupação que eles tinham com elas, era sobre a sua honra e mais nada. Nenhum pai queria ouvir de alguém que uma de suas filhas havia se perdido, como se dizia, por isso dava duro, prendendo-as, não liberando para uma festa, proibindo de freqüentar escolas, passeios distantes de casa, no intuito de ter uma ou todas as filhas donzelas dentro de casa. E com essa prisão toda, qualquer oferta feita por um jovem desmantelado, para ela era bem vinda, só assim se livraria das ordens dos seus pais.
Como os pais não tinham forças para competir com aqueles perigosos homens, o jeito era chorar por dentro e baixar a cabeça para qualquer bandido.
Algumas jovens foram para o cangaço por espontânea vontade. Mas outras obrigadas pelos seus futuros companheiros, pois do contrário iriam pagar caro pela não obediência a eles. Como não tinham opções, se decidiam entrar naquela vida inferno. E depois de alguns meses ou anos não encontrando um meio de sair do cangaço, o jeito era gostar contra vontade e mais nada.
Parabéns Juliana, pelo seu excelente artigo.

José Mendes Pereira – Mossoró-RN.

Anônimo disse...

O belo texto da nossa amiga Juliana é reflexivo, esclarecedor, educador e muito oportuno. A Juliana é uma pesquisadora que sempre nos encanta com pelos textos informativos - os estudantes agradecem - parabens - recomendações ao dignissimo esposo.Saude - Alfredo Bonessi

Anônimo disse...

Juliana,

A sua postagem sobre as mulheres no cangaço foi deveras maravilhosa. Um texto realmente fascinante. Sei, e sei muito bem, que sou suspeito em fazer qualquer tipo de comentário a seu respeito, pois você é minha filha de espírito, de sentimento e de amor. Mas, lendo os comentários de todos os nossos outros confrades, pude sentir que não estou exagerando em exaltar o seu grandioso texto.

Parabéns, minha amada filhinha! Que bom termos a juventude, e em especial a mulher, também vaquejando a história de nosso povo sertanejo e nordestino para o curral da posteridade.

A mocinha sertaneja que se bandeou para o cangaço, em sua grande maioria, ela só carregava um sentimento, o sentimento do amor e da paixão por aqueles rapazes tão especiais e temidos que estavam acima do bem e do mal.

Como sempre, você foi genial. Você e Júlio são meus cangaceiros preferidos. Fazem parte efetiva e afetiva de minha vida.

Beijos, minha querida filha.

Alcino Alves Costa
O Caipira de Poço Redondo - SE

IVANILDO ALVES DA SILVEIRA disse...

PARABENIZO A "JULIANA" PELO EXCELENTE ARTIGO, E, TENHO A DIZER, O SEGUINTE.

A "JULIANA " TEM SE DESTACADO NO ESTUDO DO CANGACEIRISMO NO NORDESTE, E,COMO MULHER INTELIGENTE, TEM DADO A SUA CONTRIBUIÇÃO NO ESTUDO DO TEMA.

VALEU AMIGA,

Um abraço a todos.

IVANILDO SILVEIRA
Colecionador do cangaço
Natal/RN

Helio disse...

Pesquisadora Juliana , seu texto além de ser gostoso de se ler nos traz numa linguagem facil, essa abrodagem tão sutil sobre o que poderia ter sido o sentimento dessas sertanejas do cangaço. Interessante observar, dentro de sua dissertação, que entre os próprios cangaceiros, haviam controversias sobre a entrada de mulheres, meus parabens.

Professor Mario Heilo

Anônimo disse...

Senhora Juliana, antes de mais nada me permita parabenizar pelo texto. Gostaria de provocar um assunto: Os cangaceiros quase que 100% possuiam uma índole propícia áquela vida; crueldade, valentia, maldade, sadismo, etc, coisas próprias de homens que se sujeitam a viver sob o julgo da "canga", e pergunto a senhora: E as mulheres? Não teriam também lá no fundo essa tal de índole para o flagelo, para a maldade, a selvageria?

Abraços e mais uma vez meus parabens.

Renato Fantasia

Juliana Ischiara disse...

Caro José Mendes, obrigada.

Amigo e confrade Bonessi, grata pelas palavras, recomendações a sua simpática esposa.

Querido mestre Alcino, a recíproca é verdadeira, sou privilegiada por tê-lo como pai.

Mestre Ivanildo, acredite, para uma discípula como eu, suas palavras são mais que incentivadoras, aumentam ainda mais meu compromisso e responsabilidade para com o objeto de pesquisa. Obrigada mestre.

Professor Helio, grata pelas palavras gentis, são por demais incentivadoras.

Prezada Renata, sua provocação é por demais pertinente. Claro que responder tal indagação a contento não seria possível, dada a subjetividade e complexidade que envolve a personalidade e ou condição humana.

Como falei, os motivos que levaram a entrada das mulheres para o cangaço, foram os mais variados, tanto por parte daquelas que foram por livre vontade ou por parte dos homens que sentiram a necessidade de tê-las por perto. Sendo a índole intrínseca à personalidade, seja ela boa ou ruim, portanto, comum a todos nós. Não é possível afirmar com certeza absoluta que cangaceira ‘A’ ou ‘B’, tinha a personalidade ruim. Sabemos que Dadá tinha uma personalidade forte, era combativa, corajosa e quando se fez necessário participar do combate em virtude da limitação física de Curisco, conseqüência de lesões nos braços causadas por tiro em combate. Dadá não se fez de rogada.

Sabemos também que a própria Maria Bonita, tinha um humor bastante variável, sendo difícil a convivência desta com aqueles que não eram de sua simpatia.

Em síntese, não se pode negar que todas, de alguma forma, manifestaram coragem e despreendimento ao seguirem seus homens, e que a entrada delas mitigou a selvageria e a violência por parte dos cangaceiros, principalmente no que concerne as violências sexuais e, em muitas situações, elas conseguiram evitar a morte daqueles que suplicavam pela vida. Claro, com isso, não estou dizendo que elas não tinham um certo grau de crueldade ou selvageria, porém, sem querer aqui fazer um defesa idílica, creio que a condição feminina predominou em face de uma pretensa satisfação pelo flagelo.

Um abraço em todos.

Saudações Cangaceiras

Juliana Ischiara