Nos últimos dez anos tenho viajado freqüentemente pelo sertão de Pernambuco, e assistido, não sem revolta, a um processo cruel de desconstrução da cultura sertaneja com a conivência da maioria das prefeituras e rádios do interior. Em todos os espaços de convivência, praças bares e na quase maioria dos shows, o que se escuta é música de péssima qualidade que, não raro desqualifica e coisifica a mulher e embrutece o homem.
O que adianta as campanhas bem intencionadas do governo federal contra o alcoolismo e a prostituição infantil, quando a população canta “beber cair e levantar”, ou ‘dinheiro na mão e calcinha no chão”?
O que adianta o governo estadual criar novas delegacias da mulher se elas próprias também cantam e rebolam ao som de letras que incitam a violência sexual? O que dizer de homens que se divertem cantando “vou soltar uma bomba no cabaré e vai ser pedaço de puta pra todo lado”? Será que são esses trogloditas que chegam em casa, depois de beber, cair e levantar, e surram suas mulheres e abusam de suas filhas e enteadas?
Por onde andam as mulheres que fizeram movimento feminista, tão atuante nos anos 70 e 80, que não reagem contra essa onda musical grosseira e violenta? Se fazem alguma coisa, tem sido de forma muito discreta, pois leio os três jornais de maior circulação no estado todos os dias, e nada encontro que questione tamanha barbárie. E boa parte dos meios de comunicação são coniventes, pois existe muito dinheiro e interesses envolvidos na disseminação dessas músicas de baixa qualidade.
E não pense que essa avalanche de mediocridade atinge apenas os menos favorecidos da base de nossa pirâmide social, e com menor grau de instrução escolar. Cansei de ver (e ouvir) jovens que estacionam onde bem entendem, escancaram a mala de seus carros exibindo, como pavões emplumados, seus moderníssimos equipamentos de som e vídeo na execução exageradamente alta dos cds e dvds dessas bandas que se dizem forró eletrônico. O que fazem os promotores de justiça, juízes, delegados que não coíbem, dentro de suas áreas de atuação, esses abusos?
Quando Luiz Gonzaga e seus grandes parceiros, Humberto Teixeira e Zé Dantas, criaram o forró, não imaginavam que depois de suas mortes essas bandas que hoje se multiplicam pelo Brasil praticassem um estelionato poético ao usarem o nome forró para a música que fazem.
O que esses conjuntos musicais praticam não é forró! O forró é inspirado na matriz poética do sertanejo; eles se inspiram numa matriz sexual chula! O forró é uma dança alegre e sensual; eles exibem uma coreografia explicitamente sexual! O forró é gênero musical que agrega vários ritmos como o xote, o baião, o xaxado; eles criaram uma única pancada musical que, em absoluto, não corresponde aos ritmos do forró! E se apresenta como bandas de “forró eletrônico”! Na verdade, Elba Ramalho e o próprio Gonzaga já faziam o verdadeiro forró eletrônico, de qualidade, nos anos 80.
Em contrapartida, o movimento do forró pé-de-serra deixa a desejar na produção de um forró de qualidade. Na maioria das vezes as letras são pouco criativas; tornaram-se reféns de uma mesma temática. Os arranjos executados são parecidos! Pouco se pesquisa no valioso e grande arquivo gonzaguiano. A qualidade técnica e visual da maioria dos cds também deixa a desejar, e falta uma produção mais cuidadosa para as apresentações em geral.
Da dança da garrafa de Carla Perez até os dias de hoje formou-se uma geração que se acostumou com o lixo musical! Não, meus amigos: não é conservadorismo sem saudosismo! Mas não é possível o novo sem os alicerces do velho! Que o digam Chico Science e o Cordel do Fogo Encantado que, inspirados nas nossas matrizes musicais, criaram um novo som para o mundo. Não é possível qualidade de vida plena com mediocridade cultural, intolerância, incitamento à violência sexual e ao alcoolismo!
Mas, felizmente, há exemplos que podem ser seguidos. A Prefeitura do Recife tem conseguido realizar um São João e outras festas de nosso calendário cultural com uma boa curadoria musical e retorno excelente de público. A Fundarpe tem demonstrado a mesma boa vontade ao priorizar os projetos de qualidade e relevância cultural.
Escrevendo essas linhas, recordo minha infância em Serra Talhada, ouvindo o maestro Moacir Santos e meu querido tio Edésio em seus encontros musicais, cada um com o seu sax, em verdadeiros diálogos poéticos! Hoje são estrelas no céu do Pajeú das Flores! Eu quero o meu sertão de volta!
Anselmo Alves
Pesquisador e documentarista.
Pernambucano de Serra Talhada.
