O cangaço caracteriza-se, na história do Nordeste brasileiro, como um dos fenômenos que passou a simbolizar a região e seu povo, deixando profundas marcas na gestada cultura nordestina, no imaginário popular e na memória histórica da região. Abrangendo um período consideravelmente longo, o cangaço tem seus enraizamentos no século XVIII, passando pelo XIX e florescendo com maior notoriedade na primeira metade do século XX. Inúmeros homens e mulheres se notabilizaram nessa forma de vida, surgindo, assim, vários grupos de cangaceiros que varreram o sertão nordestino.
Fruto de uma sociedade patriarcal, patrimonialista e excludente, o cangaço emergiu como uma forma de banditismo rural peculiar e especifica do Nordeste brasileiro, sobretudo entre os anos de 1870 a 1940 . Para Sá (2011), o surgimento do cangaço pode ser associado, de um lado, à própria dinâmica política da sociedade sertaneja, baseada nas contendas entre os coronéis, cuja força militar era recrutada entre sua clientela; e, de outro, à irrupção de primeiros bandos de homens que,debaixo de uma canga 3 de armas, passaram a viver de forma nômade e fora da lei, estando vinculada à calamidade pública marcada pela corrupção do aparelho estatal, bem como de grandes secas, como a de 1877-1879.
Dentro desse cenário social, político e econômico excludente, caracterizado pela força do poder privado dos grandes proprietários de terras, os coronéis, surgiram vários grupos armados que passaram a ser entendidos pela história como cangaceiros. Com isso, não quero defender a tese empreendida pela historiografia marxista que viu nos cangaceiros uma resistência ao poder dos grandes latifundiários. Quero dizer que esses homens e mulheres eram filhos de um tempo marcado pelas barganhas coronelísticas, que impulsionaram inúmeras disputas familiares pelas rédeas do poder local, estadual e federal. Para isso, os coronéis precisavam ter em suas fileiras homens armados que protegeriam os seus interesses políticos.
Compreendo o cangaço como um conjunto de vivências complexificadas , atrelado também ao coronelismo, não podendo se entender o primeiro desvinculado do segundo. Ele é muito mais do que a ideia da revolta dos dominados contra os dominantes e das múltiplas interpretações que tentam criar modelos explicativos capazes de trazer de volta aquilo que já não é mais. Cangaceiros e coronéis viviam em constantes pactos e rupturas, marcados por uma relação desigual e interessada. O cangaço poderia ser ao mesmo tempo o terror dos coronéis como a força dos mesmos, tendo em vista que eram os donos do poder quem patrocinavam a máquina de guerra dos cangaceiros.
Para os cangaceiros, combater um determinado coronel significava perder a sua proteção e ganhar a de outro. Por outro lado, se aliar a um grupo de cangaceiros representaria, para os coronéis, manter o seu mandonismo, ameaçando e intimidando os seus inimigos políticos. O cangaço foi o resultado de uma sociedade sertaneja complexa, de múltiplos interesses, da indústria da seca e da inércia do poder do Estado (que era representado pelos coronéis). Foi dentro desse tempo e espaço, movido pela complexidade das relações humanas, que surgiram os cangaceiros.
Dentre os quais se destacaram e se perpetuaram na memória social sertaneja, os grupos de João Calangro e Jesuíno Brilhante, no Vale do Cariri, Antônio Silvino, Lampião e Corisco. Mas a história do cangaço não se resume a esses principais chefes de bandos. Foram muitos nordestinos que ingressaram nessa vida. O cangaço foi muito mais que Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino, Corisco e Dadá e Lampião e Maria Bonita. Esse fenômeno não pode se limitar à chamada “Marcha do cangaço Lampiônico”. É preciso reconhecer outros sujeitos históricos, mergulhar em outros espaços de vivências, outras memórias.
Perceber cangaceiros e cangaceiras que foram esquecidos ou secundarizados, diante do rentável empreendimento editorial feito pelos escritores que, incansavelmente, tem escrito sobre os principais chefes de cangaceiros. Foi a partir dessa leva de escritos que Sá (2011) definiu o cangaço como “palimpsesto da cultura brasileira”, no sentido de que esse fenômeno é reescrito indefinidamente, utilizando-se o mesmo material, mediante ajustes, acréscimos, revisões e deslizamentos. Segundo ele: “Cada texto remete a outro e o reinsere dentro de outras épocas e coordenadas com as quais marca sua diferença, mas, ao mesmo tempo, marca uma profunda e inequívoca filiação (SÁ, 2011. p. 15)”.
Sabendo que o meu texto também se remete e se escreve a partir de outros, proponho compreender construções memorialísticas que abordam outros espaços e vivências do cangaço e que não necessariamente estão vinculadas aos diversos projetos interessados da chamada Rota do Cangaço Lampiônico. Aqui pensarei as múltiplas memórias mobilizadas sobre o cangaceiro paraibano Chico Pereira. Chico Pereira viveu no cangaço entre os anos de 1922-1928.
Ingressou nesse universo a partir de brigas familiares na região de Sousa, no sertão do estado da Paraíba. Filho de um influente coronel da vila de Nazareth (atual cidade de Nazarezinho), Chico Pereira não pode ser entendido como um homem pobre do campo, mas como um membro de uma influente família que buscava se consolidar na turbulenta política sousense e paraibana. Após matar o assassino (Zé Dias) do seu pai, Chico Pereira buscou o cangaço como refúgio às perseguições movidas pela justiça, que era controlada pelos adversários políticos da sua família e dos correligionários do seu genitor. Durante seis anos no cangaço, atuou, sobretudo, em três estados do Nordeste: Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.
Esteve presente como líder de grupo no 15 ataque dos cangaceiros a cidade de Sousa no dia 27 de julho de 1924, tendo depois participado, por algum tempo, do grupo de Lampião. Apesar de ter sido um dos cangaceiros mais conhecidos no estado da Paraíba, no período da sua atuação, foi pouco abordado pela historiografia do cangaço. Foi tomado como objeto da escrita da história somente a partir de 1960, quando o seu filho, o sacerdote católico Francisco Pereira Nóbrega, publicou o livro Vingança, não: depoimentos sobre Chico Pereira e cangaceiros do Nordeste.
O livro Vingança, não se configurou como um projeto memorialista empreendido por Francisco Pereira Nóbrega, em um esforço de reconstruir a memória do pai cangaceiro, a partir da ótica do seu lugar social de filho e padre. Com vontade de lançar uma verdade histórica que tentou reviver o passado do pai através da sua escrita, o autor de Vingança, não acabou reconstruindo, por meio dos seus interesses, uma memória para Chico Pereira. Essa memória foi trabalhada através de um ensinamento do cristianismo: o ato de perdoar.
Desse modo, o filho reescreveu a história de um passado marcado pelos crimes do pai, tendo como ponto condutor e sedutor da sua escrita a mensagem do perdão. Dito isso, busco problematizar essa produção memorialista que criou um ponto de partida para se entender a história de Chico Pereira, uma vez que os escritos posteriores (ao livro Vingança, não) sobre esse cangaceiro se sustentaram, em sua ampla maioria, na reprodução do discurso criado por Francisco Pereira Nóbrega. Sendo assim, a história de Chico Pereira passou a ser confundida com a memória construída pelo autor de Vingança, não.
Continua...
Guerhansberger Tayllor
Pesquisador de Lastro, PB
Parte de Monografia:
"Nas Redes das Memórias:As múltiplas faces do Cangaceiro Chico Pereira"
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