Trajeto de vida traçado com sangue...

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Olho no Olho...
Por Julio Cesar Ischiara!

Virgulino por Marcel Fukuwara


A Psicologia do Cangaço foi muito bem analisada por Juracy Marques no livro Maria Bonita: Diferentes contextos que envolvem a vida da Rainha do Cangaço, organizado juntamente com meu querido amigo João de Sousa Lima. Entretanto, a análise em questão é de base psicanalítica, para se conhecer razões de comportamento de um grupo ou categorias de grupos humanos como líder, liderado, opressor e oprimido, que é comum tanto para cangaceiros como para políticos, soldados, estudantes, trabalhadores, etc.

De forma alguma quero desmerecer a análise feita nesse livro, pois considero um trabalho perfeitamente realizado e embasado numa ciência que amo e pratico como profissional. Falar para um público leigo, numa análise psicanalítica, sobre libido, mecanismos de defesa, castração, idealização, etc., é um trabalho árduo, que Juracy Marques expôs com rara competência. Explica a devoção dos componentes do grupo ao seu líder Lampião, onde diz que há um desejo de ser igual a ele, atribuindo algumas características que não são reais, como se ele fosse um deus:“Diz que no caso da identificação, o ego se “enriquece”, pois supõe qualidades às características do objeto, do líder, apesar da sua condição de servidão. Já na idealização ele se “empobrece”, uma vez que se entrega totalmente a ele, idealiza coisas que não possuem existência real. Divinifica-o” (Lima, 2010:pg. 62 e 63). À análise psicanalítica de Juracy Marques, gostaria de acrescentar questões sociológicas que contribuíram na formação do grupo de Lampião e que são analisadas à luz das teorias psicológicas aplicadas, também, às questões grupais.

Julio ao lado de sua esposa, Juliana ischiara, em noite de Cariri Cangaço
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Virgulino Ferreira da Silva nasceu nos últimos anos (1898) do século XIX, em pleno sertão nordestino, filho de família religiosa e trabalhadora. Os valores morais de então eram sagrados e seguidos religiosamente, principalmente a honra, primeiro aos pais e à família. O nordeste brasileiro, em particular, vivia e vive até hoje, num patriarcado machista, onde as ordens do pai eram seguidas à risca, mas a mãe sempre tinha uma influência importante nos destinos familiares.

A formação moral de Virgulino Ferreira da Silva não foi diferente daquela dos meninos de sua idade, mas, por suas características físicas, habilidades e inteligência diferenciadas, destacou-se na destreza do trato de animais, no aproveitamento dos conhecimentos adquiridos em suas viagens como almocreve e, com o tempo, no manuseio de armas, sem contar o aprendizado de técnicas militares, destacando-se como líder. Existiam duas classes sociais, aquela que mandava e a outra que obedecia. Nessa dicotomia existencial, o tratamento dedicado à prole, também era diferente, pois os filhos dos poderosos tudo podiam e tudo lhes era permitido. Além disso, conviviam juntos, brincavam juntos e cresciam juntos. Entretanto, quando perto da vida adulta, tinham que cuidar de suas vidas, onde aqueles que serviam continuavam servindo ao senhor das terras ou seguiam outros caminhos e assim foi com Virgulino e Zé Saturnino.
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Enquanto o pai de Virgulino era pacifista e tudo fez para evitar que a família entrasse em conflitos, mudando-se com freqüência por ser vítima de perseguições, o pai de Zé Saturnino permitia e contribuía para que o filho tomasse as atitudes que queria, o que determinou o rumo da vida desses personagens.Como não se admitia “levar desaforo para casa”, as divergências eram resolvidas à base da força bruta e a coragem para tanto, ainda hoje, é buscada através da bebida e, quando a tarefa não era cumprida, ficava adormecida no íntimo do desrespeitado, crescendo sempre que alguém lembrava do desaforo recebido, donde sempre temos notícias de atos praticados por pessoas em estado de embriaguês. 
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A trajetória de crimes de Virgulino Ferreira da Silva teve motivações sociais e, não acredito que tenha sido por uma personalidade sociopática ou sádica como acreditam alguns, pois, o seu comportamento não se enquadra num diagnóstico psiquiátrico de psicopatia. Evidente que muitos de seus atos foram cruéis e alguns comportamentos podem ser descritos como diferentes, como a vaidade, a religiosidade exacerbada, o gosto por jóias e seu aguçado sexto-sentido, que são reflexos da pressão psicológica da responsabilidade de ser um grande líder, de protetor e cuidador de sua gente.

