Do Ceará três Santos - Parte III Por: Luitgarde Oliveira Barros


Os embates políticos - Revolução de 1817 e de 1824, as lutas genocídicas entre os troncos das famílias Feitosa, Maciel e Araújo, marcaram com a tragédia as vidas de Ibiapina e Antonio Vicente Mendes Maciel – O Conselheiro. A epidemia do cólera levara também à orfandade o Padre Cícero Romão Batista. Produto da mesma estrutura social, suas vidas foram determinadas pelas "três pragas da tragédia nordestina" - peste, fome e guerra. A experiência do horror da doença numa região sem hospitais, médicos ou qualquer socorro governamental, transformou-os em caridosos benfeitores de doentes e moribundos, aprofundando o sentimento de solidariedade que conduziria suas preocupações para os cuidados ora com a construção de casas de caridade, ora para o amparo aos órfãos e a edificação de cemitérios, a proteção à mulher e aos velhos.


A opção de suas vidas, de não reproduzirem a violência de que haviam sido vítimas, plasmou-lhes uma vontade indômita que representa a própria característica de sua cultura, canalizando toda sua força para o combate em defesa dos pobres, dos humilhados por todos os tipos de sofrimento, sempre com soluções tiradas de seu próprio meio social e físico, orientados pela ética do evangelho.

Pela leitura das cartas pode-se acompanhar a intimidade de trato com que os três condutores de gentes se dirigiam a seus seguidores. A perfeita identificação com seu povo, a forma igual de comunicação, a constante preocupação com os sentimentos de dignidade do sertanejo, talvez se constituam pontos importantes para a compreensão do grau de devotamento com que multidões iriam até à morte em defesa desses homens. No episódio da Guerra do Quebra-Quilo, a ameaça de prisão do Padre Ibiapina então em Santa-Fé-Paraíba, congregou em torno dele milhares de seguidores dispostos a impedir sua prisão. No seu período de missionário Ibiapina produziu verdadeiros movimentos sociais, levando milhares de sertanejos a percorrer o interior do Nordeste, sob a sua palavra, construindo hospitais, cemitérios e orfanatos, numa autêntica reconstrução de vida social. Ele trazia alegria num mundo de desesperança.

Antônio Conselheiro, por seu repúdio à violência, amor à terra e ao trabalho, religiosidade, solidariedade ao povo sofrido, congregou em torno de si vasta população, assim descrita pelo deputado baiano César Zama, em 1897: Canudos era a povoação mais numerosa talvez da Bahia, depois da capital. Pelo número das casas contadas depois do assalto e arrasamento, não será exagerado dizer-se que o número de seus habitantes atingia a quase vinte e cinco mil almas". Ainda esse autor escreve: "Ninguém ignora que gênero de vida levavam os canudenses: plantavam, colhiam, criavam, edificavam e rezavam. Rudes, ignorantes, fanáticos talvez pelo seu chefe, que reputavam santo, não se preocupavam absolutamente de política. Aquela povoação proporcionava ao Estado pingue fonte de receita do imposto de exportação sobre peles.

Gravura: Canudos

Contrariamente às teorias que estudam os movimentos religiosos do Nordeste como uma liderança carismática que congrega homens e mulheres em torno de um "Messias Salvador", vemos que não há diferença entre condutor e seguidores, sendo aquele destacado apenas por sua renúncia a todo prazer individual, pela prática mais continuada dos ensinamentos que disseminava. A peculiaridade da cultura daquele grupo se traduzia, não só pelas práticas econômicas dos meios e das relações de produção, mas principalmente pela simbologia do catolicismo popular, presentes também nos grupos seguidores de Ibiapina e Pe.Cícero, perfazendo o universo da cultura sertaneja na segunda metade do Século XIX. Somente entendendo o significado prático que o catolicismo popular atribuiu à categoria santidade, é possível explicar-se a oposição que a Igreja Institucional fez aos movimentos religiosos desencadeados em torno desses três santos populares. Analisando antropologicamente a categoria Santidade no catolicismo popular a partir de trabalho de campo no Juazeiro, encaminhamos o problema como uma relação entre santidade e práxis do evangelho.

