Raul Meneleu e Manoel Severo no Cariri Cangaço 2015
Nertan Macêdo em seu livro "LAMPIÃO", traz a narrativa do Coronel Antônio Gurgel, prisioneiro/refém de Lampião, a respeito da sua fuga do Rio Grande do Norte, depois do ataque fracassado à cidade de Mossoró. Relato esse que impressiona pois poderemos ver as táticas de guerrilha que eram aplicadas e a total obediência dos
cangaceiros a seu líder.
cangaceiros a seu líder.
Onde Lampião aprendeu essas táticas de guerrilha? Onde buscava inspiração para desenvolver essas manobras militares?
Era assim Virgulino Ferreira da Silva. Tinha rasgos de herói e saídas de poltrão. Inteligente e astucioso, era um homem de vocação perdida.
Se aquele talento cru fosse devidamente aproveitado, Lampião poderia ter sido, não simplesmente um bravo vaqueiro do Pajeú ou um amaldiçoado chefe do cangaço, mas poderia ter sido um poeta, músico e artista, qualidades que revelou em seus versos, tocando sanfona, confeccionando belos e artísticos objetos de couro.
Poderia ter sido um bispo católico, ou quem sabe um general brasileiro, pois em seus combates que travou, demonstrou acentuada capacidade de estrategista. Não foram poucas vezes em que empregou planos bem arquitetados e bem executados para enfrentar e desestruturar seus inimigos. Possuía tato e qualidades de comando. Era na verdade um estrategista nato. Até hoje se discute o por que de Lampião ter atacado a cidade de Mossoró. Mas vamos ao relato:
Lampião e seu bando chegavam à fronteira do Ceará. De Cacimba do Boi, lugar conhecido também por Buraco do Gado, Lampião mandou portador a Limoeiro. De volta, o emissário vinha de matula graúda: caixas de charuto, garrafas de vinho quinado, pacotes de biscoito. Não despendera um vintém nas aquisições.
O emissário contou: O povo do Limoeiro está em festas. Vai receber o senhor com grande satisfação. Até já mandaram embora os soldados pra não haver atrapalhação. O recado tocara, fundo, na fibra orgulhosa de Virgulino. Era por Isso que ele gostava do povo do Ceará. Meteu o fura-bolo na cara animada dos comparsas e repetiu a advertência já feita durante o trajeto, quando avistaram os campos do Jaguaribe:
– Daqui pra frente é o Ceará, terra do meu padrinho. Não se rouba e nem se mata! Não quero ver desavença nem safadeza!
Os cabras baixaram os olhos. Os campos do Jaguaribe fumegavam, espichados no mundo. Todos se enfeitaram para a entrada em Limoeiro. Botaram fitas coloridas nos chapéus de couro e nas cartucheiras. No cano e bandoleira dos rifles — as fitas esvoaçavam, sopradas pelo vento quente daquelas planuras lavadas de sol.
Lampiao em Limoeiro do Norte, CE, retornando de Mossoró
Entraram assim em Limoeiro, o chefe na frente, os óculos faiscantes, feliz com a recepção que lhe proporcionavam as autoridades e o povo. Gritos estrugiram na rua.
— Viva o Capitão Virgulino! - Vivá...!
Coqueiro, mais afoito, tirou o chapéu, ergueu-o no ar, o rifle seguro na esquerda, e bradou em resposta:
— Pois viva o govêrno Moreirinha! — Vivá... !
Outro cangaceiro berrou:
— E viva meu padrinho padre Cícero! — Vivá...!
O tempo esquentou debaixo das aclamações. Os vivas se multiplicavam, um nunca acabar de aclamações.
— Viva São Francisco do Canindé!
— Viva São Francisco das Chagas!
— Viva Nossa Senhora da Penha!
— Viva a Mãe das Dores!
— Viva Nossa Senhora da Conceição!
— Viva o Bom Jesus da Lapa!
Eram vivas em cima de vivas, bando e povo dialogando alto, festivamente. No patamar da igreja, o Capitão fez parada. Rezou ao padroeiro da terra e distribuiu esmolas aos mendigos que lhe estendiam as mãos. Comeu, em seguida, banquete regado a vinho e cerveja. Deram-lhe automóvel para passear na cidade. E o coronel Antônio Gurgel ia anotando tudo no seu caderninho.
Padre Vital Guedes, o vigário, animou-se a pedir a Virgulino:
— Capitão, tenho um pedido a lhe fazer...
