Da
fama ao caos: o outro lado do mito Como mito, História, documentário e
fazer cinematográfico estão interligados pela construção, o convite dos
diretores é para que o espectador, observando como os cangaceiros e
Abrahão planejam as cenas e posam para fotos, pense no personagem
histórico como alvo da construção e da manipulação que orientam a produção
de qualquer discurso. O fotógrafo do filme constrói ou forja um Lampião
que se opõe aos inúmeros Lampiões dos boatos, das notícias de jornal, etc.
Em tom de homenagem e usando a obra de Benjamin Abrahão e as reflexões
sobre fazer cinema (especificamente, documentário), Baile perfumado é
claro em seu recado: não há um Lampião verdadeiro.
Dessa
forma, o caráter fixo do conceito de identidade cede espaço à fluidez e à
mobilidade, quando as formas engessadas do passado, depois de resgatadas,
tornam-se vivas, no diálogo com o presente. Stuart Hall relaciona esse
processo ao desconstrucionismo, que “coloca certos conceitos-chave
‘sob rasura’”. (HALL, 2003, p. 104). Tal atitude, que relativiza e
desestabiliza uma ideia já pronta, comprova a natureza metalinguística da
recuperação de um símbolo, bem como atesta a duplicidade da representação
tomada de empréstimo, que pode ser definida como “uma ideia que não pode ser
pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não podem
ser sequer pensadas”. (HALL, 2003, p. 104).
Stuart
Hall simplifica a questão da retomada e da associação entre passado,
presente e futuro, através de um jogo de palavras: roots e routes, porque,
muitas vezes, precisamos voltar às raízes, para (re)definirmos nossas
rotas. Os desvios aumentam, quando os símbolos são revisitados
e reinterpretados, muito tempo depois. Entretanto, aumentam também
as perspectivas de análise.
A transformação é inerente ao resgate, mas,
ao mesmo tempo, fica assegurada a permanência do que é típico, porque
“este elemento da tradição subsiste, de forma reelaborada”. (ORTIZ, 1994,
p. 140). Enquanto servir para esse fim, o típico garantirá sua
sobrevivência. A retomada acaba sendo um teste para a abrangência e a
atualidade dos símbolos produzidos no passado e a simples escolha por esse
ou aquele já é meio caminho andado, porque a associação de um símbolo
“antigo” a um contexto inteiramente novo é prova suficiente da pertinência
de seu significado. Assim, autofagicamente, a cultura vai consumindo e
modificando os símbolos que ela própria produziu.
Em parte, essa
tendência à retomada parece uma forma de buscar uma verdade oculta, como
se ela de fato existisse e pudesse ser achada por trás do mito, mas não é
isso. A brincadeira que confronta um rei do cangaço humano com aquele
outro, violento e sanguinário, tem o propósito de mostrar a importância da
imparcialidade, no julgamento de um mito, porque, como tal, ele não passa
de uma construção, ou seja, não é real, e, agora, vem o motivo
mais importante: deixar claro que ninguém sabe, nem nunca saberá como era
o Lampião de verdade. Uma verdade que seja única e incontestável não
existe, ela é construída e, obviamente, serve aos propósitos de quem a
produziu, seja na História, na Literatura ou no Cinema. Linda Hutcheon
relativiza o status da verdade, comparando História e arte literária,
nesta passagem: O que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos
ensinou é que a ficção e a história são discursos, que ambas constituem
sistemas de significação pelos quais damos sentido ao passado (...).
Portanto, o pós-moderno realiza dois movimentos simultâneos. Ele reinsere
os contextos históricos como sendo significantes, e
até determinantes, mas, ao fazê-lo, problematiza toda a noção de
conhecimento histórico. (HUTCHEON, 1991, p.122) Sendo assim, por mais que
pareça óbvio e ululante, a verdade é uma questão de ponto de vista, pois o
sentido de um mesmo objeto de análise é construído de modo distinto, pela
ação de diferentes sujeitos, acarretando interpretações também variadas.
