Cristina dá a data do atestado de óbito do cangaço no Brasil: 28 de julho de 1938. Foi numa fazenda no sertão de Sergipe, a 12 quilometros da fronteira de Alagoas. Angicos aparecia encravada entre duas serrinhas, com um córrego de muitas pedras, formando grotas bem cobertas e resguardadas. No centro dessa quase-fortaleza, espalhadas entre as moitas de xique-xique, as barracas do acampamento de Lampião, armadas há vários dias. Balão. homem de confiança de Virgulino, lugar-tenente de Corisco, estava lá e conta como foi. — Já fazia cinco dias que a gente estava em Angicos, onde chegamos numa sexta-feira. O dia do mês não me lembro, porque não tinha folhinha. Quando chegou terça-feira, o Capitão resolveu partir (a intuição de perigo iminente era o grande trunfo de Lampião). Mas de manhãzinha chegou um sobrinho dele, de nome José, para se juntar ao bando. O Capitão resolveu adiar a viagem, para equipar o menino. De tardinha chegou ao coito um homem por nome Pedro de Cândido, que foi logo contando que "tem muito macaco em Piranha", um lugar lá perto.
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Noto emoção e um brilho mais profundo nos olhos de Balão, quando se refere a Pedro de Cândido. E logo percebo que nesse homem duro persiste o mesmo horror à delação e à traição. — Foi daí que o capitão disse a ele: "Pedro, volte lá e sonde para que lado vão esses macacos." Pedro foi e voltou de noitinha, coisa assim de oito horas, e contou: "Eles foram para o sertão de Pernambuco; pode ficar tranqüilo."
Mas ele tinha trazido a volante. Todos os macacos ficaram escondidos em volta. Até às 11 da noite ficou bebendo e conversando com a gente. Aí disse que precisava ir embora. E ainda avisou: "Capitão, amanhã eu volto, lá pelas 9 horas, para me despedir do senhor." — Naquela quarta-feira, levantamos às cinco da manhã. O capitão chamou todos para rezar o ofício, como acontecia todos os dias. E, quando terminou, pediu a Amoroso que descesse até a bica e fosse buscar água para fazer o café. Amoroso não chegou a enfiar o cantil dentro do riacho. O primeiro tiro de um macaco matou Amoroso ali mesmo. Dai foi só fuzilaria. Tinha mais de cem macacos, cercando por todos os lados e quatro metralhadoras varriam o xique-xique.
O capitão morreu com um tiro na cabeça. A vinte metros dele morreu Maria Bonita. Nós éramos 36 e cada qual cuidava de sair vivo. Luís Pedro, o homem mais chegado a Lampião, furou o cerco, mas ouviu gritarem que o capitão tinha morrido e voltou. Ele jurou que ia morrer com Lampião e veio de peito aberto. Recebeu uma rajada de metralhadora e caiu morto. O fogo cerrado durou mais de meia hora. Ficaram mortos, no chão de Angicos, Lampião, Maria Bonita, Amoroso, Nedina, Quinta-feira, Luís Pedro, Elétrico, Mergulhão, Caixa-de-Fósforos, Jítirana e Cajarana. Eram 11 cangaceiros. Mas morreu muito mais macaco.
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Ângelo Roque, o Labareda
Labareda; que está do lado, ouvindo, resolve interferir na narração. — Pois está certinho. A volante diz que só morreu um macaco no ataque, Mas chega-ram em Piranha 28 fuzis sem dono (Labareda não estava em Angicos, mas numa fazenda perto de Piranha). Faça as contas: se morreram nove cangaceiros — as mulheres não usavam fuzil — o resto tinha de ser de macaco morto, e se chegaram 28 fuzis em Piranha, morreram 20 macacos, pois o fuzil de Amoroso os companheiros conseguiram levar.
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Morto Lampião, o bando se desintegrou e nunca mais se reagrupou. Alguns foram mortos em outras ocasiões e outros se entregaram. Em 1939 o cangaço acabava de vez. Um herói que arregimenta sertanejos para uma revolta popular ou um frio e sádico assassino, que saqueia e mata por prazer: essas as duas imagens extremadas que até hoje têm sido feitas dos cangaceiros.
As Táticas de Guerra dos Cangaceiros pretende reduzir essas duas fantasias às suas verdadeiras dimensões. Por isso, para lançar seu livro em São Paulo, a historiadora Cristina Mata Machado, de 27 anos, fez questão das singulares presenças de Dadá, Sita, Zé Sereno, Labareda, Criança, Marinheiro, Volta Seca, Balão e Pitombeira, nove remanescentes do bando de Lampião. Cristina pesquisou em mais de cem lugares e pequenas cidades do sertão nordestino e chegou à conclusão de que a verdadeira imagem do cangaceiro nunca foi divulgada: — Nem herói, nem sanguinário: apenas um sertanejo comum, forçado a desligar-se de seu lugar e de sua gente, impelido a matar para poder continuar vivo, querendo a paz e não podendo obtê-la.