— Diga, seu padre, que estando na medida dos meus poderes, eu atendo...
— Eu queria que o senhor soltasse os prisioneiros do Rio Grande do Norte.
— Pelo menos um, seu vigário, eu deixo ir embora. Os outros vão comigo, mando soltar depois.
Libertou o preso mais barato, cujo resgate era de apenas dois contos de réis, um rapaz chamado Leite, do Apodi. Padre Vital Guedes ficou muito agradecido pelo gesto. E lá se foi de novo o bandido pelo sertão, tangendo os seus reféns, o coronel Antônio Gurgel, dona Maria José e o velho Joaquim Moreira. Este, por ser malcriado, ia montado num cavalo em pêlo, sem direito a sela.
Rei Vesgo...
De Limoeiro, Lampião partiu para a Fazenda Armador, de propriedade de um cearense magro, fanhoso, de voz arrastada, insolente como os seiscentos diabos, de nome João Quincola. A tudo que o Capitão perguntava, João Quincola respondia de má vontade, carregando no cenho e sem despregar o ôlho do chão.
Aí Sabino não se conteve mais:
— Cabra, respeite Lampião, se não vai conhecer no lombo o gosto desta peia... E esfregou o relho na cara de Quincola, que se limitou a fungar e responder:
— Não tenho mêdo não, seu Sabino.
Deixando a casa de João Quincola, que ficou de surra prometida por Sabino, o bando foi para o Saco do Garcia. Lampião já sabia que vinham volantes no seu rastro. Esperou-a jogando o 31, balas fazendo às vezes das fichas.
Já cansado de esperar, saiu dali no rumo de Arara, onde chegou um portador, trazendo os vinte contos de réis do resgate do pobre Joaquim. Moreira. O velho começou a dar pulos de contentamento quando viu aproximar-se a hora de ir embora.
Quanto ao memorialista, continuaria arrastado pelo bando, ele e dona Maria José, sofrendo as agruras daquele jornadear inapelável, com as volantes nos calcanhares. Além do mais, era obrigado a comer o molho de pimenta que Sabino, seu companheiro na hora da bóia, fazia questão de preparar e servir ao coronel.
Enquanto isso, a soldadesca rondava. E o Capitão jogando 31 com Sabino, Moreno e Luiz Pedro, seus parceiros de baralho, para os quais, de uma feita, perdeu sete contos que pagou, estrilando e mal-humorado.
Estavam agora no Serrote da Rocha, quando receberam a visita do tenente Pereira, comandante de uma volante cearense. O tenente chegou lascando tiro. Foi aí que o coronel Antônio Gurgel pôde ver, bem de perto, o quanto valiam aqueles guerreiros endemoninhados. O Capitão pulava e rolava no chão como um condenado, no meio da fuzilaria, e não havia bala para roçar-lhe a figura encapetada.
Morreu o meu cavalo e Moreno quase entrega o couro às varas, com o osso do braço à mostra, rasgado por uma bala. Puseram-lhe ali mesmo uma tipóia, envolvendo-lhe o braço num lenço sujo e trataram de abandonar o local da escaramuça, rumando para outros brejos.
Caminharam sem alimento e água até meia-noite. Desvencilhando-se do grupo, um cangaceiro logrou comprar, numa casa, alguns queijos, mastigados às pressas. Calados, esfomeados, os homens do Capitão varavam as trevas da noite.
Afinal, dormiram na margem de um riacho. Quando acordaram, estavam outra vez cercados pela polícia. Novo combate violento, sob vivas ao padre Cícero, rolando, pulando pedra, saltando moita.
De repente, Lampião fez um gesto conhecido do grupo: exigia silêncio absoluto. Não consentia mais gritos e impropérios contra a soldadesca. Queria silêncio, silêncio completo, de morte. Todos obedeceram e o campo ficou mudo. A volante veio avançando, avançando, e quando já estava chegando ao lugar onde Lampião se enfurnara, este se levantou como um gato e bradou: Fogo !
Uma fuzilaria intensa rompeu das moitas e os soldados foram caindo no chão, varados pelos cangaceiros. Era assim que o Capitão Virgulino armava as suas arapucas aos destacamentos, no meio do mato. E sumiu, outra vez, pelos serrotes engarranchados.
Raul Meneleu
Aracaju, Sergipe
Fonte:http://meneleu.blogspot.com.br/2015/08/tatica-de-lampiao-o-silencio-da-morte.html
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