Por isso, o documentário não deve e também não pode retratar o real com
nitidez. A extrema artificialidade dos takes e das fotos da obra do
personagem Benjamin Abrahão (aqui, a referência não é aosfilmes propriamente
ditos, mas às cenas que mostram o ator Duda Mamberti representando Abrahão
e dando início às filmagens de Lampião e seu bando) é proposital, para
demonstrar, veementemente, que documentário não é sinônimo de “registro
natural”: “[…] cinema documentário é discurso (leitura) produzido, e não
reprodução de uma ‘realidade’”. (CESAR, 1980, p. 56).
A representação e a
preparação meticulosa da gravação são potencializadas, em Baile perfumado,
no momento em que Lampião, perguntando a Abrahão sobre a finalização do
filme, recebe a proposta de fazer uma grande encenação. De início, Lampião
recusa a ideia, o libanês insiste e, na sequência, a história mostra o
ataque do bando à casa de Zé do Zito. O filme de Abrahão é finalizado
nesse momento, promovendo uma relação de complementaridade entre o
material produzido por ele e Baile perfumado.
Nessa
hora, uma filmagem interfere na outra, recurso que reorganiza o processo
de produção de significado e sela a parceria dos cineastas, já que
o objetivo era um só: contribuir com mais uma peça, no imenso mosaico
de leituras que existe sobre Lampião e sobre o cangaço no Brasil.
É
comum que, em um processo de retomada, o discurso-base fique em segundo
plano, transformando-se na sombra do discurso que está sendo construído,
mas, no filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, as coisas acontecem de
modo diferente, pela simples razão de Baile perfumado privilegiar a
metalinguagem. Esse recurso, por exigir total transparência, já que, desde
o começo, explicita a função autoral de um personagem (do
protagonista,
na maioria das vezes) e a intenção de criar algum tipo de arte, através da
reflexão sobre características que lhe são fundamentais, permite que ambos
os discursos, o antigo e o novo, apareçam em primeiro plano
e, aproveitando-se disso, na produção contemporânea, os
diretores, apropriadamente, conjugam os filmes, como se um fosse extensão
do outro.
Tal conjugação volta a ser utilizada, de modo enfático, no
final, quando, depois do confronto com a volante, Lampião e seu bando são
mostrados, mas através das imagens feitas por Abrahão, na década de 30.
Entretanto, a justaposição exacerba-se ainda mais, quando, no momento
seguinte, o Lampião ficcional (Luís Carlos Vasconcelos) imita o Lampião
real e aparece se perfumando, como em uma das cenas mais famosas dos
filmes de Benjamin Abrahão. Nesse ponto, “a identificação criada até
aquele momento entre o espectador e o filme se quebra, pedindo um novo
ajuste no mecanismo de participação/identificação”. (YAKHNI, 2009, p. 7).
A
complementaridade não é, então, um desafio apenas para os diretores, pois
ela surpreende o espectador, exigindo que seja assumido um posicionamento
diferente diante do filme, porque, se, inicialmente, fica bem clara a
separação entre o Lampião real e o ficcional, no instante
seguinte exige-se que o espectador tome um pelo outro. A fronteira nítida
e bem delineada que geralmente impedia o contato entre realidade e ficção
é diluída e evidencia “a rejeição das pretensões de representação
‘autêntica’ e cópia ‘inautêntica’, e o próprio sentido da originalidade
artística é contestado com tanto vigor quanto a transparência da
referencialidade histórica” (HUTCHEON, 1991, p. 147).
Essa espécie de
continuidade entre os filmes desempenha um papel muito maior, quando se
percebe que a intercalação do documentário do Abrahão real, no filme Baile
perfumado, legitima o discurso que o incorpora. Na verdade, para alcançar
esse efeito, fazer um filme baseado em personagens históricos já
constituía o primeiro e grande passo, de modo que a inserção de trechos da
obra de Botto apenas acentua a legitimação. Através do paralelismo entre
ficção e História, cria-se uma narrativa em espiral. Apesar de as
semelhanças serem nítidas, a distância entre uma história e outra
é evidente: “As imagens captadas por Abrahão em preto e branco são
um documento de uma realidade que existiu e o filme a que se assiste é
uma reconstituição desta realidade.” (YAKHNI, 2009, p. 7). E, para completar
a metáfora da espiral, em torno da história do passado, registrada nos
filmes de Botto, e da história do presente, gravitam inúmeros elementos,
que as tornam mais amplas, justamente porque passam a ser associadas a
questionamentos que jogam nova luz sobre os fatos, motivando novas
leituras.