Por essa perspectiva, o trabalho, o respeito ao homem, a proteção aos que sofrem, a igualdade, a ausência da fome, despreendimento de dinheiro, respeito às donzelas, boa convivência, humildade, equilíbrio de conduta, são essas as características da santidade. A prática dessa ética, isto é, uma vida nessas práticas, eis a decodíficação da categoria santo. Em contraposição, o pecado será a fome, ambição, desigualdade, arrogância, violência, exploração, preguiça, concuspicência, desregramentos sexuais, desarmonia. Falando sobre Padre Cícero e Conselheiro, atribuem-se a eles aquelas virtudes, opondo-os aos homens comuns, que apresentam pecados - os pecadores. Transformar-se naquele símbolo de santidade, eis a ambição mais forte entre os que optaram por viver nas cidades santas. No caso de Canudos essa opção foi tão drástica que, a voltar ao estilo de vida com o qual haviam rompido, a se reinserirem na sociedade pecadora, preferiram morrer na cidade santa.
(BARROS, 1980:188).

Nas prédicas de Ibiapina, de Antônio Conselheiro e do Padre Cícero, bem como nas despedidas transcritas, a glorificação à Igreja Católica é outro ponto de identidade entre os três! Paradoxalmente, a feroz perseguição sofrida a partir da alta hierarquia católica tanto por Ibiapina (expulso do Ceará por D. Luiz dos Santos), Conselheiro (teve a prisão pedida por este mesmo personagem, então bispo da Bahia) e Cícero (suspenso de ordem) irmana-os num mesmo sofrimento. Longe de levá-los ao descrédito, transformou-os em mártires ante seu povo, convencido de que seu único pecado era uma ligação irreversível com o destino dos abandonados da sociedade.


Postos sob suspeita pela alta hierarquia católica, diferentes foram os destinos dos três cearenses estudados. Membros do Clero, foi impossível a Ibiapina e Pe. Cícero o diálogo humilde ou áspero que, graças á disciplina e a obediência impediu sua expulsão da Igreja, o que lhes permitiu a aliança de muitos representantes das camadas dirigentes, garantindo-lhes a sobrevivência pessoal e grupal. Refratário à riqueza, desgarrado de quaisquer laços com a hierarquia governante, Conselheiro é exposto à tragédia pelo poder do Estado (governo, polícia, juizes e exército), pelo poder da Igreja, (Bispo da Bahia), atiçado pelos intelectuais republicanos, sucumbindo com seu povo á impossibilidade de entendimento por parte das camadas dominantes, de suas concepções de mundo. Autodidata, limitado politicamente pelos horizontes de seu mundo, Conselheiro carrega atônito a dor da injustiça maior de sua vida, o genocídio de um povo que, por sua perspectiva, apenas vivia a palavra de Deus na Terra: trabalhar, rezar, procriar e fazer o bem. Vilanova, sobrevivente de Canudos em depoimento a Nertan Macedo, no livro "Memorial de Vila Nova", fala da agonia do Peregrino diante do ataque das forças do país a seu reduto. Pelas palavras de suas despedida, vê-se que o Conselheiro só restaram o amor de seu povo sacrificado e a esperança da mensagem católica da salvação.

Uma mesma ética permeia as três mensagens - a ética cristã segundo a decodíficação do catolicismo popular: a glória eterna como prêmio por uma vida Santa na terra. À luz da análise da categoria santidade, já enunciada, é possível avaliar-se a importância desses ensinamentos como superestrutura no tipo de sociedade em que viveram. A contradição dessa ideologia com a sociedade escravocrata, por exemplo, vai estar presente nas prédicas 618, 619, 620 e 621 em que o Conselheiro explica a origem da República:

