Luiz Ruben, Leandro Cardoso, Antônio Amaury, João Souto
e Napoleão Tavares Neves em dia de Cariri Cangaço
Apresentação do acadêmico Leandro Cardoso Fernandes por ocasião de Sessão Solene da Academia Brasileira de Letras e Artes do Cangaço, em homenagem póstuma ao pesquisador e escritor paulista, Antônio Amaury Correa de Araújo, acontecida de maneira virtual, no último sábado, 27de março de 2021.
"Boa noite a todos. Me chamo Leandro Cardoso Fernandes, ocupo
a cadeira de número 13, cujo patrono é o escritor e magistrado William Palha
Dias.
O motivo de hoje estarmos reunidos, mesmo que virtualmente,
é para celebrarmos a memória de Antonio Amaury Correa de Araújo, nosso amigo e
membro da ABLAC, cuja transição para outro plano de existência se deu
recentemente. Para os que se debruçam sobre o tema Cangaço, Antonio Amaury é
unanimidade incontestável como referência de qualidade pelas suas pesquisas e
livros. Ninguém pode acercar-se seriamente desse tema, sem beber nas fontes de
sua extensa produção bibliográfica.
Minhas senhoras e meus senhores.
No dia 26 de fevereiro do corrente ano, recebi a infausta
notícia da partida de meu amigo Antonio Amaury. Passou-me rapidamente pela
memória muitos dos momentos agradáveis que compartilhamos, seja no convívio
mútuo com nossos familiares, seja com os amigos pesquisadores, no Cariri
Cangaço, nas viagens Brasil-afora, nas inúmeras tardes nos sebos em São Paulo,
enfim... meu coração foi tomado por uma nostalgia que veio de mãos dadas com
uma sensação de tristeza e perda. Compartilhei a notícia com minha esposa, e as
lágrimas vieram-nos aos olhos. Isolei-me por um momento, meditei e ocorreu-me
um lampejo reflexivo que, imediatamente, empurrou para longe esse sentimento
negativo pela partida do amigo Amaury.
Lembrei-me do verso de Fernando Pessoa: “A morte é só a
curva da estrada/Morrer é não ser visto”. A construção da nossa eternidade
começa aqui e agora, e só sucumbe à morte os que se dão ao esquecimento. Morrer
é ser esquecido. Disse em versos Francisco Otaviano: “quem passou pela vida em
branca nuvem/e em plácido repouso adormeceu/(...) foi espectro de homem, não
foi homem/ só passou pela vida e não viveu”. E nesse ponto, meus amigos,
confrades e confreiras, Antonio Amaury foi exemplar. Viveu plenamente um sonho
profícuo, com extensa frutificação, cujas sementes foram espalhadas pelos bons
ventos da arte, da beleza e do conhecimento.
Dito isto, esta solene reunião da ABLAC, nesta tarde de
sábado não é um necrológio, não é um elogio fúnebre. Muito longe disso. O
motivo de estarmos aqui é celebrar a VIDA; é cantar a linda apologia do bem
viver, do cultivar em plenitude o amor e o sonho; é louvar e agradecer a VIDA
de Antonio Amaury Correa de Araújo, Membro Honorário de nossa Academia.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à Deus pelo dom da
VIDA, pois é esse, como já disse, o motivo primeiro de estarmos aqui.
Mas, o que é a VIDA?
Convido-os, agora, a refletir sobre esta que, em apenas
quatro letras, encerra uma multiplicidade de conceitos biológicos, metafísicos
e filosóficos. Seria simplesmente o espaço de tempo entre a concepção e a morte
de um organismo? Seria um processo metafísico contínuo de relacionamentos?
Eu poderia, para responder a essa indagação, citar o
eminente e folclórico professor de Patologia da Faculdade de Medicina do Derby,
em Recife, Aluísio Bezerra Coutinho. Ele disse no seu livro “Da Natureza da
Vida” que VIDA seria de maneira taxativa “a reprodução auto catalítica de
polímeros macromoleculares”. Mas seria a VIDA somente um fenômeno biológico
autolimitado? É ela apenas fruto do acaso, ou foi a VIDA deliberadamente
criada? Reconheço a dificuldade em defini-la, sem pisar em terreno movediço,
onde duelam criacionistas e evolucionistas, às voltas com evidências positivas
e negativas para cada lado.
