A primeira localidade sergipana visitada por Lampião foi Carira, a 1º
de março de 1929. No mês seguinte, Lampião voltou a Sergipe, numa incursão rápida por
Canindé, Poço Redondo, Monte Alegre, Boca da Mata (Glória), Saco do Ribeiro
(Ribeirópolis), Alagadiço e Pinhão.A passagem por Poço Redondo foi no dia 19 de
abril. O povoado estava em festa – encontrava-se ali o vigário de Porto da
Folha, para celebrar missa, fazer casamentos e batizar meninos.Os cangaceiros
chegaram pela manhã. Lampião foi direto à bodega de Teotônio Alves, conhecido
como seu China, dono da fazenda Recurso, homem importante do lugar: o padre
estava hospedado em sua casa...
O padre Artur Passos acordou com o reboliço. Vigário sertanejo, homem
de cabelo nas ventas, acostumado a lidar com os jagunços do coronel Zé
Rodrigues e dos Brito, o padre impôs condições: os cangaceiros podiam até
assistir à missa, desde que sem as armas. Lampião fez de conta que concordou:
– Nun se avexe não, seu vigaro, tou aqui de passage, sou de pais, tudo
o qui eu quero é sussego. O povo daqui nun tem pur que tê medo deu. O meu
poblema é cum os macaco.
Logo mais estavam os dois
sentados à mesa na casa de seu China para a primeira refeição do dia – o Padre
Artur, Ministro de Deus, numa cabeceira, e o Capitão Virgulino, Rei do Cangaço,
na outra cabeceira. Dona Marieta serviu aos distintos hóspedes o que tinha de
fartura: cuscuz com leite, macaxeira e carne de bode assada.
Oleone Fontes, Abreu Mendes, Manoel Severo e José Bezerra Lima Irmão
Num instante, todo mundo sabia da
notícia: Lampião estava no Poço! Era amigo de seu China e do padre Artur! E ia
assistir à missa! Quem pensou em se esconder mudou de ideia ao ver o padre
Artur sair da casa de China são e salvo, e atrás dele os cangaceiros,
descontraídos, afáveis, palitando os dentes. Começou a chegar gente das
redondezas para a missa. Gente a pé, a cavalo, em carros de bois. Ao ouvirem a
novidade, a reação de todos era a mesma: assombro, medo, curiosidade. Aos
poucos, o povo foi se aproximando, olhando o movimento na casa de seu China. Na
bodega, alguns moradores já estavam bebendo cachaça com os cangaceiros. Uns
meninos passaram na frente da bodega e Lampião jogou moedas para eles. Quando
os moleques chegaram em casa com aquele dinheiro todo, cessaram de vez os
receios. “Eta home danado de bom é Lampião” – diziam.
Na hora da missa, a igrejinha estava lotada. Mesmo assim, quando
Lampião chegou com seus homens, as pessoas deram um jeito, se espremeram, coube
todo mundo. Lá fora ficou apenas um cabra, de vigia. Durante a celebração,
ninguém prestou atenção ao padre. Mesmo os que estavam na frente davam sempre
um jeito de se virar de vez em quando, a pretexto de qualquer coisa, para dar
uma espiada nos cangaceiros. Lampião sabia rezar, ajoelhava-se nas horas
certas, ficava de pé nos momentos adequados, respondia até aos “Dominus vobiscum”.Depois
da missa, os cabras dirigiram-se à casa de China, e o povo, já familiarizado
com eles, foi atrás, formando-se um ajuntamento em frente à bodega. China não
conseguia dar conta do movimento. Gente que nunca comprou nada em sua venda, de
repente virou freguês.Lampião pensou até em arranjar um sanfoneiro e fazer uma
dança. Mas o padre Artur não concordou:
– Capitão, os seus cabras estão bebendo. Eu sou responsável por essas
famílias. Deixei que o senhor assistisse à minha missa. Agora é o senhor que
tem de aceitar o meu pedido. Precisam ir embora.
– Pade Artu, o qui eu prometo eu
cumpro – disse Lampião, e alteou a voz: – Mininos, venham se dispidi e pidi a
bença ao pade!
Lampião apresentou seus cabras ao padre, um por um. Deixou
por último um rapazinho. Explicou:
– Dexei este aqui pro fim de proposto. É o premero cabra de Segipe a me
acumpanhá. Nóis chama ele de Vorta Seca.
O padre Artur ficou chocado com o que via. O cangaceiro sergipano não
passava de um menino, um mulatinho de olhos vivos e jeito brincalhão que nem
fios de barba tinha ainda. O vigário perguntou a idade dele.
– Onze ano – respondeu o garoto.
– Deus misericordioso!... – balbuciou o velho padre, condoído com tão
terrível desgraça. – Uma criança...
– Criança!? – contrapôs Virgulino. – Nun se ingane não, pade Artu. Esse
muleque, com essa carinha de besta, tem corage de fazê coisa qui até o diabo
duvida! Nasceu pra sê cangacero!
