A arte de Aldemir Martins
O Cangaço, em nossa História, tem função fundamentalmente social. Movimento de lutas, o “exército informal” de Lampião tinha vestimenta específica: “Certa vez Lampião chegou em uma cidade sergipana, entrou em um armazém e aceitou a proposta do dono do local para pesar toda a roupa e equipamentos que ele tinha pelo corpo. Chegou a quase 30 quilos, isto que ele tirou o fuzil e os depósitos [cantis] de água” (MELLO [1], citado em MILAN, 2014).
Inúmeras são as referências dos críticos e
historiadores ao fato de a roupa dos cangaceiros servir como espécie de farda
ou armadura, o que enfatiza a importância da roupa como artefato bélico.
Consequentemente, é possível ampliar a valorização dos cangaceiros, que não
apenas lutavam e combatiam. Mais do que isso, eles eram protagonistas de duelos
ritualísticos, nos quais a roupa era um acessório essencial e de importância
estratégica.
São
vários os estudos que, partindo da indumentária típica do Cangaço, associam os
cangaceiros aos cavaleiros da Idade Média e até aos samurais. Sem dúvida, a
comparação baseia-se nas batalhas incessantes e sangrentas e ao espírito
guerreiro dos combatentes. Entretanto, muito além do aspecto bélico, está o
social, que reforça a relação do Cangaço com os movimentos insurgentes
(Canudos, Contestado, Balaiada...). E é exatamente nesse ponto, entre o combate
e o social, que o movimento protagonizado por Lampião se amplia e se torna
sinônimo de “luta social”. Os cangaceiros assumem a voz dos marginalizados[2]
e lutam contra a injustiça. Contemporaneamente, as favelas reúnem essas
características, que são como verdadeiros estigmas para boa parte da população.
Evidente que isso remonta ao passado, com ênfase às décadas de 1930 e 1960: “No auge da ditadura militar, o
Governo Federal criou um órgão chamado Coordenação da Habitação de Interesse
Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam), que tinha como objetivo
principal acabar com todas as favelas da cidade num prazo máximo de dez anos”
(MONTEIRO, 2008, p. 1).
O
processo de remoção, longe de ser uma novidade da década de 1960, tinha um
histórico anterior bastante considerável. Christina da Cunha, no estudo Histórias e memórias das favelas,
lembra, por exemplo, a destruição do cortiço Cabeça de porco, já em 1893, e identifica o início da ação remocionista
em 1937, na Era Vargas. O que ocorre, a partir de 1960, é a retomada do projeto
político, sinal claro de adesão à concepção que orientou vários governantes, os
quais encaravam as favelas como “aberrações”: “Segundo relatório oficial da
Fundação Leão XIII, de 1968, as favelas eram ‘uma aglomeração irregular de
subproletários sem capacitação profissional, baixos padrões de vida,
analfabetismo, messianismo, promiscuidade, alcoolismo... refúgio para elementos
criminosos e marginais, foco de parasitas e doenças contagiosas’” (MONTEIRO,
2008, p. 4).
Favelas por Marcio Torosi
Esse
processo expõe o antagonismo e a dualidade social. A oposição é acirrada,
maniqueísta e, justamente por isso, remete ao Marxismo, segundo o qual a sociedade é dividida em dois vastos campos
inimigos, em duas grandes classes diametralmente opostas: “a burguesia e o
proletariado” (MARX; ENGELS, 2008). “Ao
esboçar em traços gerais as fases do desenvolvimento do proletariado, descrevemos
a história da guerra civil, mais ou menos oculta, que se desenvolve no seio da
sociedade existente, até ao momento em que esta guerra se transforma numa
revolução aberta e o proletariado, derrubando pela violência a burguesia,
implanta a sua dominação” (MARX; ENGELS,
2008).
Geograficamente,
e também socialmente, o espaço favela concretiza essa divisão marxista,
sobretudo se for levado em conta o fato de sua origem, já que o Governo buscava
tirar os pobres do centro e transferi-los para os arredores, preconizando um
processo de assepsia social nas grandes cidades. Dessa forma, em territórios
completamente distintos, bem marcados e delimitados, grupos diametralmente
opostos representam o poder hegemônico e os marginalizados. A partir do momento
em que o Cangaço ganhou espaço, na mídia e na História, a revolução social (e
também política e cultural) passou a contar com um poderoso aliado. O movimento
exigia que o povo tivesse vez e voz, em consonância aos ideais do Modernismo,
que, naquela época, repercutiram na Literatura, nas Artes Plásticas e também no
Cinema (nesse caso, pelo projeto ainda embrionário e que, mais tarde, daria
início ao Cinema Novo).