Não há um grande líder na história universal que não tenha sido excêntrico, apresentando gostos e comportamentos considerados estranhos para a maioria dos simples mortais. Primeiro por que sua condição de detentor do destino dos seus seguidores e do poder de decisão inquestionável de seus atos, a satisfação dos seus desejos não tem freio moral ou o superego atuante e, assim, seus desejos devem ser satisfeitos sem contestações. Há um dito popular que diz que “se você quer conhecer, realmente, uma pessoa, dê poder a ela”.
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Além disso, no caso de Virgulino, que se transforma no mito Lampião, os desejos e prazeres possíveis numa vida em fuga pelas caatingas nordestinas eram poucos e muitos dos atos mais perversos atribuídos a ele são questionados por grande parcela de estudiosos do cangaço. Um desses prazeres tem ligação direta com a entrada das mulheres no cangaço, onde entramos em outra perspectiva: a questão de gênero e da sexualidade. A vida das mulheres do sertão nordestino seguia a tradição judaico-cristã: cuidar dos afazeres domésticos, casar e ter filhos. Viviam sob as ordens do pai e, depois, dos maridos. Maria de Déa casa-se jovem e mantém um relacionamento tumultuado com seu marido, namorador e estéril. Possivelmente, o fato de não alcançar a maternidade, tenha contribuído para aumentar suas frustrações e diminuir o gosto pelo seu companheiro, facilitando sua vulnerabilidade às investidas amorosas de Lampião e à perspectiva de uma vida de emoções, riquezas e prazeres, presentes nas fantasias que o modo de vida no cangaço oferecia, não muito diferente nos dias de hoje, onde o sonho das meninas é de uma vida nas passarelas e nos palcos, atuando como modelos, atrizes, dançarinas ou cantoras, participando de festas e namorando com homens ricos e famosos.



Jovem, com aproximadamente 20 anos de idade, pressionada pelas agruras advindas das pressões infligidas aos seus pais, por serem amigos dos cangaceiros, decide seguir com Lampião, mudando definitivamente as características do cangaço. O precedente levou, quase que imediatamente, outras 40 mulheres para o cangaço, tornando as investidas criminosas do grupo menos brutais, diminuindo, inclusive, a prática de estupros.


Segundo João de Sousa Lima, Maria de Déa tinha um temperamento que era de difícil convivência. Amorosa com alguns, perversa com outros, seu procedimento variava de acordo com seu humor, simpatia ou antipatia por alguém e, este comportamento, não é diferente de muitas pessoas, não sendo considerado, portanto, patológico. Reconhecidamente tratada como companheira de Lampião e alvo de críticas a respeito da sua entrada no bando, não seria aceitável ser vista como simples objeto dos prazeres do líder e com pouca autoridade, tanto entre as outras mulheres quanto aos subalternos masculinos e, sendo assim, seu comportamento trouxe seguidores e opositores.


Notadamente o cangaço tornou-se mais humanizado com a entrada das mulheres, entretanto, operacionalmente, as atividades continuaram as mesmas, exceto pelo fato de que os homens passaram a tomar mais cuidado em relação a elas, evitando alguns confrontos, desviando rotas para encontrar um coito seguro para os partos e a busca por tutores para seus filhos, aumentando as responsabilidades e os cuidados com a segurança. Portanto, a energia libidinal dos cangaceiros estava canalizada para suas mulheres, diminuindo assim, grande parte das perversidades cometidas com suas vítimas.


Poucas mulheres pegaram em armas para combater e raras foram aquelas que tiveram algum destaque nos bandos. Sendo assim, não podemos creditar que a motivação tenha sido a vida cangaceira, com suas grandes batalhas, fugas espetaculares e grandes caminhadas pelas caatingas secas e espinhentas, mas a vida que os cangaceiros ofereciam a elas, de amores, sexo, jóias, dinheiro e uma pseudo liberdade. Esse foi o grande atrativo e objeto da decisão da maioria dessas mulheres.

Embora muitos cangaceiros tenham perfil psicopático, como Corisco por exemplo, os grupos que se formaram à época, cangaceiros e volantes, tinham finalidades, objetivos bem definidos.


