O fundo maniqueísta primitivo das antigas obras literárias sobre o cangaço e a candidez “matuta” dos artistas populares do Nordeste transformou o cangaceirismo numa fantasia, contada e/ou ensinada como uma lenda. Por um lado, a história de Lampião foi reportada e associada ao imaginário popular, na construção do “super-herói” – tirar do rico para dar ao pobre. Numa outra esfera, a imagem de Lampião foi associada ao bandido cruel, sanguinário e assassino de crianças, dentro outros adjetivos. Neste caso, procuraremos analisar a complexidade que a figura de Lampião assume no contexto territorial do Nordeste brasileiro, sob o âmbito do surrealismo da Literatura de Cordel (utilizamos neste ensaio um total de seis cordéis). Nosso método de trabalho está alicerçado à luz do método de Análise de discurso, haja vista que se trata de um método que tem por base a análise da linguagem. De acordo com Orlandi (2004), a linguagem não é só usada com o objetivo de comunicar e informar literalmente as informações, ela funciona na relação com o político, com a subjetividade, com a ideologia. Assim, interpretamos que a literatura de cordel é uma tradução dos saberes de um povo. A própria memória humana, daí tais narrativas serem carregadas de significados.
O banditismo social do interior do Nordeste brasileiro, caracterizado pelos cangaceiros, tornou-se um marco sócio/cultural para a história da região. Os cordelistas foram os maiores divulgadores das façanhas dos cangaceiros, com ênfase no personagem Lampião. De acordo com barros (2008), o principal intuito destes artistas populares era levar a informação de forma divertida e diferenciada (tirando da alma a arte para perpetuar a sabedoria popular) para milhares de sertanejos que dispunham apenas de conversas entre vizinhos para se manterem informados. Ou seja, faziam o papel de repórteres/jornalistas, com narrativas apoiadas em suas seus imaginários, em suas condições sociais, de forma a endeusar ou endiabrar a figura do rei do cangaço.
O personagem Lampião cumpre o papel de bandido e/ou justiceiro que povoou o sertão nordestino de 1922 a 1938. Época em que a escolha pela vida de bandoleiro podia ocorrer a partir de uma ofensa vingada e seguida de perseguição policial. O isolamento do vingador, nestes casos, seria fatal. Era hora de buscar se fortalecer junto a um protetor respeitado e, assim, a opção mais concreta era “cair no cangaço” e fazer parte de um bando. A partir deste momento, sua vida seguiria um trajeto aventureiro, ousado, incerto, perigoso para si e para quem fosse considerado seu inimigo.
Segundo Barros (2008), Lampião continua vivo na memória dos literatos. Para o nordestino pobre é um herói, e continuará a sê-lo, o paladino da justiça, o simplesmente, o Robin Hood da Caatinga sertaneja. Certamente, o “bandido não só é um homem, como também um símbolo”. (HOBSBAWM, 1975 p.128). Símbolo distorcido de uma reação a uma situação real, lances de coragem, ações e grande estratégia, revelavam enorme inteligência. Ele vivenciou sua condição de lenda em plena juventude.
Diante do exposto, buscamos no surrealismo da Literatura de Cordel uma resposta para a complexidade que a figura de Lampião assume no contexto do Nordeste a partir das diferentes narrativas desencadeadas pelos artistas populares do Nordeste (neste caso, o cordelista) como forma de veiculação das notícias corriqueiras. Portanto, procuraremos compreender a concepção da literatura de cordel, enquanto narrativa de comunicação, assim comoidentificar os arquétipos do exorcismo do cangaço que conferiu ao cangaceiro a estátua de herói/bandido épico que transformou em ícone a imagem de Lampião.
Neste viés, procuraremos desenvolver uma maior reflexão, através de fatos políticos, econômicos e sociais, os valores culturais que alimentam na imaginação popular do ator/cordelista – na antologia do mito do cangaço –, a construção de uma representação simbólico/maniqueista e/ou dualista do personagem Lampião.
Entre as diferentes manifestações culturais e históricas da região nordestina, está a literatura de cordel, que propaga os aspectos folclóricos, na medida em que expõe diversos costumes, personagens (sejam eles imaginários ou reais), crenças, fábulas, histórias e tradições. E, para tanto, se utiliza de uma linguagem variada. Em alguns casos, utilizando-se do humor e da sátira, para expor seus objetivos. Isto é, para abordar diversas temáticas do cotidiano das pessoas (SILVA et al..., 2010, p.7).