Glauber Rocha
Glauber
Rocha, precursor do Cinema Novo, em Estética da fome, escreveu sobre os famintos e, nas
palavras do artista, ecoaram as ideologias do Marxismo e também do Cangaço:
A fome latina, por isto, não é somente um
sistema alarmante: é o nervo da sua própria sociedade. Aí que reside a trágica
originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é
nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é
compreendida.(De Aruanda a Vida Secas, o Cinema Novo
narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome:
personagens comendo terra, personagens matando para comer, personagens fugindo
para comer, personagens sujas, feias, escuras; foi esta galeria de famintos que
identificou o Cinema Novo com o miserabilismo hoje tão condenado pelo Governo do
Estado da Guanabara, (...).). (ROCHA, 2014)
É intrínseca a relação do texto de
Glauber Rocha com a ideologia revolucionária, já que até mesmo a estratégia
anti-humana e antissocial do governo carioca é denunciada por ele. Porém, as
semelhanças vão muito mais além, porque associam a fome dos marginalizados à
violência:
(...) o comportamento exato de um faminto é a
violência e a violência de um faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo?
Corisco é primitivo? A mulher de Porto das Caixas é primitiva?
(...) uma estética da violência antes de ser
primitiva é revolucionária, eis o ponto inicial para que o colonizador
compreenda a existência do colonizado: somente conscientizada sua possibilidade
única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo o horror, a força da cultura
que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi
preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino.O amor que esta violência encerra é tão
brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação,
mas um amor de ação e transformação. (ROCHA, 2014)
De acordo com o cineasta, a violência
é necessária, assim como é, também, proporcional à injustiça e à exclusão que a
originaram. Para muitos, tal princípio é pessimista e desumano. No entanto,
considerando a História, as características inerentes à humanidade e a divisão
de classes, as palavras de Glauber Rocha servem apenas como constatação e é
nesse sentido que o Cangaço pode ser considerado um movimento de luta pela
transformação.
E
foi justamente essa associação que deu a base para o samba-enredo da Escola
carioca São Clemente, que levou para a Avenida, em 2014, o universo da favela e
também um pouco da História do Cangaço. Na sinopse do enredo, de autoria de Andre Diniz e Wladimir Corrêa, há
referências que explicitam a comparação entre os cangaceiros e os moradores das
favelas:
(...) seja bem vindo à favela da
São Clemente, e conheça toda a dimensão da audácia humana! (SÃO
CLEMENTE, 2014)
Quem somos nós? Herança do olhar de esperança dos
negros enfim livres.A fé dos pobres soldados que
foram a Canudos vencer o próprio espelho dos sem cortiço, excluídos da
cidade que limpava-se... (SÃO
CLEMENTE, 2014)
Como fizemos? Da necessidade! (SÃO CLEMENTE, 2014)
Exige mudança, refaz a esperança.E protagoniza teu próprio destino
(SÃO CLEMENTE, 2014)
Nos
trechos do argumento do samba-enredo, são vários os pontos de contato entre a
favela e o Cangaço: “a audácia humana”, a exclusão causada pelos governos de
Vargas e Lacerda, a referência aos insurgentes de Canudos e até mesmo a
violência necessária e reativa (tal como apresentada por Glauber Rocha, em Estética da fome). Coerente com a
sinopse, a letra da música faz menção à “gangorra da vida” (SÃO CLEMENTE, 2014), com a pergunta
“De que lado está?” (SÃO CLEMENTE,
2014). A metáfora é bastante adequada, porque representa muito bem a dualidade
e a diferença social, evidenciando a desigualdade como motivo para a injustiça
e para a exclusão.
