Existia amor no cangaço? Por:Leandro Cardoso

Sousa Neto e Leandro Cardoso

Dois grandes marcos no cangaço de Lampião: a travessia do São Francisco para a Bahia, em 1928, modificando o palco das tropelias dos cangaceiros; e a entrada de Maria Bonita para o bando, como algo sem precedentes nas hostes dos grandes capitães-de-cangaço. No entanto, diferentemente do que muita gente pensa, a participação feminina está longe da passividade. O ingresso de Maria Bonita no bando foi a deixa para que outros cangaceiros trouxessem outras moças para o seio do grupo. Embora a grande maioria tenha ingressado por vontade própria e curiosidade de experimentar aquela vida de aventuras, algumas foram raptadas (como Dadá) e outras vendidas por parentes (como Dulce, de Criança).

É importante levar em conta que a mulher, para cair no cangaço, deixava para trás a intensa rigidez moral, sexual e de comportamento que lhe era imposta pela sociedade machista, para experimentar uma rara sensação de liberdade, ganhado a caatinga na garupa do companheiro. Nas vezes em que a entrevistei, Durvinha falava da opressão que sofria em casa antes de acompanhar Virgínio: intermináveis caminhadas com latas d’água na cabeça e a muda submissão ao pai e aos irmãos. Era a constante da subserviência velada nas casas e fazendas do sertão.



Por outro lado, a visão da aventura do cangaço se traduzia numa sensação de liberdade sem precedentes, qual um sonho medieval da donzela raptada pelos cavaleiros de lança, espada e armadura, de reinos longínquos, enfrentando tudo e todos pelo amor de sua donzela. Entretanto, grande também era a queda do cavalo, logo aos primeiros tiros, transformando o lindo sonho em real pesadelo. A vida no cangaço cobrava seu alto preço com sangue, e era embalada pelo choro triste dos familiares, que ficavam a amargar retaliações por parte da polícia, sob a angústia diária das notícias indesejáveis de filhas degoladas ou seviciadas pelas volantes.

Como falei no início, a participação feminina no cangaço está longe da passividade. A mulher, mesmo sem guerrear (exceção feita a Dadá), impôs sua presença no seio do bando, alterando inclusive a rotina dos grupos. 


Esquivo-me de falar aqui do enriquecimento visual pelo apuro da indumentária, para deter-me na violência. Vários autores sugerem que a presença feminina diminuiu a violência no cangaço. Ledo engano. A combatividade sim, a violência não. Esta sempre foi uma constante no modus operandi dos grupos e das volantes, que após 1930 ganha nova dimensão: o ataque às mulheres pela polícia e pelos próprios cangaceiros. As volantes proporcionaram cenas de extrema barbárie, como a exposição do cadáver de Nenê de Luis Pedro, nua, na localidade Mucambo, em Sergipe, inclusive estimulando cães de rua a simular sexo com o corpo. Os cangaceiros, sob o punho selvagem de Zé Baiano, ferrariam mulheres na “taba” do queixo e, por consórcio entre chefes de grupo, assassinariam a sorridente Cristina, ante o injustificável motivo de preservar a segurança coletiva. Não precisa dizer que Zé Baiano, aparentemente “apaixonado” por sua querida Lídia, a matou a pauladas.


Marca do flagelo de Zé Baiano

Afinal, Zé Baiano amava Lídia? Houve amor no cangaço? Vejamos algumas considerações a respeito:O amor não é um sentimento. É uma decisão. O que muitos tomam por Amor, na verdade é apenas paixão arrebatadora, que evanesce ao cabo de alguns meses sob qualquer contrariedade, ou mesmo amizade duradoura, que isoladamente, também não o é. Amor de verdade é outra coisa: tem base sólida, vem com o tempo. É quando os cônjuges resolvem colocar um coração pareado ao outro, condicionando sua felicidade à felicidade do outro. O Amor de verdade é maduro, não admite inconsequências e, para que exista, tem que ser pautado no perdão. Resumindo: o verdadeiro Amor somente aparece quando o perdão ocupa, incondicionalmente, o lugar da mágoa.

Voltando novamente os olhos para o cangaço, temos alguns exemplos que, talvez, preencham estes critérios: Lampião e Maria Bonita, Corisco e Dadá e Virgínio e Durvalina. Embora, tenha sido raptada e violentada por Corisco, Dadá deu provas de sua devoção ao Vingador de Lampião, mesmo após sua morte. Este foi o único casal (até onde se sabe) que casou durante a vida de estripulias (Zé de Julião e Enedina eram casados, mas já “caíram” no cangaço após o matrimônio). Se, como disse o velho Guimarães Rosa: “no viver tudo cabe”, temos a nítida impressão de que o cangaço foi palco de Amor, amores, paixões, companheirismo e amizade. Cabe a cada um, portanto, saber o peso que o coração lhe tem no peito.