No entanto, armando-se somente com a luz bruxuleante dos
candeeiros da Biologia, como explicar satisfatoriamente, por exemplo, o
pensamento, esse momento da nossa consciência? Ou a explosão de sentimentos, às
vezes contraditórios, que experimentamos ininterruptamente? Seria tudo isso
produto exclusivo do ballet químico dos neurotransmissores?
Antônio Amaury e Leandro Cardoso em São Paulo
O Professor Adauto Lourenço, PhD em Física e pesquisador
pela UNICAMP diz que “a função da Ciência não é provar como o Universo e a Vida
surgiram espontaneamente, mas como teriam surgido. Espontaneamente é apenas uma
das hipóteses”. E vai mais longe, quando sugere que “átomos e energia não criam
as leis da Natureza; eles obedecem a essas leis”.
Pelas lentes de Isaac Newton, e com olhos da fé, Deus está
por trás destas leis. A Ele, portanto, minha gratidão por estarmos hoje aqui
reunidos, mesmo que fisicamente distantes.
Voltemos, entretanto, ao nosso raciocínio: saiamos da
Teologia e dos embates entre as teorias científicas e deixemos que a poesia
pungente do pernambucano de Parnamirim, Antonio Marchet Callou defina a VIDA:
“Vida – é amargura doce,/ Vida – uma doçura amarga./ A vida
é como se fosse/ Via, ora estreita, ora larga”.
Trilhamos todos nós esta estrada sinuosa, onde sobram nas
curvas amarguras, frustrações, paixões, abnegação, gratidão, beneficência, o
que levou o grande Guimarães Rosa a afirmar que: “no viver tudo cabe”. E é
Gandhi quem dá o arremate, quando diz que “a arte da vida é fazer da vida uma
obra de arte”.
Eu os convido, então, a celebrar comigo uma verdadeira obra
rara da arte do viver. Uma Vida cujos alicerces foram feitos com a argamassa do
amor; as paredes levantadas com os tijolos da generosidade, e revestidas com o
brilho do serviço e da disponibilidade. Se “a Geografia prefigura a História”,
como disse Euclides da Cunha, as boas obras precedem os homens de bem.
A infausta notícia da ausência física de Antonio Amaury
entre nós, não pode extinguir sua VIDA, posto que, além do físico, ele vive nas
nossas melhores recordações e na indiscutível perenidade que permeia a
substância de sua obra. No universo do estudo do Cangaço, dentro e fora da
ABLAC, Antonio Amaury é imortal. Cabe aqui, entretanto, duas palavras sobre o
que seja a Imortalidade Acadêmica, antes de nos ocuparmos de uma breve
exposição da biografia e da obra do nosso querido homenageado de hoje.
O termo Academia derivou de Academus, o herói grego que
revelou aos gêmeos Cástor e Pólux onde Helena havia sido escondida por Teseu.
Em homenagem a este herói, foi preservado o jardim onde ele vivia: o “jardim de
Academus”. E foi exatamente neste lugar onde o filósofo, Platão reuniu seus
discípulos e fundou sua escola filosófica, a Academia.
Mas foi somente na Europa do século XV que se utilizou o
termo Academia para designar grupos de estudo e preservação de cultura
clássica. Assim, as Academias dos mais diversos segmentos do conhecimento e das
artes congregam indivíduos que reconhecidamente trazem uma bagagem relevante de
contribuição em área específica, ou até além dela.
A nossa Academia Brasileira de Letras e Artes do Cangaço
(ABLAC) foi fundada em 25 de julho de 2019 e é capitaneada de magistralmente
pelo nosso presidente Archimedes Marques e sua diretoria. A ABLAC hoje é um
farol a iluminar, para curiosos e estudiosos dos temas afeitos à história e à
cultura nordestina, os caminhos que levem à pesquisa científica séria, ao
respeito, à ética, e ao diálogo, como condições indispensáveis para um estudo
em alto nível do cangaceirismo, suas adjacências e desdobramentos. E, ao cruzar os umbrais da Academia, chega-se, então, à
imortalidade. Minhas senhoras e meus senhores, confrade e confreiras.