É preciso, porém, que não deixe no silêncio a origem do ódio que tendes à família real, porque sua alteza a senhora dona Isabel libertou a escravidão, que não fez mais do que cumprir a ordem do céu; porque era chegado o tempo marcado por Deus para libertar esse povo de semelhante estado, o mais degradante a que podia ser reduzido o ente humano; a força moral (que tanto a obra) com que ela procedeu a satisfação da vontade divina constitui a confiança que tem em Deus para libertar esse povo, não era motivo suficiente para soar o brado da indignação que arrancou o ódio da maior parte daqueles a quem esse povo estava sujeito... na noite que tinha de assinar o decreto da liberdade, um dos ministros lhe disse: Sua alteza assina o decreto da liberdade, olhe a república como uma ameaça, ao que ela não liga a mínima importância, assinando o decreto com aquela disposição que tanto a caracteriza. (NOGUEIRA, 1974:180-181).

Professora Luitgarde Oliveira Barros e Antônio Vilela

A ética cristã impulsiona Conselheiro ao abolicionismo, defendido no Ceará também pelos intelectuais da Padaria - de ideologia Positivista. Essa mesma ética cristã levará Ibiapina a uma verdadeira campanha de valorização do trabalho como dignificação do homem, numa sociedade em que se distinguia a camada social pária pela ligação de seus membros ao trabalho. Enquanto a ideologia dominante classifica o trabalho como estigma social, Ibiapina prega dignificação do homem pelo trabalho-salvador, moralizador e responsável por sua subsistência. Em simpósio sobre Ibiapina, realizado em Campina Grande por ocasião do centenário de sua morte, em fevereiro de 1983, discutia-se a omissão de Ibiapina por este não haver participado das lutas pela abolição da escravatura. Tivemos oportunidade de lembrar a prática abolicionista do missionário, não só pela pregação sistemática da valorização do trabalhador, e de seu direito ao pão ganho com o suor de seu rosto, como também do exemplo oferecido a toda a sociedade sertaneja, a de uma concepção de igualdade racial que o levava a colocar em cargos de direção das Caridades beatas mulatas, negras ou brancas, segundo apenas os critérios de trabalho, interesse, devoção e dedicação à causa. Ao beato José Lourenço, homem de cor preta e origem obscura, o Padre Cícero entrega primeiro a Fazenda Baixa D'Anta e depois o Caldeirão para que ele fosse o responsável por centenas de famílias, conduzindo-as segundo a ética do evangelho, pela interpretação corrente entre os sertanejos pobres, explicitada mais coerentemente a partir de Ibiapina.

A seca de 77 fustigou os três personagens marcando-os indelevelmente por uma preocupação com o futuro do povo pobre. Incentivando as grandes multidões, Ibiapina, Conselheiro e Padre Cícero impulsionaram seu povo no aprimoramento da produção de alimentos, proporcionando o arrimo de milhares de famintos, como se lê na crônica de suas vidas.

Pelo sertão de Piauí a Pernambuco, no interior da Bahia, nos Cariris Novos, o povo vislumbrou em Ibiapina, Conselheiro e Pe. Cícero a preocupação com o nordestino, a ligação com seu sofrimento, a comunhão com sua desgraça e suas esperanças, a prática de vida aconselhada pelo Evangelho e os distinguiu entre todos os homens. Deu-lhes a grandeza, o poder, a forca e a bondade do mito. Viu-se irradiando luz e sabedoria, bondade e amor - Viu-os Santos!! Não aquela santidade determinada pelos teólogos especialistas do Vaticano, mas aquela santidade construída no cotidiano de amargura, trabalho e esperança de homens destituídos de poder, direitos e cidadania.