Para encerrar: viva as mulheres sertanejas que, condenadas a envelhecer aos 30, se despojaram de suas latas d’água para, com os bornais cruzados ao peito, acompanharem seus companheiros. Muitas foram amadas, odiadas, fuziladas, decapitadas, mas quebraram tabus e ajudaram a virar a página da História, escrita com seu sangue, dos seus amores e da sua família dilacerada. Abraço a todos do Cariri Cangaço

Leandro Cardoso Fernandes
Médico, escritor
Sócio da SBEC

“A mulher tem na face dois brilhantes
Condutores fiéis do seu destino.
Quem não ama o sorriso feminino,
Desconhece a poesia de Cervantes.
A bravura dos grandes navegantes
Enfrentado a procela em seu furor,
Se não fosse a mulher, mimosa flor,
A História seria mentirosa.
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor”.

Octacílio Batista.

13 comentários:

MARISTELA MAFUZ disse...

Parabéns pelo brilhante texto.

Minha visão a respeito desse "amor no cangaço", baseia-se em grande parte, em conversas que tive com Sila e na observação de suas reações em dados momentos, coisas que pude ver durante o tempo que convivi com ela.
As meninas, ao entrarem espontaneamente, tinham a visão romântica de que escapariam da submissão a que estavam destinadas e teriam uma vida de aventuras e liberdade.
Essa ideia já fazia parte do imaginário na época.
Como a realidade se mostrou cruel e oposta aos sonhos, que opção restava a elas? Aprender a viver nessas condições.
RESIGNAÇÃO é uma das palavras que define o comportamento adotado por elas.
Obrigadas a aceitar o que não podia ser mudado, seguiram vivendo do único modo que lhes era possível.
Amargando dores de todos os tipos, porém firmes, lutando junto àqueles homens que acompanhavam.
Apesar de tudo, esses eram os homens com quem podiam contar e que, de uma forma ou de outra, também as protegiam. Aí surge a CUMPLICIDADE, outra palavra que define o comportamento delas.
O 'amor' nasceu desse misto de sentimentos contraditórios vividos por elas. Ódio pela agressão, reconhecimento pela proteção... E a contradição: “esse homem ora me agride, ora me defende...” O que isso representou na cabeça dessas mulheres?
Quem pode dimensionar as cicatrizes psicológicas dessas meninas-mulheres?
A submissão e o medo imperavam. O que fazer, senão suportar aquilo, firme e quieta? (adiantaria gritar ou tentar fugir?)
RESIGNAÇÃO + CUMPLICIDADE: Para mim esse foi o Amor que existiu no cangaço.
Maristela Mafuz

Anônimo disse...

Severo proimoroso texto do grande pesquisador Leandro Cardoso. Parabens.

Antonio Augusto

Juliana Ischiara disse...

Êita!!!!! Doma Maristela a senhora está intimada a não mais deixar de escrever aqui no blog... parabéns pelo comentário, excelente! Espero ler não só seus comentários, mas, artigos produzidos por você.

Seu raciocínio é perfeito, nem sempre o amor se apresenta nos moldes convencionais, por outro lado, não se pode generalizar nada, o universo cangaceiro era celeiro de vários sentimentos, amor, paixão, ilusão, afeto, gratidão e principalmente, RESIGNAÇÃO E CUMPLICIDADE. Sem estes dois fatores era praticamente impossível se sobreviver aquele meio, principalmente para a condição feminina.

Amiga, disse tudo e mais um pouco, parabéns!

Saudações cangaceiras

Juliana Ischiara

Anônimo disse...

Maristela,
Bom ver uma mulher falar de sentimentos femininos. Nós homens com certeza não temos este feeling. Acho que essa sua visão feminina lhe abriu a percepção que pouca gente tem sobre o que as mulheres viveram no cangaço. Parabens pelo comentário. Resume bem o que aquelas mulheres passaram.

Anônimo disse...

Dr Leandro, maravilhoso artigo, parabens !

Neumar Assunção
Teresina

SOUSA NETO disse...

Amigo Leandro parabéns!
Muito valiosa o seu aporte nesse debate gostoso num texto tão bem elaborado.
Que venha muitos outros artigos enriquecer ainda mais esse espaço tão prezado por nós.
Um abraço!

Lima Verde disse...

De uma lucidez desconcertante o artigo, parabens.
Fernando

Anônimo disse...

Bom texto do amigo Leandro, como sempre muito lucido e atento.
A colocação, “É importante levar em conta que a mulher, para cair no cangaço, deixava para trás a intensa rigidez moral, sexual e de comportamento que lhe era imposta pela sociedade machista, para experimentar uma rara sensação de liberdade “, merece reflexão.
Sobre essa suposta liberdade, aparentemente ilusória, que muitos pretendiam gozar adotando a vida no cangaço, existem inúmeros depoimentos de ex-cangaceiros negando que eles tenham desfrutado dessa sensação. Recentes filmes de Aderbal com Sila, Candeeiro, Adilia, dão declarações mostrando que nunca sentiran-se livres. Os cangaceiros eram ricos que não podiam usufruir da riqueza e livres das convenções, mas presos à violência e da vida criminosa.
C Eduardo

Anônimo disse...