Antônio Amaury, Leandro Cardoso e Luiz Ruben
Agora, passo a ocupar-me do imortal, Antonio Amaury Correa
de Araújo, que nasceu em Boa Esperança do Sul, São Paulo, em 22 de novembro de
1934, e que vive eternamente na memória e nos corações dos seus familiares, dos
seus leitores e dos seus amigos. “A Amizade é o vinho da vida”, disse Edward
Young, poeta inglês; e celebrar uma amizade eterna é deliciar-se com o doce néctar
da melhor das safras.
Amaury era filho de Elydio Correa de Araújo e Benedita
Abdala de Araújo. E foi aos oito anos de idade, por intermédio de sua avó
materna, que caiu em suas mãos um folheto em prosa sobre Cristino Gomes da
Silva Cleto, o Capitão Corisco, despertanto-o para o tema Cangaço. Mal podia
imaginar o pequeno Amaury ao debruçar-se sobre as páginas daquele folheto que
algumas décadas adiante ele mesmo hospedaria em sua casa Dadá, a viúva do
perfilado. Vejam só.
Depois de completar seus estudos iniciais no Colégio São
Bento em Araraquara (SP), Amaury ingressou na Faculdade de Odontologia na
UNESP, e a graduou-se também na Escola de Belas Artes, também em Araraquara.
Já na capital
paulista, trabalhando como odontólogo em alguns sindicatos como o da Congás, da
Construção Civil, dos Condutores de Veículos e também na lida do seu
consultório privado, Amaury estabeleceu contato com pessoas ligadas ao fenômeno
Cangaço, como ex-cangaceiros, ex-volantes, vítimas, parentes das personagens,
etc... Afinal, como disse certa vez o cantor e compositor Belchior: “o
nordestino ou sobe pra São Pedro ou desce pra São Paulo”, sendo esta a maior
capital nordestina do mundo. Juntando todo esse material humano e a
disponibilidade do seu consultório de Odontologia, Amaury viu-se diante de um
interessante laboratório improvisado de Antropologia e História, moldado pelos
atendimentos do dia a dia. Logo, logo, tornou-se amigo e compadre de Cila, Zé
Sereno, Criança, Balão, Dadá... e, de registro em registro, materializava-se o
maior banco de dados do Brasil sobre o Cangaço: milhares de fotos,
cartas, documentos e gravações que, sem medo de errar, deve ultrapassar as 7000
entrevistas.... Entre elas Sebastião Pereira, Cajueiro, o Coronel João Bezerra,
Mané Velho, Antonio da Piçarra, dentre outros...
Em pouco tempo, Amaury já era conhecedor do assunto, apesar
de muito jovem. Prova disso é que Rodrigues de Carvalho pediu opinião a ele
sobre os originais de “Lampião e a Sociologia do Cangaço” para que ele fizesse
correções, as quais incorporou na publicação. Era esse o começo de uma notável
carreira como escritor e pesquisador.
Ainda no final dos
anos 60 contribuiu para o roteiro do filme “Corisco, o Diabo Loiro” de Carlos
Coimbra, grande sucesso do ciclo do Cangaço no nosso cinema. A seu convite,
Dadá confeccionou toda a indumentária dos cangaceiros utilizadas no filme, que
tinha como atores principais Leila Diniz e Maurício do Vale.
Nos anos 70, aceitou o desafio de responder sobre Lampião no
programa de perguntas e respostas, da Rede Globo, “8 ou 800”, apresentado pelo
ator Paulo Gracindo, e dele saiu premiado. Sua expertise no assunto passou a
ser reconhecida em todo o Brasil. A partir daí, multiplicaram-se convites para
assessorar novelas e programas de televisão, destacando-se aqui o episódio
piloto do “Globo Repórter”, “O Último Dia de Lampião”, dirigido por Maurice
Capovilla. Vale ressaltar que este programa fora baseado em um livro seu “Assim
Morreu Lampião”, um grande sucesso e ainda hoje imbatível como obra referencial
sobre o epílogo do Rei do Cangaço. Neste trabalho clássico, pela primeira vez,
foram enfeixados os depoimentos dos que sobreviveram ao Combate do Angico,
fossem volantes, cangaceiros ou coiteiros. Este livro antológico sedimentou um
novo modo de se “escrever” sobre o cangaço, dando voz a uma literatura que tem
como esteio metodológico os registros de memória oral de sobreviventes dos
episódios da crônica histórica cangaceira.