Não discutiremos a possível santidade (segundo os cânones da Igreja) desses personagens. Sociologicamente eles representam a construção social de um povo que os fez santos. No imaginário popular o Padre Cícero é um santo singular. Enquanto sertanejo ele é tratado com intimidade pelos mais humildes que o consideram quase um seu advogado junto a Deus. Suas apregoadas virtudes distinguem-no dos homens comuns, mas não o separam deles. Ele é visto como alguém capaz de entender melhor do que qualquer outro santo o drama do romeiro, por mais íntimo que este seja. Na crença popular, esse padrinho íntimo - com quem se fala no português mais regional, é um protetor fortíssimo junto a Nossa Senhora das Dores de quem é filho dileto: "Abaixo de Nosso Senhor Jesus Cristo, é meu Padrinho o que mais valia tem nos pés de Nossa Mãe das Dores!!!!" -

José Antonio Pereira Ibiapina - nasceu na fazenda Morro do Jaibara, Sobral, a 5 de agosto de 1806. Em 1856 se ordena sacerdote no Recife, vindo a falecer no dia 19 de fevereiro de 1883, em Santa Fé, então município de Bananeiras, na Paraíba. Em 27 anos missionou e reedificou Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco.

Antônio Vicente Mendes Maciel - natural da Vila de Quixeramobim, nasceu em 1830. Sob falsa acusação de assassinato é preso, em 1877 na Bahia, onde já pregava como beato, após ter percorrido Pernambuco e Sergipe. Aos 16 dias do mês de fevereiro de 1882, o arcebispo primaz da Bahia, d. Luiz Antônio dos Santos, determina que os padres de sua arquidiocese proibiam o pregador em suas paróquias. Em 1887 a autoridade eclesiástica pede ao Presidente da província providências contra o Peregrino.1893. O Conselheiro se estabelece às margens do Vaza-Barris; fundando Canudos, com o nome inicial de Belo Monte.12 de janeiro de 1897 - O Conselheiro inicia a obra transcrita por Ataliba Nogueira, composta de prédicas. Morre Antônio Conselheiro em Setembro de 1897, tendo seu corpo exumado no dia 6 desse mês, para ser decapitado pelas tropas do exército, sob o comando do General Artur Oscar de Andrade Guimarães.

Nasce Cícero Romão Batista, na cidade do Crato, no dia 24 de março de 1844. Em novembro de 1870, dia 30, é ordenado sacerdote, indo residir no Juazeiro em abril de 1872. 20 de julho de 1934 - Morre no Juazeiro o Pe. Cícero Romão Batista

Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros
Dra. em Ciências Sociais, Professora de Antropologia da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARROS, Luitgarde O. C. A terra da Mãe de Deus -Um estudo do Movimento Religioso de Juazeiro do Norte. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, ed MINC-INL, 1988.
MARIZ, Celso, Ibiapina, um Apóstolo do Nordeste. Paraíba, Publicações Unitas Editora, 1942.
NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. São Paulo; Nacional 1974.
PINHEIRO, Ireneu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1963.
SOBREIRO, Pe. Azarias. O Patriarca do Juazeiro. Petrópolis: Vozes, 1969.
ZAMA, César. Apud. NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. São Paulo: Nacional, 1942.

Fonte:portfoliun laboratório de imagens

3 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns Professora Luitgarde pelo excelente texto.
A Senhora nos apresenta a vida e obra dos tres Santos Nordestinos de uma forma suscinta. Um verdadeiro presente para os frequentadores deste blog.
Aproveito a oportunidade para deixar um forte abraço a todos os confrades e amigos.
Até o CARIRI CANGAÇO 2010.

Assis Nascimento // Mossoro (Rn)

Anônimo disse...

Gostaria de parabenizar ao blog do Cariri Cangaço pela riqueza de seu conteúdo, pela plástica e pela diagramação leve e bela do blog.

Esse conjunto de artigos da Mestra Doutora Luitgarde so confirmam o que digo, espetacular artigo sobre os "Santos do Ceará". Parabéns professora Luitgarde, simplesmente fantástico, pela lucidez, coerencia e profundo conhecimento de tema tão rico.

Rebeca Silveira - João Pessoa

Anônimo disse...

excelente texto!!!parabenizo a professora doutora luitgard pelo enriquecedor trabalho,que descreve os santos nordestinos do ceará.
muito importanta para nossa cultura,textos como a professora luitgarde nos brindou com riqueza de detalhes!parabéns!