Manoel Neto
Ao posar em 1936, com todo o seu
bando, incluindo as mulheres para as lentes de Benjamin Abrahão, nos legando
imagens únicas, Virgolino Ferreira demonstrou que apercebera-se da passagem dos anos, da
aproximação progressiva de certas
modernidades, tendentes a torná-lo menos recluso, mais visível. O insulamento
nas caatingas inóspitas, nos coitos reservados, afigurava-se cada dia mais
complicado. Pesava, todavia, o fato do novo, conquanto, fascinante e facilitador
de comodidades, não deixar de oferecer perigos, sendo por consequência um ente
de dupla face. Luiz Bernardo Pericás escreve com lucidez sobre esta dicotomia lampiônica: “O que se
pode perceber em certos momentos em relação
ao cangaço, é que havia uma revolta em seu duplo sentido; ou seja,
uma volta, um retorno a certas práticas e
valores arcaicos, assim como um
estado de rebeldia. Tanto místicos como cangaceiros se defrontavam com um mundo
em rápida transformação. [...] Por outro lado, paradoxalmente, também mostrarão
interesse em se inserir no mundo moderno. Tentarão, de sua própria maneira,
muito particular, fazer parte dele e ser aceitos pela
modernidade”. (PERICÁS, pp.164-172)
Entendemos não ser uma
característica exclusiva do cangaço essa convivência inquietante entre o novo e
o moderno. Os sinais que apontam o final de um período, de uma era, carregam
endogenamente os indicadores dos novos tempos que se anunciam irreversíveis nas
conquistas das ciências, nos avanços da tecnologia e das relações sociais, com
as inevitáveis inovações de hábitos e costumes. O mesmo Pericás complementa sua
análise afirmando que “afinal
de contas os tempos históricos se cruzam e sobrepõem. Nesse sentido arcaísmo e modernidade andavam juntos. [...] Lampião comprava ou se apropriava
de tudo o que pudesse representar uma novidade para melhorar a vida do seu
bando, fosse um produto essencial ou específico”(idem, p.172).
Não há dúvida, queremos crer, que períodos de transição geram sempre perplexidades, desafios e reações. Não há como negar, os cangaceiros estavam compreensivelmente incomodados com algumas mudanças, o que não os impediu de serem esteticamente renovadores em suas roupas e objetos vistosamente coloridos. Ao admitir a presença feminina de forma contínua nos bandos, romperam com longa tradição que vedava a incorporação das mulheres àquele ambiente. Quebraram tabus e desafiaram velhas superstições, conquanto, alguns deles se mostrassem refratários e temerosos das consequências. Nada mais natural.
Por menos não faziam as forças
repressivas. Além de tratados de cooperação entre os estados, o que abria as
fronteiras entre as regiões atingidas, os governos estaduais premidos pelas
constantes notícias de saques, latrocínios, violências sexuais e outros
ilícitos cometidos pelos bandoleiros, viram-se politicamente compelidos a
enfrentar de maneira mais sistemática o problema que afligia milhares de
pessoas. Superadas as dificuldades primeiras do Governo Provisório advindo de
1930 e,
sedimentada a Nova Ordem, com a suplantação dos rebelados paulistas de 1932, a
República decidiu finalmente voltar-se para o renitente problema do cangaço. Ao
final dos anos 20 os tempos já estavam dificultosos para Lampião e seus
seguidores, razão da sua fuga para Bahia em agosto de 1928, exaustos pela
perseguição intermitente, notadamente da Polícia pernambucana. Em terras
baianas e no vizinho Sergipe ele gozaria de certo conforto e tranquilidade,
descansando na fase arroz doce, mas
logo baianos e sergipanos conheceriam a salamanta.
A polícia baiana surpreendida nas
primeiras escaramuças com o modo inusitado de lutar dos cangaceiros sofreu
sensíveis perdas nos entreveros iniciais.
Desconheciam as sutilezas na forma de combater dos homens vestidos de mescla e ornados
de ouro. Balão, no registro civil Guilherme Alves, sobrevivente das escaramuças
catingueiras resume brilhantemente esta maneira diferenciada de lutar “Soldado
morria porque vinha de peito aberto. Cangaceiro não dá peito nem as costas,
briga de quina. Um homem de quina é uma faca”.
É de outro bandoleiro, conhecido como Guará, a síntese perfeita da tática de
combate adotada pelos cangaceiros”: “A gente nesse mundo só vadeia quando pode”,
ou seja, a briga só era topada quando havia possibilidade de êxito ou quando se
afigurava inevitável. Texto letrado confirma a afirmativa do comandado de
Virgolino: “Consciente de sua posição de mais fraco, Lampião, por isso mesmo,
jamais abdicou da sua posição de mais astuto” (MATTA MACHADO, p. 62).
Posteriormente não só
investimentos financeiros foram injetados na campanha, como também, recursos
humanos adestrados a geografia dos combates – os conhecidos contratados e
cachimbos – entre os quais rastejadores com conhecimento profundo do terreno a
ser percorrido, além de equipamentos e material bélico mais moderno,
introduzidos para facilitar a mobilidade dos efetivos policiais. Tantas eram as
semelhanças entre os grupos, bandidos e volantes, no que concerne o trajar e o
comportamento de muitos deles, que incontáveis vezes os próprios sertanejos
tinham dificuldades em
diferenciá-los. O terror, a intimidação, a tortura física e
psicológica eram expedientes utilizados por ambas as facções. Ao meio, acuadas,
centenas de famílias sertanejas, na sua imensa maioria remediadas, pobres e
miseráveis, entregues a própria sorte. Vez por outra um coronel ou uma baronesa pagavam algum tributo.
Lampião
assaltou o local em 1922, levando joias
valiosas.