Nosso estudo está relacionado à complexidade que a figura do personagem Lampião assume no contexto social do Nordeste brasileiro, à luz da Literatura de Cordel. Neste caso, nos pautaremos em alguns discursos da literatura popular para tentar compreender a epopeia do cangaço enquanto narrativa de comunicação. Para tanto, nos respaldaremos nos artistas populares, em especial aqui, o cordelista – aquele que escreve a Literatura de Cordel – para nos aproximarmos dos arquétipos do exorcismo do cangaço que conferiu a Lampião a estátua de herói/bandido, ou seja, um ícone nacional.
Através do cordel, o poeta põe em relevo desde as agruras do povo nordestino, que se materializam através da fome, de tensões sociais, de pobreza e de dificuldades de condições sociais, até a riqueza artística e cultural, imanentes ao povo da região. Mesmo diante das adversidades, o poeta de cordel não perde de vista sua sensibilidade poética, o que lhe permite inventar e reinventar, no texto cordelino, o que percebe no mundo social e o que compreende dele, de modo a levar ao seu público os dilemas que nele existem, sem, no entanto, deixar de imprimir aos versos uma beleza estética (ARAÚJO, 2007, p. 23-24).
Diante da materialidade dos folhetos de cordéis identificamos um discurso representativo dos temas mais vivenciados pelos atores nordestinos. “Ela reflete as vivências, a imaginação, a fé, a devoção do povo nordestino e, por conseguinte, possibilita a investigação dos mais diversos processos culturais” (SILVA,etal..., 2010, p.6). Haja vista que nos estudos sobre o cordel cada procura traz marcas da época em que se foi feito.
Desde o ciclo do cangaceiro transformado em herói ou com a sua revolta justificada, até a atual substituição das aventuras daqueles personagens “por estórias de sertanejos valentes, ao mesmo tempo que os reis foram transformados em fazendeiros ou senhores de engenho” e os encontros com a polícia “em luta com vigias e capangas”, há indícios de uma reação, que situa – “contra a aplicação da justiça no interior brasileiro” e contra a polícia, “às vezes com métodos muito mais nocivos do que dos próprios cangaceiros” (BELTRÃO, 2001, p. 153-154).
Desta feita, a poesia do cordel é contada em forma de verso, porém com toda uma ideologia simbólica da tradução de um território secularmente reconhecido pelos desacertos sociais, pelas secas permanentes, pelas peculiaridades locais e pelo dualismo social, o território nordestino. De acordo com Silva (2008), o cordel seria uma forma de tradução da vida e dos valores nordestinos, ou melhor: as vozes e (inter) discursos que constituem as representações sociais do Nordeste.
A comunicabilidade dos folhetos agregava pessoas e, com isso, eram disseminadas informações sobre uma variedade de assuntos. O cordel, além de ser utilizado como deleite, funcionava, sobretudo, como uma forma de ensinar para o povo um conhecimento que provinha dele mesmo (ARAÚJO, 2007, p.26).
Os cordéis, folhetos e livretos possuem uma carga simbólica que nos remetem a uma visão positivista do Nordeste do Brasil. Ao mesmo tempo, as características de tais traduções culturais estão relacionadas a uma tradição oral, em que a sua forma escrita busca preservar a oralidade do povo sertanejo, devido ao fato do cordel ser feito não apenas para ser lido, mas sim para ser ouvido, e construído por quem produz do povo e para o povo.
Atuando na vida cultural nordestina, o poeta de cordel expressa, em seus folhetos, sua sensibilidade diante do mundo. Ele também imprime, nesses poemas, de forma crítica ou mesmo conservadora, características próprias de seu fazer poético. Um fazer calcado em experiências de vida, que se materializam nos textos e nos versos, através da representação, interpretação e compreensão do cotidiano de homens e mulheres comuns (ARAÚJO, 2007, p.23).
Neste caso, compreendemos o cordel como a conectividade para a rede da memória, reflexo da escolha coletiva, como também narrativas de reportagens de época, protagonizadas por um poder paralelo ao Estado, o poder dos cangaceiros. Portanto, o cordel seria o elemento representativo da cultura popular nordestina, já que, em nosso caso, temos uma ideia baseada na subjetividade e na identidade do narrador, o cordelista, que reportou as aventuras do cangaceiro Lampião num complexo dualismo de imagem social (vingador/justiceiro, herói/bandido), diante da condição teatral do palco místico chamado sertão.
Considerações finais...