NOTA CARIRI CANGAÇO: Artigo nos enviado por Kydelmir Dantas - Mossoró RN
6 comentários:
Diz Anselmo Alves:
- Da dança da garrafa de Carla Perez até os dias de hoje formou-se uma geração que se acostumou com o lixo musical! Não, meus amigos: não é conservadorismo sem saudosismo!
O que será então? Entendo a critica do autor do texto e até concordo em boa parte com ele, mas dizer que não é conservadorismo, nem saudosismo...
Aceitar o novo é mais difícil para uns do que para outros, o avanço da humanidade é inexorável, para o bem e para o mal. Ainda existem aqueles que preferem o refresco de groselha a Coca-Cola, mas estes mesmos críticos das novidades usam os recursos mais avançados da medicina ao invés de usarem só a penicilina. Luiz Gonzaga sofreu a mesma resistência quando trouxe seu ritmo “desconhecido” para o sudeste. Os conservadores da época faziam o mesmo tipo de comentário.
Felizmente ainda temos liberdade para escolher a programação que nos agrada. Imagine um ambiente onde o cidadão não pode escolher.
Parece que meu gosto musical é bem parecido com o do Sr. Anselmo, mas precisamos aceitar as mudanças que os novos tempos nos apresentam (com resistência respeitosa).
Quanto a esta pergunta:
- Cansei de ver (e ouvir) jovens que estacionam onde bem entendem, escancaram a mala de seus carros exibindo, como pavões emplumados, seus moderníssimos equipamentos de som e vídeo na execução exageradamente alta dos cds e dvds dessas bandas que se dizem forró eletrônico.
O que fazem os promotores de justiça, juízes, delegados que não coíbem, dentro de suas áreas de atuação, esses abusos?
Será que se os jovens citados, estivessem ouvindo Luiz Gonzaga o Sr. Anselmo iria se incomodar?
Liberdade. Esse é o bem mais valioso que temos e precisamos preservar.
C Eduardo Gomes.
Acho que não se trata de cercear a liberdade de ninguém, nem impedir ou ser contra o livre arbítrio, compreendo o artigo do escritor Anselmo Alves pela ótica da perca da identidade de nosso sertaõ, pela perca daquilo que temos de mais precioso, o que nos liga às origens, nos faz sentir parte de algo, é assim que vejo e também é assim que penso.
A modernidade, o progresso, a liberdade, são coisas vitais à vida,não vejo onde o artigo se insere contra as tais.
Obrigada
Professora Celina Honório
Folclorista, coreografa, dançarina
Grande Anselmo!
O que mais me perturba é o que iremos dizer às crianças de hoje, em termos de moral e comportamento, quando elas se tornarem os jovens e adultos de amanhã????
O jornalista Anselmo Alves está certíssimo, no seu ponto de vista! Concordo com ele em gênero,número e grau.
Independente de qualquer que seja a música, ninguém é obrigado a escutar o gosto musical do outro. Ademais, se levarmos em consideração que o texto se refere à defesa das raízes musicais do Nordeste, só quem não a defende são aqueles que não tiveram este envolvimento telúrico e lúdico com o que temos de melhor.
Não podemos é defender este gosto musical (gosto? Está mais para lixo musical) independente que seja 'forruim' ou outro gênero, que mais denigrem, erotizam, agridem e incentivam as drogas, sejam elas sociais (bebida e cigarros) ou não, principalmente contra as mulheres e crianças.
Devemos, sim, como cidadão(ã)s e pais de família, mostrar o que está de errado e procurar o melhor pras futuras gerações.
Kydelmir Dantas
Mossoró - RN
Nunca a cultura Pernambucana foi
tal agredida com hoje!!
Anselmo concordo muitissimo com vc...
como ficará o presente de hoje
pro futuro de amanhã!!
adorei seu espaço .
http://manunatureza.blogspot.com/
Ninguém constrói um futuro apagando o passado.Estamos falando do maior ícone da nossa história musical, Luiz Gonzaga, ele criou um ritmo e fez o povo assumir sua indentidade cultural. O artigo do amigo Anselmo ,defende o respeito a essa estrutura genética musical. Já vi alguns mestres no palco sendo desrespeitado pelos ruídos exagerados de malas levantadas,essa mala reverbera a falta de respeito e insencibilidade, os jovens precisam acompanhar o seu tempo ,mas não podem ignorar a arte ancestral, querem apagar nossa memória ,a indústria do descartável faz muito bem esse trabalho, sem qualquer pudor,Nasce nesse meio a geração da cultura instantânea e descartável.Nos mantemos firmes na ponta do cabo,puxando nossos heróis gonzagueanos para mantê-los vivos e presentes,com arte que ocupa a imortalidade.
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