Logo no primeiro parágrafo de seu trabalho, Cristina diz que Lampião foi "um homem como todos os outros do Nordeste".
"O fato de haver entrado para a história e de ser conhecido fora das fronteiras do país não o torna único, diferente ou original. Ele apenas surgiu na hora certa, viveu um momento histórico e morreu quando já era um mito no sertão nordestino. Lampião simbolizava e simboliza o sertanejo rebelde, desconfiado, astuto, destemido, forte e livre, capaz de viver na mais dura caatinga, capaz de sobreviver lutando, capaz de amar, capaz de seguir e perseguir um objetivo, capaz de lutar contra tudo e contra todos, no momento em que julgar isso necessário."
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Muitos assim existiam e existem no Nordeste. Lampião não pode ser visto como um fato isolado, mas como resultado de uma época em que se processava uma luta surda, empreendida pelo vaqueiro contra o senhor da terra. Dai se explica, talvez, porque Lampião — "uma fera humana" segundo a imprensa da época — era quase venerado pelas populações mais pobres. Ele realizava em segundos aquilo que cada um gostaria de fazer, mas tinha medo."
Cristina Mata Machado aponta o surgimento do cangaço como um episódio marginal ao desenvolvimento sócio-econômico do Nordeste: "A palavra cangaceiro coincide com o aparecimento da palavra coronel: em fins do século XIX, quando a estrutura do coronelismo começa a enfraquecer, o coronel tenta mante-la. Sua primeira opressão é contra o vaqueiro que, apesar de trabalhar para o coronel, era quase livre (num sistema chamado de quatriação, o vaqueiro ficava com uma entre quatro crias, formando o seu próprio rebanho, dentro de alguns anos. A primeira providência do coronel foi extinguir a quatriação e passar o vaqueiro à condição de assalariado).
Maria Cristina explica porque não havia reivindicação política no cangaço: "Eles não lutavam por uma causa, mas para
vingar uma afronta"
Segundo Cristina, três motivos básicos transformavam um sertanejo em cangaceiro: — Roubo de terras, desonra ou assassínio de algum parente. Atingido por um desses dramas, o sertanejo toma uma atitude, quase sempre a de matar o agressor. Feito isso, passa a ser perseguido pela polícia ou pelos jagunços do coronel atingido. Na fuga, não lhe sobram alternativas: tem de ir para o cangaço. A grande prova desse esquema é a inexistência, em qualquer época, de uma consciência de massa, de uma visualização do problema geral: cada um via o seu problema individual, lutava por causa dele. Não havia no cangaço uma causa pela qual lutar: havia uma afronta pessoal a vingar.
Anistiados por Getúlio — depois da tragédia dos Angicos — os cangaceiros remanescentes do bando de Lampião e Corisco saíram da caatinga buscando a volta à legalidade e à paz. Temerosos, desconfiados, procuraram, em maioria, sair do Nordeste, buscando os lugares onde pudessem substituir os seus nomes de guerra pelos de batismo. Hoje, reunidos em São Paulo, êles voltam a se chamar pelos apelidos pelos quais eram conhecidos no cangaço. As lembranças dos velhos tempos estão vivas, mas todos agradecem que sejam apenas lembranças, pois querem a todo custo manter a paz que conseguiram.
Labareda — Antônio Roque, o mais velho déles — deve ter a mesma idade que Lampião teria, se fosse vivo — 71 anos. Mas insiste em dizer que só tem 58. Hoje, é vigia do Hospital do Câncer e porteiro do foro, em Salvador. Tem uma vida bem diferente daquela da caatinga: — Vivia pelo mato, bebendo água de umbuzeiro, dando carreira, levando carreira, às vezes comendo só farinha molhada com água e de outras comendo até peru com arroz. Acampado, só conversava baixinho, dormia em barracas, passava dias sem brigar e às vezes tinha cinco brigas num dia só.
Porque Labareda entrou para o cangaço? — Foi em Quixabá, numa fazenda onde eu morava. Um soldado por nome Horácio violentou minha irmã Sabina. Depois, ele desapareceu.... Eu o matei. A policia começou a me perseguir, eu me escondi na caatinga muito tempo, até que um dia me juntei com o bando do Lampião na fazenda Arrastapé. Fiquei 17 anos com o capitão. Quando ele morreu, fiquei dois anos pelo mato, sem saber da anistia. Quando soube, me entreguei.