Logo mais, feitas as despedidas, Lampião soprou o apito, chamando os
cabras para a partida. Aumentou o alvoroço. As pessoas esticavam-se na ponta
dos pés para ver mais uma vez o Capitão Virgulino, que estava indo embora. As
moças apinhavam-se nas portas e janelas. Dizia-se que Volta Seca tinha dado um
de seus muitos anéis a Mocinha de Dedé, e ela agora mostrava o presente às
amigas, que morriam de inveja.Ao montar no cavalo, Lampião falou alto, todo
respeitoso:
– Pade Artu, vou simbora. Adiscurpe os mau jeito. Seu China, tou veno
que o sinhô é um cabra macho. Cum certeza vou vortá outas veis aqui. Até mais
vê!
O Rei do Cangaço, imponente em sua montaria, acenou para o povo de Poço
Redondo. Os cangaceiros esporearam os cavalos, fazendo cabriolas, mostrando
destreza, e dispararam a galope pela estrada que ia para a Serra Negra. O povo
ficou olhando o bando se afastar levantando uma nuvem de poeira. Todos estavam
maravilhados com os modos gentis do Capitão cangaceiro. A partir dali, os mais
velhos teriam muito que contar, muito assunto para os encontros com os amigos.
E os mais novos teriam razões para sonhar de olhos abertos, imaginando novas
perspectivas em suas vidas. Devia ser maravilhoso viver como cangaceiro, ficar
famoso, ter dinheiro, ter mulheres, ser temido e adulado aonde chegasse,
podendo fazer o que quisesse na vida, como Volta Seca, que aos onze anos de idade já era homem!...Em vez de ir para
a Serra Negra, como dera a entender ao sair de Poço Redondo, logo adiante o
astuto cangaceiro mudou de rumo, pegando a estrada de Monte Alegre.
* * *
Alcino Alves Costa
Convém tecer algumas considerações acerca das
circunstâncias que levaram Poço Redondo a ser intitulada como “A Capital do Cangaço”.
Cangaceiro era então a profissão da moda.
Lampião nunca teve problemas com os habitantes das
caatingas de Poço Redondo. Quando ele dividiu o território
de suas operações
entre os cabras de maior
confiança , Zé Sereno ,
Mané Moreno, Mariano e Juriti escolheram
como companheiras garotas filhas de Poço
Redondo e adjacências. A presença desses bandos na região
exerceu influência decisiva
na rapaziada do Poço, pois
é próprio dos jovens
gostar de aventuras ,
e o cangaço era
ali a aventura
suprema . Se no passado
os principais celeiros
de cangaceiros de Lampião foram Vila Bela, Triunfo e Flores, nos
sertões de Pernambuco, em sua nova fase essa triste fama recaiu sobre Chorrochó, Feira
do Pau , Várzea
da Ema, Salgado do Melão, Juá e Bebedouro, na Bahia, e Poço
Redondo , em
Sergipe.
O caso de Poço
Redondo é especialmente
assombroso . No auge
da era cangaceira , praticamente todos os
moradores da região se envolveram de alguma forma com algum
dos bandos que
viviam na área, se não como cangaceiros, pelo
menos como coiteiros. Quem entrava no
cangaço convidava depois os irmãos , os primos ,
os amigos . O pequeno
povoado sergipano forneceu para o bando de Lampião mais de 30
cangaceiros , inclusive
um filho
de Julião do Nascimento, o homem mais rico do lugar – Zé de
Julião (José Francisco do Nascimento) tornou-se o cangaceiro
Cajazeira . Poço
Redondo passou à história
como a Capital
do Cangaço .
O eterno problema
das secas tornava infrutífero
o trabalho nas roças
e penoso o criatório
de vacas, cabras e ovelhas .
Ser vaqueiro
significava ser escravo
dos coronéis e fazendeiros . Muitas pessoas viviam unicamente da caça ,
como seus
ancestrais caboclos .
A profissão mais
atraente era
a de cangaceiro , que
vivia sem trabalhar ,
gozando da mais ampla
liberdade e respeito
– cangaceiro era
respeitado até pelas autoridades ! Naquele clima
de valentia, diz Alcino Costa , “os jovens de quase
todas as famílias viviam encantados,
maravilhados com os grandiosos
feitos da malta
e, embevecidos, sonhavam em pertencer àquele grupo de valentes
e afamados cangaceiros ”.
Diz ele , noutro trecho :
“Dava pena e era
comum naqueles tempos ,
ver pobres meninos , ainda
na puberdade , no desabrochar
da vida , irem aos bandos ,
sem motivos
que justificassem tão
temerária e louca
decisão , para
a companhia de Lampião
e sua malta ”.
E completa noutra parte : “Inocentes rapazes
que jamais
pensaram em ser
fugitivos da lei
e nem sequer
haviam manobrado arma alguma, além de sua inseparável espingarda de
caça”.
Em Poço
Redondo, formou-se uma nova categoria de coiteiro .
Como em cada família havia um ou vários cangaceiros, é impróprio
tachar pejorativamente
aquela imensa parentela de “coiteiros ”. Como
diz Alcino Costa , os moradores do Poço
não escondiam nem protegiam bandidos, mas
sim entes
que lhes
eram caros , filhos
de seu próprio
sangue.
Por José Bezerra Lima Irmão
Homenagem a Alcino Alves Costa, “O Caipira de Poço Redondo”,
Vaqueiro da História, personagem mais ilustre da Capital do Cangaço
Em 11 de junho de 2018
Vem aí...
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