Percebe-se, pelas colocações acima, a completa simetria que
existe entre o intuito das obras de Abrahão e de Paulo Caldas e Lírio
Ferreira, mas há ainda outros exemplos que comprovam essa extrema
afinidade. Em Baile perfumado, Lampião também é libertado do peso imposto
pelo mito. O rei do cangaço interpretado por Vasconcelos é sorridente,
vaidoso, adora promover festas e nunca deixa de ajudar um amigo. O mesmo
tom é usado para retratar Benjamin Abrahão. No filme, o fotógrafo não é
absolutamente sério e apenas enaltecido pelo imenso acervo histórico que
deixou como legado. Abrahão é um homem comum, namorador e com uma forte
queda por mulheres casadas. Diante disso, é como se houvesse uma
concordância implícita dos diretores de Baile perfumado em relação à
concepção que Benjamin Abrahão Botto tinha da arte e do gênero
documentário.
Em
síntese, pode-se afirmar que Baile perfumado, em vários momentos, utiliza
a técnica da duplicação ou do decalque como forma de apologia ao trabalho
de Botto e ao Lampião concebido por ele. Sem dúvida, esse processo é
possibilitado pela representação de parte da vida de um personagem
histórico e, novamente, pela metalinguagem, porque, tanto no filme de
Benjamin Abrahão como no filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira,
“a realidade é apresentada como resultado da mediação da tecnologia
como possibilidade de registro permanente”.
Esse
“registro permanente”, por ligar-se fortemente ao documentário e à
biografia, leva-nos à constatação de que Baile perfumado não mostra só o
fotógrafo filmando o diaa-dia de Lampião e dos outros cangaceiros. O filme é
também um registro biográfico de Benjamin Abrahão, observação que
potencializa o efeito de duplicidade (ou, nesse caso, triplicidade). A
história do fotógrafo é o fio condutor de Baile perfumado, tanto é que “a
amarração da narrativa é dada pela sua vivência dos fatos”. (YAKHNI,
2009, p. 1). A voz de Abrahão, em off, está presente já na primeira cena
do filme, no velório de padre Cícero. O fotógrafo aparece familiarizado ao
religioso responsável por sua ligação com Lampião. Em seguida, é dado
destaque ao confronto entre os cangaceiros e a volante.
Com essa
apresentação cortada ou justaposta, estabelece-se a conexão entre os
personagens principais da história. A narração de Abrahão faz
interferências constantes, no filme, mas é interessante notar que os
diretores não primam pela mera combinação entre imagem e fala. A
participação do fotógrafo como narrador não é ilustrativa. Ao contrário
disso, ela amplia e completa a imagem. Em vários momentos, paralelamente à
voz em off, o personagem faz anotações em uma caderneta. Esse fato tem
grande relevância para a conjugação de Baile perfumado com o documentário.
Tanto no cinema documental quanto na ação de tomar nota, o importante é o
registro, atitude que se opõe fortemente à fluidez e à transitoriedade das
coisas. Benjamin Botto, no filme, considera-se um inquieto e, como tal,
queria mudar o mundo.
A
princípio, qualquer tipo de registro histórico parece ser relacionado mais
à permanência do que à mudança, afinal, depois de fazer parte da História,
o fato fica ali, imóvel, até que surja alguém que retome aquele
fato histórico e motive novas percepções, novas formas de leitura e
compreensão. Benjamin Abrahão Botto conseguiu seu intento. Ele registrou
um pedaço da História de Lampião e seu bando, que mudaram o mundo de
muitos, e, muitos anos depois, ajudou Paulo Caldas e Lírio Ferreira a
mudar o mundo construído em torno do mito do rei do cangaço. Em Baile perfumado,
Lampião não deixa de ser mostrado como mito. Ele apenas tem enfatizado seu
outro lado. O mesmo jogo de luz e sombra perpassa o personagem do
fotógrafo. Comumente, Abrahão é lembrado pelo material iconográfico
riquíssimo que produziu, mas pouco se fala sobre sua luta para pôr em
prática seu projeto artístico-histórico. Todos comentam o que ele fez,
mas, afinal, quem foi ele mesmo?