Maristela está correta. Esse sentimento dualista que mistura afeto e medo, era na minha opinião, o que ligava macho e fêmea nesse mundo estranho do cangaço.

C Eduardo

Anônimo disse...

Caro amigo Carlos Eduardo, nosso cangaceiro carioca. Saudações!
Grato pela suas considerações.
A sensação de liberdade, na verdade, nunca foi "consciente" por parte das cangaceiras. O simples fato de deixarem para trás a "rigidez moral, sexual e de comportamento" daquela sociedade, por si só já é uma quebra de correntes, e, portanto, libertação. Lembremo-nos que as cangaceiras fugiam com seus companheiros para viver maritalmente, sem efetivamente casar. E muitas tiveram mais de um companheiro naquela vida. Ou seja: uma micro-revolução sexual. Muitas moçoilas sertanejas FUGIAM PARA CASAR com seus noivos, escondidas, quando o consórcio não era aceito por seus genitores. O rapto da noiva até era aceito socialmente, mas ficar sem casar, não (pois seria visto como prostituição). Aí está mais uma ruptura com o padrão socialmente aceito da época. Outro ponto a considerar: o cangaço não era visto pelos jovens como uma guerra, mas sim como uma opção de meio de vida, uma aventura, com a qual elas (e os sertanejos em geral) se identificavam (o chamado escudo ético). Dessa forma, as vítimas eram fundamentalmente jovens que, mesmo "ouvindo falar" dos riscos, mergulhavam naquela aventura de ouro, guerreiros bonitos e o mundão sem esquina. Os cangaciros caíam no cangaço por necessidade; as cangaceiras, por opção (na maioria das vezes). E, só para encerrar: o cangaço seduziu também mulheres mais velhas, como Dona Delfina, que chegou a ser presa em Canindé do São Francisco por ser coiteira fiel do Rei do Cangaço. O cangaço era sedutor, meu amigo.
Grande abraço a você, do velho companheiro caçador de cangaceiros
Leandro Fernandes

Anônimo disse...

Caro amigo Leandro, obrigado pela atenção com minha questão. Entendo perfeitamente seu raciocínio e estou de acordo. Muitas mulheres acompanharam seus namorados, ou simplesmente foram atraidas para o cangaço em busca da liberdade. Minha tese é de que elas trocaram a rigidez moral, pela vida sem sossego e violenta, sem nunca terem encontrado a liberdade que buscavam.
Outro ponto importante que você aborda no seu comentário, é a opção pelo cangaço como forma de buscar um meio de vida mais fácil. Importantíssima essa sua citação: “o cangaço não era visto pelos jovens como uma guerra, mas sim como uma opção de meio de vida, uma aventura, com a qual elas (e os sertanejos em geral) se identificavam (o chamado escudo ético). Dessa forma, as vítimas eram fundamentalmente jovens que, mesmo "ouvindo falar" dos riscos, mergulhavam naquela aventura de ouro, guerreiros bonitos e o mundão sem esquina”. Não posso concordar em chamar de vítimas os que tentavam fazer sua vida roubando e matando seus conterrâneos. Não sei contar se os que fizeram a opção pelo cangaço para ter uma vida melhor foram maioria ou não. Falando do cangaço de Lampião, talvez possa ser.
Leandro, a história do cangaço, em especial a fase de Lampião, tem um colorido muito atraente, fascina muita gente pela valentia, pela busca da vida sem lei nem rei. Mas quando você observa em detalhes o método do Rei dos Cangaceiros, é claro que a rebeldia é substituida pela composição com os donos do poder. Acho que foi Frederico P Mello que chamou Lampião de Coronel sem Terras. A mais pura verdade.
Dou muita importância ao que os cangaceios disseram. No meu entendimento ao dizer que vinha se dando muito bem no negócio, em 1926, na entrevista do Juazeiro, Lampião confessa seu objetivo, sem deixar dúvidas. Fora as outras evidências de que liderava uma organização criminosa bem montada.
Estou aguardando ansioso pelo seu prometido trabalho sobre Sinhô Pereira. O cangaço não é só Lampião, embora saibamos que o Cego é o astro rei.
C Eduardo.

Anônimo disse...

Amigo Carlos Eduardo.
Você tocou no X da questão: Lampião sim era um coronel itinerante. E, segundo Sabino Basseti, inaugurou o "Caixa Eletrônico" no sertão (só que com o dinheiro alheio). O cego véio (no dizer de Maria Bonita)efetivou um cangaço alcaponiano, diferente, no seu cerne, do cangaço-de-revides de Sinhô Pereira e Luis Padre. Eles tem, sim, pontos em comum; mas o que manteve na ativa cada capitão-de-cangaço parece bastante diverso. Quanto ao meu trabalho, estou escrevendo algo sobre Sinhô, com algumas coisinhas que descobri, principalmente sobre a "grande fuga". Estou correndo pra ver se dá pra sair no Cariri Cangaço deste ano.
Abração
Leandro

Anônimo disse...

Brilhante comentário!!!

Marcelo Alves
Teixeira-PB