Os cangaceiros escolheram a vida de foras-da-lei, portanto, roubar, saquear e matar eram suas atividades/objetivos e, para tanto, deveriam ter condições de fugir e estratégias de combate. Matar, roubar e/ou morrer eram uma condição natural de vida, portanto, a truculência, violência, barbárie ou que nome se dê a isso, faz parte do pacote e torna os homens e mulheres mais embrutecidos. As volantes eram constituídas por policiais contratados e outros agregados, seja por vocação ou por necessidades financeiras ou sociais. O governo federal, à época, estava direcionando os recursos financeiros para o eixo São Paulo-Minas Gerais, deixando o nordeste brasileiro entregue à própria sorte, cortando recursos, paralisando obras e aumentando o desemprego, dando pouco ou nenhum suporte às forças policiais que não tinham treinamento ou qualquer critério para o alistamento.
 

Podemos considerar os nazarenos como exceção à regra, pois este grupo foi formado com um objetivo muito bem definido: combater Lampião por questão de honra. Sentiram-se ofendidos e queriam cobrar pelo que consideraram uma afronta aos seus brios. Eram corajosos e perseverantes em seus objetivos.

Enfim, quanto ao que havia de comum entre as três entidades vistas aqui, podemos citar o clima político local, com o mando e desmando dos coronéis e políticos, o flagelo climático gerador de fome, desemprego e submissão, o clima político nacional, onde o nordeste era visto como um fardo e, sendo assim, desprezado e abandonado e a cultura de então, onde as desavenças eram resolvidas com o preço da vida, na base da bala ou do punhal.


Particularmente não vejo outra perspectiva de vida para Virgulino, Maria de Déia e nazarenos, pois, o trajeto de vida desses protagonistas foi traçado com sangue e não gostaria de entrar na perspectiva judaico-cristã de dar a outra face diante de tantas desgraças e, além de tudo, a personalidade dessas pessoas era muito peculiar e, com certeza, não agüentariam uma vida de submissão aos poderosos de então e, quanto aos nazarenos, era uma questão de sobrevivência e de honra.


Meu amigo Severo, espero ter cumprido a missão que me foi confiada e lembro que muitos aspectos não foram analisados devido às diversas contradições em relação a alguns fatos acontecidos. Levei em consideração os relatos considerados verdadeiros pelos livros e discussões com os grandes mestres do cangaço. É fato que há muito a ser dito, sou iniciante nesse mundo apaixonante do estudo do cangaço e, portanto, passível de falhas que podem ser importantes nessa análise. Entretanto, que seja um pequeno marco para estudos mais profundos sobre essas grandes figuras da nossa história.

Um grande abraço amigos do Cariri Cangaço...


Julio Cesar Ischiara

Psicólogo-Quixadá-Ce.
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15 comentários:

José Mendes Pereira disse...

Valeu Julio César Ischiara, uma grande prova de conhecimentos sobre o cangaço do nordeste.
Realmente no nordeste brasileiro existia os que mandavam, os autoritários, e os que baixavam as cabeças por temerem algo mais, obedeciam covardemente.

Mas ainda existe por aí nesse Brasil afora, os chamados coronéis que mandam e desmandam.

José Mendes Pereira - Mossoró-RN.

Lima Verde disse...

Caro Julio Cesar Ischiara, parabens pelo lucido e bem escrito artigo, digno de um atento estudioso do tema, saudações.

Fernando Cesar Lima Verde

Anônimo disse...

Grande Julio, que bom que pessoas como você nos enriquecem, foi muito bom conhece-lo mais de perto, só lhe conhecia a distância. Você é um cara descente. Em breve o grande Raul Seixas vai brinda-lo com algumas raridades. Um abraço de um seu grande amigo e agora também admirador, lembranças a amiga Juliana.

Julio Cesar disse...

Meu amigo Aderbal Nogueira... voce precisa entrar no mundo digital...rsrs...
Só o reconheci em seu escrito porque não esqueci da sua promessa das raridades de Raul Seixas...

Saudades meu amigo e quando vier pelas bandas de Quixadá e Quixeramobim, não deixe de avisar.

E aquela filmagem o ônibus, serviu?

Abraços

Julio Cesar disse...

Caros Prof. Pereira e Fernando Lima Verde obrigado pela gentileza.

Abraços

IVANILDO SILVEIRA disse...

