Longa seria a lista
e certamente assunto para muitas laudas a história da repressão ao banditismo
nos sertões do Nordeste, notoriamente no período em que o cangaço experimentou
modificações expressivas no seu modus
operandi, atingindo um nível de sofisticação profissional adredemente
estruturada pela astúcia militar e estratégica de Virgolino Ferreira da Silva,
o Lampião. Para combatê-lo e aos seus subgrupos, sob diferentes comandos,
fizeram-se necessárias articulações políticas entre os estados atingidos[1].
Considerável dispêndio de recursos públicos, reciclagem das forças policiais
regulares e das suas formas de combate, como também, a incorporação de contratados eventuais, geralmente moradores das caatingas, afeitos
ao terreno e conhecedores dos socavões por onde transitavam os bandoleiros, em
verdade, guias sem os quais soldados e oficiais encontrariam enormes
dificuldades de locomoção e orientação. Muitos deles tornaram-se rastejadores, isto é, indivíduos que
divisavam em meio ao ambiente hostil e ilegível aos olhos leigos, as marcas
deixadas pelos bandos marginais.
Ao comentar os preparatórios do capitão Chevalier, Humberto de Campos evidencia está mais familiarizado com as táticas e estratégias de luta dos adornados combatentes das caatingas. De chofre, sem maiores rodeios, chama a atenção do público leitor para o inédito conjunto de homens, armas e apetrechos a ser empregado na Campanha, afirmando que para justificar tão onerosa e complexa operação, os seus planejadores, à frente o oficial irredento de 1930, ancoravam-se na perspectiva de bater-se com uma quadrilha composta por 150 homens. Então Campos pondera explicitando conhecimento de causa:
E há nisso, evidente exagero. O cangaço profissional, para ser exercido
com eficiência, prescinde de grandes grupos, que lhe comprometeriam a
finalidade. A sua tática reside na mobilização rápida, na facilidade da
dispersão no momento do perigo, e esta não é possível se os cangaceiros
dispusessem de contingentes consideráveis. Antônio Silvino[2]
jamais admitiu mais de uma dúzia de cabras,
e Lampião
nunca reuniu mais de 40, e isso mesmo para entrar em Juazeiro, temendo uma surpresa
de Padre Cícero[3].
É sabido, mesmo, que o seu processo consiste em reduzir os seus contingentes à
medida que é perseguido, de modo a desorientar os perseguidores, eclipsando-se
na caatinga (CAMPOS, pp. 31, 32).
A citação
conscientemente longa se impôs em decorrência da relevância de algumas
observações nela contidas, que ratificam nossa percepção de que o articulista
àquela altura já conhecia maiores detalhes sobre o modo de guerrear de Lampião
e seus seguidores, observações estas que grifamos no trecho citado.
Vale ressaltar igualmente que em Mossoró, para citar das mais infelizes sortidas de Lampião contra uma localidade, os sitiantes somavam mais de 150 homens, muito embora fosse um somatório de bandos que atuavam dispersos e independentes, inclusive nos seus comandos. Portanto, época houve, antes de ingressar na Bahia em 1928, que os agrupamentos eram mais numerosos, ao revés do mencionado no texto.
Interessante é que Campos já se refere ao “cangaço profissional”, num tempo em
que a vida bandoleira no Nordeste ainda era analisada sob outros prismas.
Vale ressaltar igualmente que em Mossoró, para citar das mais infelizes sortidas de Lampião contra uma localidade, os sitiantes somavam mais de 150 homens, muito embora fosse um somatório de bandos que atuavam dispersos e independentes, inclusive nos seus comandos. Portanto, época houve, antes de ingressar na Bahia em 1928, que os agrupamentos eram mais numerosos, ao revés do mencionado no texto.
Independente das ponderações expressas fica, entretanto, o reconhecimento de que “o jovem oficial revolucionário vai prestar, todavia, um relevantíssimo serviço a sua terra, com essa expedição” (CAMPOS, p. 32). Mas, cauteloso e reflexivo adverte o capitão Chevalier: “Para combater cangaceiros, faz-se mister mais a habilidade individual do que a bravura, e mais perfídia vulpina do que, propriamente, arte militar”.(ibid. p. 32). Ou seja, o expedicionário teria que usar de “perfídia vulpina”, ou melhor, usar a sagacidade, a esperteza, a mobilidade da raposa, animal que integra a fauna catingueira, prevendo adiante
“[...] que vamos assistir a um duelo entre
a artimanha de um bandoleiro e a intrepidez de um verdadeiro soldado, ou, mais
caracteristicamente, um encontro entre um cavaleiro que maneja um florete e um
bárbaro que avança contra ele sustentando com a s duas mãos a sua formidável tangapema (grifo nosso) de maçaranduba”
(CAMPOS, passim).