Comissão de Frente da Escola de Samba São Clemente
A
estilização do cangaço pela Escola São Clemente atualiza o movimento e enfatiza
o aspecto social dos cangaceiros. Sem dúvida, essa leitura não é a mesma que
foi repercutida pelo discurso hegemônico e “oficial”, ao longo das décadas. A
marginalização e a injustiça, que levaram muitas pessoas a buscarem no Cangaço
um modo ilegítimo e paralelo de luta e transformação, foram ocultadas pelos
fatos que a mídia enfatizava, na época de Lampião: invasões, saques, estupros e
castrações (no melhor estilo maniqueísta, em que os cangaceiros representavam o
Mal e o Governo e os militares representavam o Bem). Quase um século depois,
essa concepção é confrontada e o Cangaço é lembrado e reverenciado pelo povo,
que se identifica com várias coisas que verdadeiramente fizeram parte da
formação ideológica de muitos cangaceiros, dos quais Lampião foi um dos mais
célebres, e do movimento do Cangaço como um todo. E, nessa retomada, o traje
típico do Cangaço foi escolhido para representar o valor daqueles que
participaram ativamente do movimento:
Esses artefatos –
chapéu de couro e punhal –, enriquecidos por outros como embornais,
cartucheiras, coldres, perneiras, cantis, luvas e alpercatas impõem-se como imagens de uma arte
de síntese que refletem o orgulho de ser sertanejo, isto é, habitante dos
sertões. As cartucheiras carregavam a munição, os coldres permitiam levar as
pistolas a tiracolo, os cantis garantiam a água para a sobrevivência, os
embornais levavam víveres, remédios, ferramentas; quanto às luvas, perneiras e
alpercatas protegiam o corpo dos espinhos e garantiam a sobrevivência na
caatinga. (SILVA, 2014)
Evidente
que, em tantas batalhas, apenas tenacidade, patriotismo, força física e uma boa
dose de estratégia (visível pela autossuficiência que o traje permitia, por
reunir tudo o que era necessário para os confrontos) ajudavam. Mas não
bastavam. Era preciso também buscar a proteção que a religiosidade e o
misticismo podiam oferecer: “Os
amuletos da sorte dos cangaceiros têm origem na antiguidade (...). Alguns
chegavam a ter o signo de Salomão por todo o corpo. Ele é uma estrela de seis
pontas – símbolo de Israel – e significa proteção. (...). Normalmente os
cangaceiros (...) adotaram as estrelas de quatro, seis ou oito pontas.” (MILAN,
2014). Na literatura, há inúmeras referências ao poder de proteção da estrela
de oito pontas, que “simboliza
os mil raios da macambira, essa bromélia temível, com espinhos de ida e volta
nas hastes longas de ouriço, uma aliada imemorial contra todo invasor” (SILVA,
2014). Por mais poderosos que fossem, os amuletos nunca pareciam ser
suficientes[1].
Eram muitos os que faziam parte da crença mística dos cangaceiros e, de certa
forma, se aliavam à devoção religiosa, representada pela figura de Padre
Cícero.
Na
referência que a São Clemente fez ao Cangaço, o chapéu foi elemento
fundamental, pela sua tipicidade e por sua força simbólica:
O chapéu
meia-lua de couro, com uma estrela no meio, lançado por Virgulino, hoje é o
símbolo do nordeste brasileiro. O chapéu, que tem a aba virada naturalmente
para cima quando se cavalga, durante o período do cangaço, serviu de suporte de
arte (na aba iam alguns enfeites) e também de alerta: nenhum cangaceiro poderia
correr o risco de ser surpreendido em uma emboscada, por isso não poderia andar
com a aba abaixada escondendo os olhos. (MILAN, 2014)
Bateria da Escola São Clemente, no desfile do Rio de Janeiro, em 2014. As roupas dos participantes fazem alusão aos símbolos do Cangaço, com destaque ao chapéu típico do movimento.
Lampião, em traje e chapéu típicos, representativos do Cangaço
Foto de Benjamim Abrahão
Com
base nas imagens e na passagem transcrita acima, é possível compreender que,
tanto para o Cangaço quanto para o povo (no samba-enredo representado pelos
moradores das favelas), o chapéu usado pelos cangaceiros é muito mais que um
acessório. Ele representa o estado de alerta (para não se deixar surpreender) e
também a coragem (para ver o inimigo sempre de frente). E ambos garantem a
sobrevivência.
Referências:
MARX,
K.; ENGELS, F. Manifesto comunista.
Disponível em:
2008.
MILAN, P. A
moda de Lampião. Disponível em:
<http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1033232>.
Acesso em: 27 mai. 2014.
MONTEIRO,
M. Fantasma exorcizado. Disponível
em:
com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from_info_index=21&infoid=8&sid=7>. Acesso em: 27 jul. 2008.
ROCHA, G. Uma estética da fome. Disponível em:
SÃO CLEMENTE. [Sinopse e
samba-enredo do GRES São Clemente – 2014]. Disponível em:
. Acesso em: 11 mar. 2014.
SILVA,
E. Q. R. e. Entre o chapéu estrelado e o
punhal: o imaginário do cangaço em terras brasileiras. Disponível
em:
[1]
Vários textos
mencionam também a importância de outros três símbolos: a flor-de-lis, símbolo de pureza;
a cruz de malta e a cruz “oito contínuo deitado”. (Cf. MILAN, 2014)
Verônica Daniel Kobs
* Professora de Imagem e Literatura no Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade e Professora de Língua Portuguesa nos Cursos de Letras da FAE e da FACEL.
* Professora de Imagem e Literatura no Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade e Professora de Língua Portuguesa nos Cursos de Letras da FAE e da FACEL.
[1] Francisco
Pernambucano de Mello, autor do livro Estrelas
de couro: a estética do Cangaço.
[2] O termo está sendo usado, aqui, como
sinônimo de “excluídos”, dos que ficam “à margem” da sociedade.
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