A partir daí, vieram outros clássicos como o excepcional
“Lampião: As Mulheres e o Cangaço”, que de maneira pioneira aborda o universo
feminino na crônica cangaceira. A obra é até hoje um dos melhores trabalhos
escritos sobre o tema, que de maneira corajosa e inusitada, mostra o lado
sofrido e guerreiro das mulheres corajosas, bem como das vítimas daqueles
tempos brabos.
Dos seus mais de 10 livros sobre o assunto, gostaria de
elencar os parceiros, que, sob sua impecável orientação, publicaram trabalhos
que se tornaram referenciais, na já extensa bibliografia sobre o assunto: cito
aqui Vera Ferreira Nunes (“O Espinho do Quipá” e “De Virgolino a Lampião”);
Luiz Ruben Bonfim (“Lampião e a Maria Fumaça” e “Lampião e as Cabeças
Cortadas”, Carlos Elydio (“Lampião: Herói ou Bandido?” e Leandro Fernandes
(“Lampião: A Medicina e o Cangaço”).
Amaury teve
importante e vasta participação em documentários: cito de maneira especial aqui
sua contribuição ao trabalho de Aderbal Nogueira, nosso Benjamim Abrahão da
contemporaneidade, que viabilizou notáveis entrevistas com o mestre Amaury.
Cito também aqui o excepcional “Os Últimos Cangaceiros”, de Wolney Oliveira,
filme premiado pelo mundo afora, figurando hoje entre os 100 melhores filmes
latino-americanos da década, que contou com a consultoria histórica do mestre.
Dona Rene e Antônio Amaury
Antes de finalizarmos, não poderia deixar de falar aqui da
maravilhosa família formada pelo casal Antonio Amaury Correa de Araújo e René
Maria Tavares de Araújo. Deste feliz matrimônio, ocorrido em 31 de dezembro de
1961, vieram 3 filhos: Antonio Amaury Junior, Carlos Elydio e Sérgia Renée,
cujo nome foi homenagem à Sergia Ribeiro Chagas, a Dadá, comadre de Antonio
Amaury e Dona René; o genro Nelson Romano, os netos Marcelo e Henrique, e agora
uma linda bisnetinha, recém-chegada. Aqui, mando meu abraço carinhoso de
admiração e agradecimento à Dona René pelo acolhimento dispensado a mim e minha
família; seu exemplo de esposa, mãe, companheira, avó, sogra, que sem dúvida,
permitiu que Antonio Amaury pudesse estender para as lonjuras o alcance do seu
trabalho. Eu, minha esposa Raissa e minhas filhas Cristina e Laura temos muitas
saudades do convívio com todos vocês, que perfumaram as nossas vidas.
Para terminar, gostaria de mais uma vez recitar o soneto que
fiz no dia em que meu amigo Antonio Amaury despertou para a eternidade.
Deixemos sangrar o açude do peito com lágrimas de alegria por termos convivido
com um homem bom, íntegro, que, passando à larga da mediocridade, contribuiu
para que nos uníssemos em torno de um tema que, outrora ponteado pela
violência, hoje é o palco de harmonias, congraçamento, amizades e o carro chefe
da melhor cultura do mundo.
SONETO EM PRECE
Ao amigo Antonio Amaury Correa de Araújo
Dos cangaceiros ele ouviu depoimentos
E dos Volantes colheu muitas entrevistas;
Investigando sempre rastejava as pistas
Para entender do sertanejo os sofrimentos.
Escuto o choro, entre soluços e lamentos,
De iniciantes aos grandes conferencistas,
Na despedida deste grande entre os paulistas,
Que nos brindava com tantos conhecimentos.
Agradecendo a sua ajuda, afinal,
Na mão sincera que estendeste a quem quisesse
Aprofundar-se nos estudos do Sertão...
Eu mando, amigo, pra Mansão Celestial
Um abraço forte que eu envio nesta prece
Banhado em lágrimas, saudade e gratidão.
Muito obrigado."
Leandro Cardoso Fernandes, médico, pesquisador e escritor Conselheiro do Cariri Cangaço Acadêmico da ABLAC , Membro da SBEC.