O contraponto entre
civilização e barbárie que neste extrato fica delineada no confronto entre “o
cavaleiro que maneja o florete” e o bárbaro munido de tangapema – mesmo que
tacape, borduna, armas de guerra indígenas – representado pelos homens do
cangaço, foi usado reiteradamente por Euclides da Cunha designando os
camponeses sublevados em Canudos, tratamento reincidente em outros autores
quando historiaram as insurreições do Contestado[4] e
Pau-de-Colher[5], levantes rurais, nos
quais milhares de seres humanos foram sacrificados com requintes de crueldade
pelas armas “civilizatórias” do Exército e das forças policiais dos estados
beligerantes.
Não nos esqueçamos das volantes e suas arbitrariedades e violências, quando soldados representando os Governos, estadual e federal, comportavam-se de forma truculenta. Lamentável por tudo a referência aos índios brasileiros, vítimas de agressões e dizimados durante séculos pelos colonizadores, latifundiários e autoridades dos mais diversos calibres e procedências. Afrancesada e recolhida ao conforto das cidades, especialmente as litorâneas, a intelectualidade brasileira ou a maior parte dela costumava “chamar de feio tudo que não era espelho”, parafraseando Caetano Veloso, e Humberto de Campos não era exceção, carregando sobre o seus ombros o pesado fardo do “espírito da época”. Volta-se posteriormente para aquilo que considera ultrajante para o país e sem rebuços, direto e incisivo opina:
Não nos esqueçamos das volantes e suas arbitrariedades e violências, quando soldados representando os Governos, estadual e federal, comportavam-se de forma truculenta. Lamentável por tudo a referência aos índios brasileiros, vítimas de agressões e dizimados durante séculos pelos colonizadores, latifundiários e autoridades dos mais diversos calibres e procedências. Afrancesada e recolhida ao conforto das cidades, especialmente as litorâneas, a intelectualidade brasileira ou a maior parte dela costumava “chamar de feio tudo que não era espelho”, parafraseando Caetano Veloso, e Humberto de Campos não era exceção, carregando sobre o seus ombros o pesado fardo do “espírito da época”. Volta-se posteriormente para aquilo que considera ultrajante para o país e sem rebuços, direto e incisivo opina:
“”A
impunidade de Lampião constitui, sem
dúvida, uma vergonha para a nação brasileira, e reclamava, de há muito, a
intervenção do Exército, isto é, de forças da União, para acabar com o
escândalo da sua sobrevivência. Mas não reclamava, talvez, a honra de uma
expedição tão vultosa, como essa que lhe está destinada”. (grifo nosso). (CAMPOS, ob. cit. p. 33).
Retoma a tese de
uma intervenção federal como resolução adequada pata enfrentar a resistência obstinada e ardilosa dos cangaceiros,
sem perder de vista, contudo, o juízo sobre o exagero das forças e equipamentos
mobilizados para a tarefa, considerando que talvez “o Diabo não seja tão feio
com se pinta”.
Logo mais vai
descer ao terreno das especulações ao tomar como exemplo episódio ocorrido com
o rei de Túnis, que tendo sua cidade arrasada pelas tropas de Luiz XIV, Rei de
França, teria afirmado aquele monarca que pela metade dos gastos dispendidos
pelo Rei Sol para por abaixo “o velho
porto africano”, ele próprio executaria a tarefa pela metade do valor gasto, o
que pouparia vidas e recursos. Logo volta a realidade dos fatos e escreve:
“Amando a agitação e o perigo, o Capitão Chevalier não aceitaria, sem
dúvida, uma proposta de Lampião, no
sentido de lhe darem a metade das despesas da Expedição mediante o seu
desaparecimento do cenário nordestino. [...] O que o seduz é aventura e não o
resultado feliz”. (Idem).