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Balão
Balão é o mais falante de todos. Orgulha-se de ter 17 filhos. Sete ainda moram com ele em São Paulo, onde exerce a profissão de perfurador de poços artesianos, com 61 anos de idade. Nele perdura a velha desconfiança que não lhe deixa declarar o nome de batismo, nem o endereço. Qual a sua razão para unir-se a Lampião? — Naquele tempo, não tinha escolha: ou entrava para a volante ou virava cangaceiro.
Eu morava em Riacho do Meio. Um dia Lampião passou por lá sem maltratar ninguém. Atrás dele vinha uma volante, que perguntou para onde o capitão tinha ido. Ninguém sabia. Por isso a volante espancou todo mundo. Homem que tem natureza não apanha de rêlho na cara. Um dia Corisco passou por lá com mais sete cabras. Quando saiu, tinha mais um. Era eu.
Criança perdeu o apelido há muito tempo. Agora ele é apenas Vitor Rodrigues de Lima, vendedor ambulante de verduras em São Paulo. Era um menino de 15 anos quando entrou para o bando. Saiu quando tinha 22 e, durante todo esse tempo, com pouco mais de metro e meio de altura, era considerado o cangaceiro de melhor pontaria. — Lá em Feira do Pau, a perseguição era muita. A gente apanhava dos macacos para contar onde estavam os cangaceiros. Mas quando Lampião passava, ele agradava os moradores. Um dia eu segui com ele.
Foi Criança quem ajudou Sila a furar o cerco de Angicos: — Vínhamos eu, Sila e Nedina, quando uma bala de fuzil acertou Nedina na cabeça. O vestido de Sila ficou vermelho com o sangue dela, que caiu aos meus pés, Pitombeira, que os colegas da Prefeitura de São Paulo só conhecem como José Soares, foi para São Paulo em 1940.
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Foi um dos primeiros a entrar para o bando, mas sua razão foi das mais fortes. — Um dia os macacos chegaram em Esperança, onde eu morava, perguntando se Lampião tinha estado por lá. De fato, tinha, mas ninguém sabia para onde tinha ido. A volante não se conformou e começou a espancar. Um macaco montou meu irmão, queria que ele pulasse como cavalo. Meu irmão acabou todo rasgado de espora. Oito dias depois, meu irmão Luís morreu, como morreu meu tio Emídio, de tanta pancada da volante. O grupo de Diferente passou e eu fui com eles.
Sila e Zé Sereno conheceram-se e casaram-se no cangaço. Ambos escaparam do cerco de Angicos, ao fim de nove anos de lutas na caatinga. Desde 1942 estão em São Paulo. Ele é porteiro de um colégio e ela faz o que gosta: costura e cuida dos três filhos. Sila costurava toda a roupa do bando. José Ribeiro da Silva tem o máximo cuidado em falar do passado, para não delatar ninguém. Quando lhe pergunto quem vendia as armas para os cangaceiros, Me responde: — Não, moço, isso eu não falo. Quem vendia pode ter morrido, Mas as famílias ainda estão lá. Pode haver vingança e eu não quero complicar a vida de ninguém.
Sila se lembra de como encontrou o marido: — Eu tinha 13 anos. Estudava num colégio de freiras e estava passando férias numa fazenda, quando os cangaceiros apareceram. José resolveu que eu ia com ele e eu fui. Um pouco por medo, um pouco por aventura.
Grupo de Zé Sereno
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Dadá — a Sra. Sérgia da Silva Rodrigues, casada, mãe de vários filhos — perdeu uma perna no dia em que mataram o seu primeiro marido, Corisco. Ela também não gosta que se fale da origem das armas: — Não se cospe no prato em que se come.
Marinheiro entrou para o cangaço com menos de 13 anos de idade: — Eu sou irmão de Sila. Ela havia seguido com o Zé Sereno. Por causa disso, a volante resolveu me matar. Não tinha saída. O jeito era seguir o rumo de onde estava Lampião e me juntar a ele. Menos de dois anos depois da adesão de Marinheiro, o cangaço morreu. Andou escondido durante algum tempo, e depois se entregou. Em 1942, mudou-se para São Paulo onde se iniciou na profissão de metalúrgico. Foi vivendo sua vida de operário até que um dia se apaixonou. por uma moça do Nordeste e ela por ele. Poucos dias antes do casamento ele soube que ela era filha de um macaco e ela soube que ele era um ex-cangaceiro. Nesse ponto a paz era inevitável.
Manchete 15 de Novembro de 1969 Reportagem de FERNANDO DEL CORSO
Postado por Raul Meneleu
Conselheiro do Cariri Cangaço