AMIGOS SEVERO E JÚLIO :

FICO FELIZ EM ABRIR A TELA DESSE BLOG, E VÊ UM ARTIGO, TÃO MARAVILHOSO E BEM ESCRITO PELO NOSSO AMIGO JÚLIO.
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CONCORDO COM VOCÊ JÚLIO, QUANDO AFIRMOU:
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"A trajetória de crimes de Virgulino Ferreira da Silva teve motivações sociais e, não acredito que tenha sido por uma personalidade sociopática ou sádica "
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SÃO ARTIGOS LÚCIDOS, COMO ESSE, QUE NOS AGUÇAM A MEMÓRIA, NO SENTIDO DE QUE, AINDA, PRECISAMOS ESTUDAR MUITO SOBRE O FENÔMENO DO CANGAÇO, E SUA INFLUÊNCIA NA CULTURA NORDESTINA.

ALGUNS ELEMENTOS DE NATUREZA SÓCIO-PSICOLÓGICOS ENFOCADOS NO BRILHANTE TEXTO,LOGO ACIMA, SÃO FUNDAMENTAIS PARA SE ENTENDER A SAGA DO CANGAÇO, E DE SEUS PERSONAGENS.

VALEU JÚLIO. PARABÉNS !

Um abraço a todos
IVANILDO SILVEIRA
Colecionador do cangaço
Natal/RN

Anônimo disse...

Alcino

Júlio, o seu artigo postado no blog do Cariri Cangaço foi algo
verdadeiramente extraordinário. Digno de sua inteligência e capacidade
muito acima do limite. Parabéns por tão bela lição de conhecimento,
destrinchando, assim, o viver mental e psiquico de Maria Bonita, suas
companheiras de infortúnios, Lampião e todos os cangaceiros.

Claro! Eu sei que sou suspeito em me reportar sobre a sua grandiosa
competência, de vez que você e Juliana são pessoas importantíssimas de
minha vida. Mesmo assim, eu jamais poderia deixar de parabenizá-lo por
tão espetacular postagem.

Abraços, em você e em Juliana, a minha amada dupla caipira do Cariri
Cangaço e da minha vida.

Alcino Alves Costa
O Caipira de Poço Redondo

Anônimo disse...

Muito bom, concordo com o Dr Julio Ischiara, é preciso olhar o cangaço de maneira mais racional, parabens Dr Julio pelo artigo que em muito nos ajuda a compreender o perfil desses homens e mulheres que entraram na vida errante cangaceira.

Gregório Matos

Anônimo disse...

Caro Julio, só gostaria de entender melhor quando vcv fala que "E muitos dos atos mais perversos atribuídos a ele são questionados por grande parcela de estudiosos do cangaço." Pode se explicar melhor.

Saudações,

Mariana (João Pessoa)

Anônimo disse...

Grande Julio,

Saudações cangaceiras!

Parabéns pelo artigo, objetivo, prático e com análises bem elaboradas. Sem sombra de dúvidas, são abordagens nessa perspectiva que devem ser tomadas por aqueles, os quais, se prontificam a estudar o cangaço, pois, na minha humilde visão, já passou a fase de meras discrições factuais das ações dos cangaceiros e volantes.
Avancemos...

Abraços!

Prof. Wescley Rodrigues
Brasília - DF

Anônimo disse...

Professor Julio Cesar, parabens, sua analise nos possibilita entrar em contato com outro olhar.

Marilia Ferreira

Julio Cesar disse...

Mariana, alguns atos atribuídos a Lampião são contestados ou negados por alguns autores, como por ex. "aparar uma criança na ponta do punhal", "prender os testículos de um rapaz numa gaveta, trancando-a com a chave, dando a opção entre a morte ou cortar os próprios testículos", etc... etc...

Infelizmente o texto estava ficando muito extenso para postar num blog e algumas observações tornaram a compreensão ou interpretação um pouco prejudicada.
Grande abraço

CARIRI CANGAÇO disse...

Júlio como sempre "preciso" , abração meu camarada.

Severo

Julio Cesar disse...

Amigo Severo, agradeço a oportunidade de participar desse blog maravilhoso.

Um grande abraço e conte sempre comigo.

Anônimo disse...

Amigo Julio- saude-parabens pelo excelente trabalho.Agradeço a publicação desse maravilhoso texto que ampliou em muito o meu conhecimento sobre o tema.Receba o meu fraternal abraço - recomendações a Juliana. Alfredo Bonessi - GECC - SBEC