Os cordelistas imortalizaram a figura de Lampião, tornando-o “herói” nacional. Quase que unanimemente todos os cordelistas escreviam sobre a vida dos cangaceiros, o que até os dias atuais ainda acontece. E foi na antologia do cangaço que Lampião “se tornou rei absoluto e que lhe forneceu o passaporte para a imortalidade pelas vias da história, da literatura e do folclórico” (MELLO, 1993, p. 96).
Os folhetos, pertencentes à literatura de cordel, são o jornal, o romance do trabalhador da zona rural... narram feitos de heróis ladinos...falam de sertanejos valentes e da vida de cangaceiros célebres, contam estórias de Trancoso, apresentam romances de amor de final feliz, registram acontecimentos importantes da região...neles estão registrados as impressões do povo a respeito de acontecimentos sucedidos no município, no Estado, em todo país...a maneira de ver e analisar os fatos sociais, políticos, religiosos da gente rude...denunciando costumes, preferências e julgamentos (BELTRÃO, 2001, p. 155). Neste viés, a literatura de cordel consiste num recurso de comunicação popular, uma vez que aborda fatos do dia a dia das pessoas e, sobretudo, retrata aspectos culturais de determinada região. “O poeta-jornalista resume, sintetiza, com o mesmo objetivo: tornar acessível à compreensão da massa rude um tema difícil que, na linguagem oficial, ficaria ignorado” (BELTRÃO, 2001, p. 159). Portanto, de acordo com Silva (2008), no âmbito discursivo, as condições de produção envolvem uma conjuntura social, cultural, política, histórica e ideológica; na situação enunciativa, implicam um sujeito que fala ao outro, via cordel.
Segundo Araújo (2007), “nas complexas redes de relações sociais e culturais tecidas no cotidiano, os saberes e as práticas produzidos pelos sujeitos sociais encontram no cordel sua visibilidade, pois essa forma de poesia narrativa em verso fala, quase sempre, das pessoas ordinárias, comuns e de suas vivências” (ARAÚJO, 2007, p. 30). O cordel, representação do Nordeste, fala de sua gente, de seu sofrimento, de suas humilhações, de seus sonhos... há muito tem influenciado romancistas brasileiros, a exemplo de José Lins do Rego, “Cangaceiros” (1953); de Graciliano Ramos, “Vidas Secas” (2000), e Ariano Suassuna, “A Pedra do Reino” (2005).
Ao fornecer meios para a interpretação e compreensão da sociedade, o cordel tem representado não só o Nordeste, mas também, o Brasil, através dos conteúdos que tematiza. Têm sido múltiplos os caminhos dos folhetos de cordel, porque elaboram desde histórias fantasiosas, passando por aquelas em que os poetas populares ainda se pautam numa visão mais conservadora da sociedade e da cultura, até outras que apresentam uma postura mais crítica do mundo e da vida (ARAÚJO, 2007, p. 214).
Numa esfera mais ampla, podemos interpretar que Lampião continua vivo na memória dos literatos. Para o nordestino pobre é um herói, e continuará a sê-lo, o paladino da justiça, ou metaforicamente, o Robin Hood da Caatinga sertaneja, já que nos discursos da literatura popular há a possibilidade de interpretação do surrealismo as situações reais. Portanto, de acordo com Beltrão (2001), o Rei – personagem todo poderoso, senhor de riquezas e terras, comandantes de exércitos e distribuidor de benesses e castigos é substituído pelo “coronel do sertão”.
É o surrealismo, o mito e a lenda do cordel que constituem a dimensão sócio/cultural da força da literatura regionalista (BARRO, 2008). Assim, o personagem Lampião assume relevante papel no marketing de representação do cangaço, nos relatos dos cordelistas. Não obstante, a literatura de cordel seria a tradução dos saberes do povo. Seria a própria memória humana, daí tais narrativas atravessarem o tempo e o espaço e nos trazerem hoje, revestidos de representações e territorialidades, em pleno século XXI, valores de uma realidade dos fins do século XIX e início do XX.
Lampião vivenciou sua condição de lenda em plena juventude.
Josias Silvano de Barros é geógrafo e estudante de Comunicação Social, Gurinhém/PB Artigo apresentado no 8º Seminário “Os Festejos Juninos no contexto da Folkcomunicação e da Cultura Popular”, Campina Grande (PB), 2011, na modalidade Comunicação Científica
Fonte:http://www.observatoriodaimprensa.com.br
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