Desavisado
pressupõe ser o Capitão sediado no litoral a recusar proposta do seu “colega”
de patente, o comandante das tropas catingueiras, que tinha para si planos mais
ambiciosos, sonhava ser o “Governador do Sertão”, conforme já propusera em um
dos seus famosos bilhetes, este encaminhado ao Sr. Júlio de Melo, mandatário de
Pernambuco, no mês dezembro de 1926, no qual redigiu a debochada proposta de
uma divisão territorial e de poder. Seria ele Lampião, responsável pela região
sertaneja do território pernambucano, cabendo a Júlio Melo, governar o litoral.
Provocativo garatujou textualmente:
“Faço-lhe esta devido a uma proposta que desejo
fazer ao senhor pra evitar guerra no sertão e acabar de vez com as brigas... Se
o senhor estiver de acordo, devemos dividir os nossos territórios. Eu que sou
Capitão Virgulino Ferreira Lampião, Governador do sertão, fico governando esta
zona de cá, por inteiro, até as pontas dos trilhos em Rio Branco. E o senhor,
do seu lado, governa do Rio Branco até a pancada do mar no Recife. Isso mesmo.
Fica cada um no que é seu. Pois então é o que convém. Assim ficamos os dois em
paz, nem o senhor manda os seus macacos me emboscar, nem eu com os meninos
atravessamos a extrema, cada um governando o que é seu sem haver questão. Faço
esta por amor à Paz que eu tenho e para que não se diga que sou bandido, que
não mereço.
Aguardo resposta e confio sempre[6]”
Como se vê avaliava
mal o acadêmico. Àquela altura, em meados dos anos vinte não houvera Lampião
cruzado o Rio São Francisco rumo a Bahia. Não intentara contra a cidade de
Mossoró, no Rio Grande do Norte, fato ocorrido somente no dia 13 de junho de
1927, mas já se convertera em figura carimbada nos sertões, caminhando
rapidamente para se tornar história e mito, memória e imaginário.
A seriedade do assunto tratado não toldava,
contudo, o fino humor de Humberto de Campos. Finaliza sua crônica de forma imaginativa
e jocosa: “Eu tenho receio, entretanto, que o excesso
de pares comprometa o sucesso da contradança,
e que ouçamos, daqui do litoral, marcação
do celerado sertanejo:- “Dames à droite!.... Chevalier à
gauche!...” E que, como consequência, a quadrilha continue...” (CAMPOS, ibid.
pp. 34,35).
Evocando as
quadrilhas tão animadas e comuns nas festas sertanejas de junho, Campos fez-se
profeta e acertou no alvo: muita água ainda rolaria debaixo da ponte. Mas isso
fica para o próximo capítulo!
Manoel Neto
PESQUISADOR/HISTORIADOR
MEMBRO DO INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DA BAHIA
– IGHB
COORDENADOR DO CENTRO DE ESTUDOS EUCLYDES DA CUNHA
– CEEC/UNEB
[1] Foram
celebrados vários convênios de cooperação entre os Estados molestados pelo
cangaço, dentre os quais destacamos aquele acordado em 1927, entre os dias 28 e
30 de dezembro, cujo principal intuito era coibir com mais veemência a ação dos
coiteiros.
[2] Antônio
Silvino. Nascido Manoel Baptista de Morais, em Ingazeira, Estado de Pernambuco, faleceu na
Paraíba em 1944., Precedeu
Lampião e foi o mais afamado e temido bandido do seu tempo, ganhando o apelido
de “Rifle de Ouro”.
[3]
Lampião visitou Juazeiro do Norte em março de 1926. Lá recebeu a patente de
Capitão, armas, munição e fardamento pra organizar um Batalhão Patriótico, com
o fito de combater a Coluna Prestes. Sobre quem o convidou há controvérsias,
que ainda suscitam debates e dissenções entre os pesquisadores e estudiosos.
[4] A revolta do Contestado eclodiu em 1912, na
região sul do Brasil, em área confluente dos Estados de Santa Catarina e
Paraná. Apesar da forte conotação religiosa do movimento, outros interesses
sócio-econômicos foram decisivos para a sublevação.
[6] Consulta
realizada ao site
http://lampiaoaceso.blogspot.com.br/.
Acesso em 20/02/2013.
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