Humberto de Campos, sempre
imaginativo e noticioso, guardava na algibeira novas linhas sobre as andanças
do mais famoso dos Ferreira de Vila Bela: “Agora,
vem de Petrolina, nas margens do S. Francisco, a notícia de que Lampião instituiu em todo o Nordeste
flagelado pela seca o voluntariado para composição e desenvolvimento de suas
tropas. A diária é de 10$000, com cavalo, mulher e comida. Não dá casa porque
seu quartel é o tempo, e tem por teto o firmamento beliscado de estrelas, e uma
cama em cada pedra, e um armador de rede em cada árvore, e um banheiro fresco
em cada riacho vadio”. (CAMPOS, p. 39).
A seca, esta nos parece a
de 1932, varria inclemente todo o Nordeste. Repetia-se a macabra procissão
humana a deambular sem eira nem beira, em busca de trabalho e alimento. O estro
popular documentou o desenrolar do drama denunciando com veemência os alojamentos implantados no Ceará para onfinar os retirantes dispersos e famintos:
‘No
Estado do Ceará
A exemplo
do alemão
Houve por
aqui também
Campo de
concentração
Lá era
pra matar judeu
Aqui o
povo do sertão.
Na seca
de trinta e dois
Criamos
uns sete currais
Para
evitar que famintos
Criassem
problemas sociais
E
pudessem invadir
Na
capital seus mananciais”
No raciocínio do experiente
cronista, ele que também exercera mandato parlamentar, esta trágica conjuntura
conspirava a favor dos cangaceiros. Todavia, essa é matéria controversa. Se
para alguns estudiosos os períodos de crise favorecem e incrementam as
atividades dos grupos marginais atuantes no sertão, para outros nem sempre esta
análise se ajusta aos números e aos fatos. Autor a quem já fizemos menções em
capítulos anteriores deste trabalho, Luiz Bernardo Pericás argumenta: “É claro
que fatores conjunturais nacionais e internacionais afetam a vida política,
econômica e social de uma nação dentro de suas características particulares.
[...] O cangaço é uma modalidade que se
originou muito antes de qualquer crise específica.
Assim algumas crises podem ter
aumentado as fileiras do cangaço. Mas a
crise em si não é o fator primordial
para o surgimento e a existência desse fenômeno [...] Ainda há outro detalhe a
destacar aqui. Uma parcela significativa da população pobre não entrava para o
cangaço, mas os cangaceiros com seus grupos de bandoleiros já organizados,
atacavam o povo humilde do sertão”. (PERICÁS, pp. 144, 150).
A escassez de chuvas, em períodos
frequentes e prolongados, incide de forma diferenciada sobre os viventes dos
sertões. Foi assim antes, nos tensos tempos do cangaço, das agitações sociais e
políticas dos anos 30 do século XX e ainda hoje permanece sendo um flagelo para
todos, porém, muito mais rigoroso na vida dos desvalidos. Certo é que a grande
maioria e não somente parcela
significativa dos sertanejos se manteve distante da marginalidade
profissional, aliás, a professora Luitgarde Barros,
afirma peremptoriamente isso, não somente em seus trabalhos, livros e artigos,
como em suas inúmeras conferências e palestras por todo o Brasil. Ainda que não
seja o fator mais crucial para a eclosão e desenvolvimento do cangaço no
Nordeste, a seca tem considerável contributo para o agravamento do problema.
Sabemos que a justiça, o amparo social efetivo, sistemático, o atendimento
médico e a educação, a justa distribuição da terra, o trabalho rural
reconhecido, respeitado e dignamente remunerado eram apenas quimeras na vida do
homem pobre do campo, quadro que se agravava dramaticamente durante as longas
estiagens, porquanto, a tudo isso se somava a fome e o desespero.
A violação reiterada dos seus
direitos, a desonra familiar seguida da impunidade do agressor, muitas vezes
oriundos das grandes propriedades, as querelas familiares e clânicas
costumeiramente mal resolvidas com o beneficiamento dos apaniguados do poder,
minavam a resistência física e insultavam moralmente as vítimas que entregues a
própria sorte acabavam por ingressar no cangaço ou na Polícia, abandonando por
completo a pacata existência até então desfrutada.
Quanto a romântica e poética
descrição da vida cangaceira feita por Campos, colocando-a num universo
idílico, fica por conta da fértil imaginação do autor, pois o céu beliscado de estrelas e um banheiro fresco em cada riacho vazio,
não correspondem a realidade de um cotidiano permeado de sobressaltos, fugas
constantes e o desconforto das longas caminhadas, das noites mal dormidas, da
entrega dos filhos paridos nos coitos ou mesmo entre cactos e bromélias, aos
cuidados de terceiros, filhos perdidos para sempre, com algumas exceções, é
claro.
Tomado pela ideia de uma adesão
maciça de camponeses sequiosos não só de água, como também, de justiça, pão e
trabalho, o jornalista especula que “em breve terá ele (Lampião) centenas,
senão milhares de combatentes destemidos” (CAMPOS, p. 39), antevendo,
não sem uma boa pitada de sarcasmo, os próximos passos de um Capitão Virgolino
senhor de muita coragem e ousadia, de muitos rifles para a luta e de braços
dados com a modernidade. “E agora
é que vamos ver de quantas pedras se faz uma coluna. Lampião é insolente,
arrogante, audacioso. Formado o seu exército de sertanejos aguerridos, não
descansará. Investirá vilas e cidades. Tomará as vias férreas, movimentará
locomotivas e automóveis, descerá para o litoral.
Manoel Neto
Centro de Estudos Euclydes da Cunha – CEEC
ceec@listas.uneb.br - Portal: www.uneb.br/ceec
UNEB - Bahia
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