Baile
perfumado sugere uma nova perspectiva, para desinvestir o mito da
autoridade que, habitualmente, esse carrega, a fim de possibilitar
uma revisão. No entanto, essa mudança só é possível, pela estrutura
escolhida para a apresentação da história. Nesse plano mais formal,
destaquem-se o modo indireto de reacender a discussão sobre o papel do
cangaço, na sociedade brasileira, e a associação entre imagem e som,
inclusive com o privilégio da música, detalhe que não pode passar
despercebido, já que a trilha sonora inclui a participação dos principais
nomes do movimento mangue beat. Na primeira cena de Baile perfumado em que
aparecem Lampião e seu bando, o som de Chico Science é indício valioso do
que está por vir.
A “batida” do mangue dialoga com a filosofia do cangaço,
no que se refere à luta social, contra a miséria e pela esperança de
mudança, e dialoga com o filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, pela
valorização do aspecto regional e da cultura de raiz, para “modernizar o
passado”, e pela fusão de estilos e elementos, que, no filme, fica muito
bem representada pela alternância constante entre passado e presente. O
híbrido e o novo são celebrados, mas sem esquecer o tradicional. Dentre os
nomes que compõem a trilha sonora de Baile perfumado, Fred Zero Quatro,
com a banda Mundo Livre S/A, e Chico Science, à frente da Nação Zumbi,
estabeleceram um novo conceito pop.
A
relação entre modernidade e tradição foi explicitada, através do símbolo
do movimento: uma antena parabólica enterrada na lama dos manguezais.
Lançado em 1992, com o manifesto Caranguejos com cérebro,o mangue beat exigia
“a percepção da diversidade cultural existente” e privilegiava “a fusão de
ritmos, maracatus, repentes e cantigas de roda com rock, rap e dance
music”. (LEAL, 2006, p. 3). Até aqui, há provas suficientes
da convergência entre Baile perfumado e o movimento pernambucano dos anos 90,
mas a prova irrefutável associa-se mais ao tema que à estrutura: A cena
mangue traz também um resgate de manifestações folclóricas de Pernambuco e
nordestinas, tomando como referências figuras históricas como
Zumbi, Lampião e Antônio Conselheiro, numa clara tentativa de resgate
da identidade histórica. (LEAL, 2006, p. 3).
Aí
aparece Lampião, e não à toa, pois, se o objetivo dos “caranguejos com
cérebro” era fazer revolução, nada melhor do que evocar alguns dos ícones
revolucionários importantes de nossa História. Aliás, várias
retomadas como essa, ao longo de décadas, acabaram contribuindo para a
construção da heroicidade de alguns personagens históricos pelo movimento
mangue beat. Ressalte-se que o apelo popular permitiu a reescrita da
História, afinal, de “subversivos”, “revoltosos” ou “marginais”, todos os
exemplos aqui citados foram conquistando, aos poucos, o reconhecimento
oficial. Dessa forma, hoje, os “heróis” do passado interferem no presente
e, em troca, o presente lança um novo olhar sobre o passado, o que equivale,
respectivamente, a outro movimento de reciprocidade: “da lama ao caos” e
“do caos à lama”.
Verônica Daniel Kobs
Doutora em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2009);
Mestre em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2000); Licenciada em Letras
Português-Latim pela Universidade Federal do Paraná (1997); Professora do Curso
de Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade;
Coordenadora do Curso de Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário
Campos de Andrade; Professora do Curso de Graduação de Letras da FACEL;
Consultora e língua portuguesa e linguagens da RPC TV e da Ó TV; Membro de
grupos de pesquisa credenciados junto ao CNPq; Autora de diversos artigos sobre
Literatura e Estudos Interartes; Autora de livros didáticos de Língua
Portuguesa publicados pela editora Iesde Brasil S. A.; Atualmente, está
desenvolvendo trabalhos que abrangem as áreas de Literatura, Cinema e Pintura,
enfocando as relações entre palavra e imagem e as questões de identidade e
alteridade.
Fonte:http://www.todasasmusas.org/03Veronica_Daniel.pdf
Nenhum comentário:
Postar um comentário