No percurso do cangaço, principalmente no reinado de Lampião, cabeças humanas simbolizaram os mais terríveis e bestiais troféus de conquistas. Um festim de morbidez e iniquidades. Cabeças de cangaceiros foram degoladas, cabeças de volantes foram decapitadas, cabeças de sertanejos foram decepadas. Tudo significando uma coisa só: ter o membro mutilado como prova da morte pela morte, sem importar muito que fosse de um inocente ou de um terrível inimigo.
Uma doentia satisfação em passar a lâmina afiada sobre o pescoço e depois regozijar-se daquele troféu macabro. Mórbido prazer em posar ao lado ou segurando aqueles restos mortos e tantas vezes desfigurados. Mas também uma desumanização tão aflorada que nem se respeitava o morto enquanto ser humano, senão como um resto imprestável ou um ser tão abjeto que precisasse ser esquartejado. Uma vez atingido, uma vez desfalecido, então não havia nem resquício de piedade nem qualquer senso de respeito aos defuntos. Um verme estirado ao chão, um reles corpo jazendo sem serventia sequer aos urubus ou outros carnicentos.
Então corta a cabeça! Coisa linda é uma cabeça apartada do corpo! Tronco de um lado e a cabeça de outro! Pra quê? Apenas para o comprazimento de egos insanos e doentios. Mesmo que a entrega da cabeça significasse salvo-conduto ou que uma pena fosse amenizada pelo terrível ato, ainda assim uma prática tão deplorável quanto a própria violência de cangaceiros e volantes contra inocentes sertanejos.
O restante do corpo não tinha nenhum valor, não servia como troféu algum, pois a alucinada satisfação estava apenas em ter respingando sangue a parte superior com olhos esbugalhados, boca troncha, cabelos desgrenhados e tez dos que tiveram um terrível fim. Ser fotografado segurando uma cabeça cortada era o máximo da perversa ostentação. Ser retratado ao lado de uma cabeça enfiada numa estaca era deleite maior para os íntimos mais perversos.
E que cena aquela onde as cabeças dos mortos em Angico foram colocadas numa calçada para os flashes fotográficos, para os olhares ávidos de terror e as íntimas e animalescas alacridades. Qual a finalidade em matar pelo degolamento? Qual o objetivo de separar a cabeça do corpo depois da morte? Qual motivação em cortar a cabeça e depois seguir com o membro sangrento e desfigurado pelas estradas?
Em muitas ocasiões, a cabeça cortada simbolizava a vitória frente ao inimigo. Era a prova inequívoca de ter ceifado uma vida. Noutras ocasiões, o membro decepado servia como passaporte de liberdade ou de amenização de penas mais duras. Acaso um cangaceiro arrependido chegasse perante um comandante de volante levando a cabeça de um ex-companheiro, então sua entrega seria sem grandes padecimentos e comemorada com se a própria soldadesca tivesse dado fim ao degolado.
Depois de fotografada, entraria para as estatísticas das baixas e das honrarias. Mas diferentemente do que ocorria com a volante, que se deleitava em tirar retratos com as cabeças expostas de cangaceiros, estes não eram tão recorrentes em tais práticas. Os registros fotográficos não deixam mentir. A grande maioria das cabeças cortadas é de cangaceiro morto pela volante.
Quando, no ano de 32, o grupo comandado pelo cangaceiro Gato empanturrou os sertões de Poço Redondo de sangue e o inocente Zé Bonitinho foi forçado a deitar sua cabeça num batente, o tronco ficou de um lado e o restante de outro. A cabeça não foi levada como comprovação da chacina. Quando Penedinho, em 38, matou Canário à traição, seu companheiro de cangaço, a cabeça deste só foi cortada depois, e por Zé Rufino. Foi este comandante da volante baiana que passou o punhal no corpo já putrefato e retornou a Serra Negra levando sua honraria apodrecida. Em 37, quando o comandante pernambucano Odilon Flor deu cabo ao subgrupo de Mané Moreno em Sergipe, na região de Porto da Folha, as cabeças deste, de sua companheira Áurea e de Cravo Roxo também foram cortadas e expostas.
O cangaceiro Zepelim (morto em 37 pela volante de Zé Rufino) não só teve a cabeça cortada como teve seu membro superior fotografado com apetrechos, armas e vestimentas do cangaço (e os olhos forçadamente abertos para serem melhor fotografados). Já o cangaceiro Barreira, numa das fotos mais famosas, posa ao lado da cabeça dependurada de seu ex-companheiro Atividade, por ele mesmo assassinado em 38. Barreira já havia se bandeado para a volante e cumpriu juramento às forças de perseguição matando e cortando a cabeça do cruel e famoso “capador”.
Muito mais cabeças foram cortadas, degoladas, extirpadas dos corpos. Um ritual macabro de um mundo não só macabro como aterrorizante. E as cabeças cortadas na Gruta do Angico em 38? Onze troféus de aniquilados que acabaram causando efeito contrário. O cangaço perdeu, mas saiu vencedor. A História assim confirma.
Rangel Alves da Costa, Pesquisador e Escritor
Conselheiro Cariri Cangaço, Poço Redondo-SE
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